O território compartilhado em "Faça a coisa certa" e a política anti-negro de Ronald Reagan


Como aponta Kellner (2001), a cultura é uma das formas mais efetivas para reproduzir as lutas e os discursos sociais existentes, seja ela manifestada na música, no cinema, literatura, teatro, entre outros.Porém, é também na cultura, em especial no cinema, que grandes problemáticas sobre a sociedade aparecem. 

Em 2016, após os anúncios dos concorrentes ao Oscar – que pelo segundo ano consecutivo não contava com nenhum ator ou atriz (principais ou coadjuvantes) negros indicados -, surgiu a campanha de boicote “Oscarssowhite”. O assunto que sempre teve um certo destaque em Hollywood, dessa vez não conseguiu ser abafado, graças as influentes vozes que os publicizaram e as redes sociais. 

Uma das pessoas que tornou público seu descontentamento com as indicações foi o cineasta Spike Lee. Em uma entrevista à CNN ele afirmou: 
Como é possível pelo segundo ano consecutivo todos os 20 candidatos na categoria de ator serem brancos? E não vamos nem entrar em outros ramos.Quarenta atores brancos em dois anos e nenhuma personalidade. Não podemos atuar?! [...] É mais fácil para um afro-americano ser presidente dos EUA do que presidente de um estúdio de Hollywood. 
Porém, não é nenhuma novidade apontamentos em relação ao racismo na academia e a baixa representatividade étnico-racial nas indicações. Na cerimônia do Oscar de 1990, a atriz Kim Basinger protestou pela ausência de um dos filmes mais aclamados do ano: "Faça a Coisa Certa", de Spike Lee. O longa metragem até foi indicado ao Oscar naquele ano, mas apenas na categoria roteiro original, ficando de fora das categorias de melhor filme e direção. 


Um homem negro só seria indicado ao Oscar de direção dois anos depois -na 62ª edição da cerimônia -, John Singleton, por “Os donos da rua”, que também falava sobre violência e racismo.Entretanto, até hoje nenhum homem negro venceu a categoria. 

Este ano, Lee recebeu o Oscar de roteiro adaptado por “Infiltrado na Klan”, além de ser indicado a direção e a melhor filme. Sob protestos, Green Book levou a estatueta por melhor filme. Além de ficar de costas durante a premiação, ao final Lee ironizou dizendo que “toda vez que alguém está dirigindo eu perco”, fazendo referência a Green Book e também ao ganhador de melhor filme de 1990, Conduzindo Miss Daisy. 

Mesmo sem receber o reconhecimento esperado pela academia, Faça a coisa certa é até hoje um dos filmes de maior sucesso de Lee, e que mesmo após trinta anos de sua produção, ainda traz debates marcantes e atuais. 

O território compartilhado em "Faça a coisa certa" 

O território é o chão e mais a população, isto é uma identidade, o fato e o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence. O território é a base do trabalho, da residência, das trocas materiais e espirituais e da vida, sobre as quais ele influí. Quando se fala em território deve-se, pois, de logo, entender que está falando em território usado, utilizado por uma população (SANTOS, 2003, p.174). 

Ao entendermos que o espaço não é apenas um palco onde a cultura se desenvolve, mas sim uma característica constitutiva da prática cultural, podemos perceber a centralidade do lugar na narrativa de “Faça a coisa certa”. O Brooklyn não é apenas o pano de fundo onde a trama se passa, mas sim um dos elementos centrais do filme. 

Stuart Hall é uma das grandes referências sobre as dimensões políticos-culturais da globalização, principalmente a partir da diáspora negra. Segundo Feitosa (2014), “[...] tanto Hall como Lee, discutem a experiência diaspórica e o momento político, enquanto o primeiro produz teorizações, o segundo obras cinematográficas.” 

Spike Lee conta hoje com mais de 40 filmes produzidos, sendo que a temática racial é uma constante em suas obras. Lee as usa como uma forma de desconstruir estereótipos, e mostrar a complexidade das realidades multiculturais norte-americanas. 

Como aponta Feitosa (2014, p.2), “podemos entender territórios negros como o lugar geográfico ocupado, vivido e experienciado por uma população majoritariamente negra”. Em “Faça a coisa certa”, a complexidade narrativa gira em torno do compartilhamento desse território. Em um gueto do Brooklyn, afro-americanos passam a cada vez mais dividirem seu território com diferentes grupos étnicos-raciais, grupos com diferentes perspectivas sobre o que está acontecendo ali. 

No longa, podemos observar de forma nítida como o chão e a população estão integrados. É válido ressaltar ainda a influência que a segregação espacial sistematizada por determinantes raciais teve nas obras de Lee. A verdade é que, como ressalta Feitosa: 
a concentração de corpos negros em espaços com condições de vida precárias e excessivo policiamento é uma constante na história das comunidades afrodiaspóricas, seja por força da lei, seja por restrições econômicas. (FEITOSA, 2014, p.3) 
A onda de calor 

O filme narra a história do dia mais quente do ano em um gueto do Brooklyn. A partir disso Lee tenta mostrar como diferentes etnias, a maioria negros, mas também hispânicos, coreanos e italianos convivem e dividem esse espaço. 

Uma das principais características que Lee e seu diretor de fotografia, Ernest Dickerson, queriam passar a seus espectadores era o desconforto. Logo no início do filme, Mr. Love Daddy (Samuel L. Jackson), DJ da Rádio do amor, convida todos a despertarem, e passa o recado aos amantes da brilhantina: “Fique em casa hoje ou acabará com um capacete de plástico”. Nesta cena, o incômodo calor já é perceptível e logo em seguida, outra cena mostra Da Mayor (Ossie Davis), acordando sem camisa e todo suado. E ainda eram 8 horas da manhã. 

A sensação de calor e incômodo é também perceptível pela paleta de cores escolhidas. Nada de tons frios e neutros, a paleta gira em torno do vermelho e amarelo, que aliada a forte luminosidade do filme, pode gerar até certo incômodo visual. 


Como aponta Brandão (2017), a escolha pela ambientação feita em um dia quente de verão não é por acaso e tem um importante significado no filme. Para Brandão, a escolha de Lee foi gerar um desconforto com o calor tão grande, que era impossível para os personagens ficarem dentro de suas casas. E sair as ruas nos leva a sociabilização com seu vizinho, da relação das pessoas com o outro. Brandão ainda ressalta que: 
Deste modo, o calor é o catalizador de Lee para explorar as tensões e ansiedades sociais dessa vizinhança que apresenta tantas particularidades em termos culturais, raciais e de classe: nos é mostrado na narrativa uma parte do Brooklyn que tem um bairro composto por africano-americanos (maioria), por latino-americanos, ítalo-americanos, coreano-americanos e pelos próprios brancos estadunidenses, que são aqueles que não moram na vizinhança, mas sempre interferem nela.(BRANDÃO, 2017, p.19) 
Mookie, personagem interpretado por próprio Spike Lee, é o entregador na tradicional pizzaria do Sal (Danny Aiello). Sal é um ítalo-americano que mantém em sua pizzaria uma parede repleta de personalidades ítalo-americanas, o que gera polêmica entre seus consumidores, que em sua grande maioria são negros. 


A tensão no filme aumenta à medida que o calor aumenta. A pizzaria então, que está com o ar-condicionado quebrado e sem previsão de conserto por conta do medo que os técnicos têm de ir ao bairro predominantemente negro, aliado com a temperatura sempre alta do forno da pizzaria, é o lugar onde o clímax da trama se constrói. 

O questionamento levantado por Buggin Out (Giancarlo Esposito) é de que grande parte do capital gerado pela pizzaria vem dos clientes negros, que são maioria esmagadora dentro de um bairro predominantemente negro. E por isso, personalidades negras também deveriam ser retratadas na parede. Irritado com o questionamento, Sal pede que Mookie retire Buggin Out do estabelecimento. Ao ser expulso, Buggin Out promete organizar um boicote contra a pizzaria. 

Enquanto outras tramas se desenvolvem no filme, principalmente sobre como os moradores estão lidando com o calor naquele dia, Buggin Out tenta conquistar apoio ao seu boicote. Mas é ignorado por todos, tamanha é a afeição dos moradores à pizzaria. Porém, quando Rádio Raheem (Bill Nunn) e seu inseparável rádio portátil - ligado sempre no último volume -, entram na pizzaria, Sal impõe que Rádio abaixe o som ou saia do lugar. Após recusa do jovem, Sal o xinga e diz que aquela música “vinha da selva”. 

Vale ressaltar que a música “Fightthepower” que Rádio toca constantemente – e que também está nos créditos iniciais do filme -, foi encomendada por Lee ao grupo de rap PublicEmeny, e serve como um Leitmotiv, uma espécie de motivo condutor, que têm o objetivo de ser associada a um personagem, objeto ou ideia, almejado pelo diretor. A música já dá indícios do tom que Lee quer dar ao filme, em português o título da música pode ser traduzido como “Combata o poder”, e alguns versos são: 
Elvis era um herói para a maioria/ Mas nunca significou merda nenhuma pra mim/ Perceba o racista que aquele otário era/ Simples e claro/ Ele e John Wayne são filhos da puta/ Porque eu sou negro e tenho orgulho/ Estou pronto, atualizado e empolgado. 
Para Brandão (2017), a parceria de Lee e o grupo PublicEmeny para a trilha sonora do filme, tem o intuito de chamar os negros novamente a luta, tendo orgulho dela, e sem medos e amarras na hora de denunciar racismos e afrontas, “mesmo que venha de uma classe economicamente poderosa, ou até mesmo de heróis nacionais, que permanecem intactos em suas visões romantizadas na história”. 

Quando Smiley (Roger Guenveur Smith), personagem que aparenta ter alguma deficiência mental, e está sempre mostrando fotos de Martin Luther King e Malcolm X, enfatizando que estão mortos e tentando vende-las, é informado do que aconteceu com Rádio na pizzaria, também mostra apoio ao boicote. Buggin Out, Rádio e Smiley decidem então ir tirar satisfação com Sal na pizzaria. 

Chega à noite, e o final do filme se aproxima, quando Sal permite que mesmo depois do fim do expediente da pizzaria, um grupo de jovens entrempara a última pizza da noite. O trio aproveita esse momento e também entram no estabelecimento, para exigirem que Sal coloque as fotos de negros em sua parede da fama. Os ânimos se exaltam, e após Sal quebrar o aparelho de som de Rádio, ele o ataca. Uma briga generalizada começa, até que a polícia chega, para tentar acabar com o conflito. 

Mas o que acontece, é que na tentativa de acalmar e imobilizar Rádio Raheem, os policiais exageram e usam uma força brutal, que acaba assassinando o personagem. Com sua morte, uma revolta se instala, e Mookie dá o primeiro passo para a depredação do estabelecimento, ao jogar uma lixeira na pizzaria, que minutos depois é completamente incendiada. O dia termina, e na manhã seguinte, momentos antes do filme ser encerrado, Mookie vai à pizzaria, para receber o pagamento do dia anterior de trabalho com Sal. O que fica claro nesse confronto final do filme, é um bairro com suas instalações destruídas, um amado estabelecimento destruído e uma cidade que nunca mais seria a mesma. 

O governo Reagan 

É importante lembrar que a tensão racial gerada no filme é também um reflexo da situação política em que os Estados Unidos se encontravam. O filme se passa em 1989, último ano do governo de Ronald Reagan (1981-1989), que foi alvo de diversas críticas e protestos durante todo seu mandato por suas políticas que favoreciam os ricos e negligenciava os pobres, negros e imigrantes. 

Talvez a alta taxa de desemprego tenha sido o maior motivo de insatisfação da década. Zinn (1995) aponta que em abril de 1983 Reagan foi surpreendido durante um discurso por uma multidão de 3 000 pessoas, a maioria sem emprego, que protestava contra as medidas anunciadas na economia. Na mesma época, quando as taxas de desemprego entre afro-americanos eram de mais de 50%, diversosprotestos aconteceram. Eles também lutavam contra a brutalidade nas abordagens policiais. Porém, como aponta o autor, a única resposta dada por Reagan contra a pobreza e a falta de trabalho foi a criação de mais cadeias. 

A “guerra as drogas” levantada por Reagan diversas vezes durante campanha eleitoral, e uma das principais medidas de seu governo, nada mais era do que um aparato estatal para atuar e prender negros sem nenhuma suspeita de envolvimento com substâncias ilícitas. A guerra não era contra as drogas, mas sim contra o sujeito – política semelhante a utilizada no Brasil atualmente. 

Os apontamentos de que Reagan era racista nunca foram ocultos. Segundo Brandão (2017), era sabido que antes de estar em cargos eletivos ele se opôs à Lei dos Direitos Civis, de 1964, à Lei dos Direitos de Voto, de 1965, e ao Fair HousingAct de 1968. 

Outro momento citado por Howard Zinn em relação a medidas que o presidente utilizou para desfavorecer negrosdiz respeito às políticas intervencionistas na África do Sul durante o regime do Apartheid. Para Zinn (1995), Reagan não queria que os brancos, que eram minoria no governo do país, perdessem parte de sua representação para o AfricanNationalCongress, que representavam a maioria negra. Brandão (2017), aponta que: 
Com isso, o presidente interviu e vetou diversas sessões da lei Anti-ApartheidComprehensive, que visava justamente impor sanções econômicas ao governo ilegal sul africano caso o Apartheid, que desrespeitava os direitos humanos, não acabasse. O absurdo dos vetos foi tão grande quanto a pressão da opinião pública em barrar o impedimento das sessões. Nessa, Reagan havia perdido. (BRANDÃO, 2017, P.26) 
Percebemos então que, na década de 1980, os afro-americanos não estavam apenas sendo perseguidos nas ruas, mas estavam também sendo envolvidos por uma política não representativa, que significou diversas perdas sociais e econômicas para essa população. E como aponta Brandão (2017), Faça a coisa certa, que foi produzido no último ano dessa década, representa um sonoro “basta” para a condição que o afro-americano se viu sujeito novamente. Além de alertar que “temperatura desses conflitos étnicos estava aumentando, e um pequeno desvio fora do comum poderia lançar o país em conflito nunca antes visto, para o bem ou para o mal.” 

Referências 

BRANDÃO, João Lucas França Franco. 80’s so White: o cinema incendiário de Spike Lee em Faça a coisa certa (1989). Uberlândia, MG: UFU, 2017. 

FEITOSA, Aida Rodrigues. Narrativas de territórios negros: o pensamento de Stuart Hall e a filmografia de Spike Lee. XXXVII Congresso Brasileirode Ciências da Comunicação – Foz do Iguaçu, PR – 2 a 5/9/2014. 

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. 7ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. 

___________. A questão multicultural. In. HALL, Stuart. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003. 

KELLNER, Douglas. A cultura da Mídia. Estudos culturais: identidade e política entre o moderno e o pós-moderno. Bauru, SP: EDUSC, 2001. 

ZINN, Howard. The unreportedresistance. IN: A people’shistoryof The United States: 1492 topresent. ModernClassics 1995.



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