Os primeiros anos da MTV: As garotas querem só diversão

Lançado em 1983, o videoclipe da canção Girls Just Wanna Have Fun (EPIC, 1983) interpretada pela cantora e compositora norte-americana Cyndi Lauper está próximo de alcançar a marca de 1 bilhão de visualizações no Youtube. Tendo como temas principais a liberdade e o empoderamento feminino, a gravação foi responsável por lançar Lauper ao estrelato junto a outras cantoras que buscavam espaço na indústria da música. Dona de comportamentos e estilos que marcaram toda uma geração junto a ícones da música pop como Madonna e Janet Jackson, Lauper foi uma responsável por despertar discussões sobre papel da mulher em um formato audiovisual que ganhava ascensão e se consolidava naquela década, o videoclipe.


Esse novo formato surge através de vários processos de desenvolvimento tecnológico, sendo o primeiro deles o rádio, principal plataforma de distribuição musical, e, também, influenciado pelo cinema e posteriormente da televisão, que possibilitaram a gravação de sequências sincronizadas entre música e imagem. A partir do surgimento desse novo formato, surgem novas formas de se comunicar com o público, aliado a estratégias de marketing que tinha como principal público alvo os jovens.

Artistas populares como as bandas britânicas Beatles e Queen posteriormente já tivessem trabalhado com o formato, o início das operações da MTV como um canal no ano de 1981 serviu como grande impacto para popularização do formato videoclipe, se consolidando de vez como obra audiovisual, em que artistas que já gozavam da popularidade nas rádios agora eram introduzidos a um público ainda maior através da televisão. A MTV foi responsável expandir de maneira significativa o conteúdo visual atrelado à música, que antes era composto por além do rádio, de performances ao vivo em programas de televisão. Além disso, as estratégias de marketing do canal caíram nas graças do público jovem, sendo o canal a principal fonte de lançamento de tendências adotadas entre o público jovem.

Conforme aponta Hall (1992), a identidade do indivíduo após o iluminismo sofre transformações. A transferência dos valores que antigamente eram impostos e projetados através do limite do núcleo familiar, aos poucos foram substituídos pelas competências da demanda da sociedade de consumo, conforme aponta o autor:

As transformações associadas à modernidade libertaram o indivíduo de seus apoios estáveis nas tradições e nas estruturas. Antes se acreditava que essas eram divinamente estabelecidas; não estavam sujeitas, portanto, a mudanças fundamentais (HALL, 1992 p. 25).

Segundo o autor (1992), podemos refletir sobre o comportamento do público jovem ao longo dos anos, que busca cada vez mais espaço para libertação de padrões familiares previamente estabelecidos. O movimento de Contracultura, unido ao êxito de artistas imortalizados como Elvis Presley, o impacto social da Beatlemania e o festival de Woodstock mostravam a decadência de antigas formas de construção do caráter do jovem a partir da década de 1960. Esses movimentos culturais contribuíram para que muitos dos temas que eram considerados tabus pela sociedade ganhassem maior espaço para discussões, novas ideias em consideração a liberdade de expressão, a liberdade sexual e o papel da mulher na sociedade eram difundidos pela juventude que ansiava por uma realidade de vida que sanasse os problemas em relação ao machismo e ao patriarcado.

A consolidação do público a partir da criação de uma emissora de nicho, destinada a um publico jovem que ansiava por novidades, contribuiu para a ampliação do universo da cultura pop, sendo que a MTV perdura até hoje como um dos principais símbolos na história da produção de videoclipes. O legado do canal foi responsável por conquistar várias gerações em seus mais de 40 anos de existência, já que muitos dos vídeos lançados com exclusividade pelo canal desfrutam do sucesso graças à hospedagem na maior plataforma de vídeos da atualidade, o Youtube.

Recordista de visualizações nessa plataforma, o vídeo de Girls Just Wanna Have Fun (EPIC, 1983), interpretado pela cantora e compositora Cyndi Lauper nos leva a acompanhar uma narrativa em que assistimos a cantora a perambular pelas ruas do subúrbio de Nova York na década de 1980 com seu jeito despojado e alto astral. No vídeo, após questionar seus pais que criticam as atitudes rebeldes de Lauper, ela sai de sua casa e parte em encontro de suas amigas, que são representadas por garotas de variadas etnias e abordam diversas pessoas na rua e as levam de volta para sua casa, enquanto cantam em coro o refrão que diz “Que as garotas só querem se divertir” sendo essa situação um grito a valorização da liberdade feminina.


O vídeo de Lauper trouxe uma nova perspectiva da narrativa que gerou identificação em um público marginalizado. Podemos observar sobre a análise no trabalho de Paula Rodrigues Marino sobre a obra de Kaplan sobre o papel feminino vinculado a MTV:

Kaplan, por momentos, confunde a construção textual dos gêneros sexuais (heterossexual, homossexual, transexual, etc.) com as práticas femininas concretas - como se não existisse uma distinção entre o "modelo de leitor construído pelo texto" e as audiências "reais" - como quando afirma que ‘MTV addresses the desires, fantasies, and anxieties of young people growing up iii a world in which all traditional categories and institutions are being questioned’ (ibid.: 270). Nem todas as instituições e categorias tradicionais são ou estão sendo questionadas na MTV - como, por exemplo, o sistema capitalista de consumo, o neoliberalismo ou as imagens das cantoras de pop, segundo uma representação tradicional da mulher (assinalada pela beleza física, a "suavidade" e o "romantismo") (MARINO 2001 p.109).

Abordando também o empoderamento feminino, o videoclipe de Love Is A Battlefield (CHRYSALIS, 1983), interpretado pro Pat Benatar tem uma abordagem distinta de Lauper sobre as situações enfrentadas pelas mulheres de seu tempo. Na narrativa, Benatar interpreta uma adolescente suburbana que ao ser expulsa de casa pelo pai, busca por uma nova vida em uma metrópole. A partir de uma sequencia de cenas em uma boate com baixa luz, detalhes do vídeo nos revela que a cantora tem o intuito de despertar empoderamento feminino em garotas que trabalham em uma boate noturna.


Em conjunto a narrativa, as roupas rasgadas usadas pela cantora representa a rebeldia, assim como Lauper o faz ao utilizar-se de roupas extravagantes. A partir dessa estratégia enunciativa, indicada por Marino, o figurino da cantora também se torna um adereço a ser replicado com facilidade pelos espectadores, já que o próprio se configura principalmente pela colagem de variados retalhos, esse fenômeno é retratado por Godwin:

[.] que associa a juventude à oposição ao status quo, à rebeldia e à contracultura - que é mencionada por Goodwin (1992). Esta construção da juventude corresponde a visões tradicionais, e até conservadoras, que vinculam as possibilidades de transformação a um período da vida, adolescência, destinado a ser superado. Seria interessante perguntar se isto não implica em retomo a uma concepção passiva das audiências. (MARINO, 2001, p. 109)

Os elementos reprodutíveis no videoclipe de Benatar são responsáveis por despertar novos comportamentos entre os jovens, sendo a mídia responsável por alimentar a ansiedade das gerações por novos ideais, tendo as narrativas da MTV como referência. Posteriormente, a canção fez parte da trilha sonora do filme De Repente 30 (2004, Columbia Pictures), em que a protagonista Jenna Rink, interpretada pela atriz Jennifer Garner, que é de fato uma garota de 13 anos dentro de um corpo de uma mulher de 30, apresenta a canção para outras meninas do prédio onde vive, provocando nelas o empoderamento feminino, em uma sequência que evidência a temporalidade da canção anos após o seu lançamento.


Personagem recorrente na programação da MTV, Madonna se tornou alvo constantes dos conservadores, mas, por outro lado, conquistou a crítica especializada e o público a sua constante habilidade de se reinventar e abordar temas de polêmicos que sempre engajaram um grande público. Através de seus videoclipes, a cantora realizou inúmeras provocações políticas, sociais e religiosas, inclusive em seu primeiro êxito internacional, a canção Like A Virgin (1984, Sire/Warner, 1984)) que causou grande comoção de grupos religiosos por fazer uma alusão ao sexo causal antes do casamento.

Gravado em Veneza, na Itália, a narrativa do videoclipe se baseia em Madonna passeando por Veneza na Itália. Mesclando cenas em que ela dança sensualmente em uma gondola em um passeio pela cidade, sequências em vemos um leão de verdade enquanto a cantora apaixona por um homem com uma mascara de leão que a seduz. Cenas com a cantora com um vestido de noiva, adereço essencial para a promoção da música, e um dos principais motivos de seu primeiro conflito com a Igreja Católica. Com Like A Virgin, Madonna dava os primeiros passos em rumo a uma carreira promissora, sendo frequentemente chamada por vários veículos da mídia como Rainha do Pop, onde damos destaque a sua apresentação no primeiro MTV Music Awards no ano de 1984, em que a cantora rola pelo palco com o icônico vestido de noiva Boy Toy.


Dando continuidade à promoção do álbum Like A Virgin (Sire/Warner, 1984), a cantora lança o videoclipe de Material Girl (Sire/Warner, 1984), em que a mesma incorpora a personagem de Marilyn Monroe no filme Os Homens Preferem as Loiras (1953, 20th Century Fox), em uma narrativa em que a cantora resgata o legado de Monroe no cinema hollywoodiano, criando uma metalinguagem entre indústria cinematográfica e a televisão.

A narrativa consiste em Madonna se opondo ao papel proposto por Monroe no longa-metragem, a partir de uma releitura da sequência musical de Diamonds Are A Girl’s Best Friend (1953). Ao mesmo tempo em que reencarna Monroe, uma mulher que canta sobre explorar a riqueza dos homens, Madonna interpreta uma mulher que recusa os presentes caros de um admirador que ao final do videoclipe acaba conquistando-a ao fingir ser um homem pobre. Com a proposta de Madonna, observamos os efeitos de influência do cinema sendo convertidos ao universo televisivo, Marino (2001) observa que:

Esta construção da juventude corresponde a visões tradicionais, e até conservadoras, que vinculam as possibilidades de transformação a um período da vida, a adolescência, destinado a ser superado. Seria interessante perguntar se isto não implica em retomo a uma concepção passiva das audiências. (MARINO, 2001, p. 109)


Ao adequar-se a figura de Marilyn Monroe, Madonna é responsável por uma narrativa que se baseia no anacronismo entre a sequência musical de Monroe e sua “Material Girl”, deixando explicita a critica de reforçar a independência feminina, que pode ser autossuficiente sem a necessidade de ser sustentada por um homem.

No ano de 1986, Madonna volta a se envolver em novas polêmicas, com o lançamento de Papa Don’t Preach (1986, SIRE/WARNER), videoclipe onde a cantora conta a história de uma garota que vive o dilema da gravidez na adolescência, e tem como principal arco, contar a seu pai que ela decidiu que quer ter o bebê. Em entrevista para iHeartRadio em 2019, a cantora comentou sobre as polêmicas que a canção causou entre grupos distintos, de um lado os religiosos que outrora acusaram a cantora de incentivar o sexo antes do casamento, agora a defendiam por ser contra o aborto, de outro lado, grupos que alegavam que a cantora incentivava mais uma vez a gravidez na adolescência criticavam a gravação: “Eu não entendo. Tudo o que eu faço é controverso. Nada mudou. - Continuo me envolvendo em confusões”, o que deixa claro o papel de Madonna como uma colecionadora de discussões polêmicas contraditórias, fato que atraía cada vez mais espectadores para a MTV, Marino também conclui que:

O texto televisivo é entendido por Fiske como um conjunto atravessado por múltiplos discursos e construções discursivas, assim como por discursos específicos, midiáticos ou não. Esta opinião distinguiria o texto pela presença de contradições derivadas dos discursos (MARINO 2001 p.111).

 


Nesse ano o canal já gozava de grande popularidade entre o público, servindo como uma das principais plataformas da indústria fonográfica, e ao lado do sucesso do canal, as polêmicas alimentavam cada vez mais o sucesso dos artistas e a venda de revistas de fofocas e discos.

Ao lado de Madonna, Cyndi Lauper também manteve seu legado com o lançamento de True Colors (1986, Epic), primeiro single do álbum homônimo. A canção é marcada como ícone entre a população LGBTQI+, e foi dedica a um amigo de Lauper que faleceu em decorrência do HIV, tema considerado tabu, polêmico e abordado de maneira inadequada pelos principais meios de comunicação, que reforçavam uma série de estereótipos contra a doença. Ainda em homenagem a seu pai, Lauper lançou a canção Boy Blue (Epic, 1986), contida também no álbum True Colors.


Com a indústria da música funcionando a todo o vapor, artistas passaram a utilizar estratégias de marketing cada vez mais polêmicas e inovadoras, garantindo sua permanência ao longo das gerações. Com a migração do público da televisão para a internet, surgem ídolos derivados de novas gerações, com outras realidades e novas histórias para contar, tendo como principal referência os ícones que foram sucesso dos anos anteriores. Temas como o sexo, religião e polícia continuaram pertinentes no desenvolvimento das narrativas, mantendo o videoclipe como principal formato para disseminação de ideias.

Embora ainda existam emissoras de TV, inclusive a MTV, que ainda dedicam horários de sua programação dedicada à transmissão de videoclipes, a principal plataforma de consumo desse formato atualmente é o YouTube, sendo uma plataforma gratuita, responsável à democratização do acesso a conteúdos audiovisuais. Segundo dados divulgados pela Google, a plataforma é acessada por mais de dois bilhões de usuários diariamente em escala mundial, e dispondo de um dos maiores acervos audiovisuais da história, o formato se consolida como um dos mais consumidos para os mais diversos públicos.

Como um formato dedicado a um grande público, grandes nomes da música pop contemporânea norte-americana como Rihanna, Lady Gaga e Beyoncé têm mantido o legado das “divas” pop dos primeiros anos da MTV a partir de narrativas que trazem a tona o papel da inclusão em suas narrativas. No videoclipe de Girls Just Wanna Have Fun, observamos a diversidades papéis femininos interpretando as amigas de Lauper apenas como figurantes, hoje mulheres das mais variadas etnias são protagonistas de suas próprias narrativas, e seguindo as formulas de sucesso construído ao longo dos anos pela MTV, jovens interpretes foram responsáveis pela criação de narrativas cada vez mais plurais com o intuito de dialogar com a juventude de sua época através de videoclipes que alcançam em questão de horas milhões de visualizações.

Assim como a geração de Cyndi Lauper e Madonna, as novas gerações seguiram na luta contra o fim da imposição de padrões pré-estabelecidos pela sociedade através da arte. Desfrutando de meios comunicacionais jamais imaginados pelos espectadores nos primeiros anos da MTV, o jovem da era do Twitter e Instagram participa de maneira de maneira ativa de um legado da produção de videoclipes que mantém seu papel de romper barreiras, gerar discussões, garantir o entretenimento, dar voz as gerações e principalmente garantir lucro a indústria do entretenimento.

REFERÊNCIAS

BENJAMIN, Walter. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica” In: Obras Escolhidas (Magia e Técnica, Arte e Política). v.1, São Paulo, Brasiliense, 1985

MARINO, Paula Rodrígucz. MTV e as concepções das audiências: as abordagens de Kaplan, Lewis, Fiske e Goodwit, Jornadas 50 años de Ia selevisión argentina, 2001 T: Audiencias y recepción, Facultad de Ciencias Sociales- Universidad de Buenos Aires.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. São Paulo: DP&A, 2006.

MACHADO DA SILVA, J. O pensamento contemporâneo francês sobre a comunicação. In: HOHLFELDT, A.; MARTINO, L. C. e FRANÇA, V. V. (Orgs.) Teorias da Comunicação. Petrópolis: Vozes, p. 1171-186.

MORÍN, EGAR. Cultura de Massas no Século XX – Neurose tradução de Maura Ribeiro Sardinha, 9ª edição, Rio de Janeiro: Forense Universitária.



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