Green Book: a outra forma de contar a história

Durante a época em que as leis de Jim Crow dominavam o sul dos Estados Unidos, o Livro Verde para Motoristas Negros, no original em inglês, surgiu como guia para negros afro-americanos que viajavam pelas estradas do país. Sua principal função era, basicamente, listar locais de serviços e de acomodações nos quais a entrada de pessoas negras era permitida, incluindo postos de gasolina, lojas de conveniência, hotéis e restaurantes.

Em vista disso, Peter Farelly - um homem branco e tipicamente conhecido em Hollywood pelos seus filmes de comédia - resolve dar vida a uma das tramas em que o livro se faz presente: a história do lendário pianista de jazz, Don Shirley, um negro afro-americano e homossexual. Entretanto, não é a partir da perspectiva de Don que a história é contada.

Em Green Book o protagonista da trama é Tony Lip, um italiano branco, pai de família e que apresenta inúmeras atitudes de racismo velado. Tony está constantemente se envolvendo em brigas e empreitadas para ganhar dinheiro ou reconhecimento por parte da elite, bem como reforçando o estigma da masculinidade pelo qual ele é afetado. O cenário do filme se reverte quando Don contrata Tony para ser seu motorista em uma turnê pelo sul dos Estados Unidos. Seguindo as instruções do Green Book, Tony deve estar consciente dos locais que Don pode se hospedar e frequentar, protegendo-o de qualquer violência racial e, consequentemente, assegurando-se de que o pianista chegará sempre seguro em seus concertos.

Ao longo do filme, percebe-se uma relação de amizade e cuidado sendo desenvolvida entre os dois, que passam a compartilhar dos mesmos gostos e interesses. Entretanto, é importante ressaltar que Don, apesar de ser um negro afro-americano, cresceu familiarizado com uma cultura branca e é, justamente, Tony Lip quem reaproxima Don de suas raízes. A exemplo disso, Tony pergunta a Don se ele já provou frango frito ou ouviu músicas de cantores negros como, por exemplo, o consagrado Little Richard. E, em um momento singular do filme, Tony inclusive afirma firmemente que ele é “mais negro” do que o próprio Don.

Nesta última cena citada, Don e Tony são parados na estrada por um policial sulista de caráter racista e xenofóbico. O policial inicialmente insulta Shirley, alegando que ele não podia estar passando por uma “cidade ao pôr-do-sol" – termo designado para indicar munícipios ou bairros estadunidenses inteiramente brancos que não permitiam a entrada de negros durante a noite. Além disso, o fato de ser negro se torna explicitamente uma ofensa quando o policial diz à Tony que, por ele ser italiano, ele era também metade negro e por isso trabalhava para Don. Tony se enfurece e, no que seria um ato de “legítima defesa”, ele agride fisicamente o policial e os dois acabam sendo presos. Os policiais que fiscalizam a prisão são substancialmente racistas e deslegitimam a existência de Don simplesmente pelo fato dele ser negro. Dessa forma, Shirley precisa recorrer ao procurador geral dos EUA, Bobby Kennedy, para que eles sejam soltos.

A discussão entre os protagonistas começa, de fato, quando eles voltam para a estrada e Tony alega ter batido no policial por não ter gostado do jeito que ele havia tratado Don. Entretanto, Shirley responde dizendo que já estava acostumado com aquele tipo de tratamento e quem se sentiu ofendido, na verdade, foi Tony e não ele. Por sua vez, Lip rebate alegando que tinha o direito de ficar incomodado com o comportamento do policial uma vez que ele era “mais negro” do que o próprio Don.

Na mente do italiano, ter presente em sua rotina elementos culturalmente negros faria dele alguém parte dessa cultura. Porém, ao fazer esta afirmação, Tony Lip desconsidera todas as vivências de um povo historicamente oprimido e o limita a uma mera questão de diferença cultural. Dessa forma, entendemos claramente a distorção que se é feita sobre a história de Don, bem como dos negros em geral, uma vez que é Tony Lip quem a conta.


O conceito de salvador branco, no original em inglês, se refere à figura branca que é capaz de salvar o personagem negro de seus problemas – problemas estes que, no filme ou quaisquer que seja o produto midiático, ele mesmo não é capaz de resolver. Partindo desse pressuposto, fica clara a relação que se é feita entre o longa-metragem e os dois autores escolhidos para análise: Pierre Clastres e Walter Benjamin. No capítulo 4 de seu livro “Arqueologia da Violência”, Clastres reflete sobre o termo etnocentrismo, essa vocação de avaliar as diferenças pelo padrão da própria cultura. (1977)

A partir de uma ótica etnológica, o autor elabora uma linha teórica gradual, discorrendo, inicialmente, sobre as diferenças entre os conceitos de genocídio e etnocídio até chegar na definição do “etnocentrismo”. Nesse âmbito, Clastres traz alguns exemplos do que seria considerado como genocídio – o massacre sistemático de judeus na Alemanha nazista, por exemplo – e, posteriormente, questiona a suficiência deste mesmo conceito sobre outros casos. O genocídio é capaz de definir o que seria a morte física de um povo, entretanto, como definir a morte imaterial? Surge-se, então, o conceito de etnocídio. Como explica o autor,
O etnocídio, portanto, é a destruição sistemática dos modos de vida e pensamento de povos diferentes daqueles que empreendem a sua destruição. Em suma, o genocídio assassina os povos em seu corpo, o etnocídio os mata em seu espírito. (CLASTRES, 1977: , p. 83)

Segundo Clastres, todas as culturas são, de certa forma, etnocêntricas, visto que as diferenças culturais são sempre compreendidas por elas a partir de uma ótica hierárquica, do inferior ao superior. Porém, ainda sim, ele afirma que somente a cultura ocidental é absolutamente etnocida. É o meio de produção econômico ocidental, denominado “capitalismo”, que inibe a possibilidade de escolha do ser humano e assume o caráter de assassinar as pluralidades imateriais de cada povo considerado como “outro”, conforme Clastres (1977) aponta.

A ótica etnocêntrica estadunidense que opera em Green Book também dialoga com a discussão proposta por Benjamin em seu texto “Teses sobre o conceito de história” (1940). De acordo com o autor, uma cultura decididamente dominadora e etnocida como a ocidental, ao contar a história de suas “conquistas”, cria uma série de problemas na construção da memória dos povos oprimidos. As práticas implacáveis de dominação causam desde a distorção, estigmatização e apropriação de costumes até o total apagamento histórico de certos povos. Deste modo, se torna sempre mais fácil escrever uma história que pareça ser a única e incontestável versão dos acontecimentos. Conforme Benjamin (1940), a história é objeto de uma construção cujo lugar não é o tempo homogêneo e vazio, mas um tempo saturado de "agoras”.

Em suma, percebe-se no longa a apropriação da história por parte de uma cultura que não é aquela que viveu a história de fato. Essa apropriação não só é legitimada como é também supervalorizada em relação a pontos de vista não convencionais. Em um ano que o Oscar contou com uma significativa representatividade racial, Green Book levou três estatuetas da Academia, incluindo a de Melhor Filme, apesar de ter sua produção e sua direção feitas por pessoas brancas e retratado a problemática de maneira suavizada. Um filme que, para muitos, sustenta a ideia de que uma suposta democracia racial, conceito inicialmente apresentado por Gilberto Freyre, se faz presente nos EUA.


Para concluir, entendemos a importância da presença de outros discursos, bem como de outras óticas, para contar o que seria “uma só” história. Um tipo de discurso hegemônico é propagado desde as minúcias do cotidiano até os tablóides das grandes mídias, reforçando cada vez mais, uma visão etnocêntrica sobre as alteridades culturais. Além de, consequentemente, operar como uma prática etnocida. Finalizamos, portanto, refletindo acerca dos limites do discurso etnocêntrico e da imparcialidade pela qual a história é contada. Como afirmam Clastres (1977) e Benjamin (1940), não se mostra suficiente somente atestar os fatos sobre qual ótica se conta a história, é necessário pensar em como desconstruir essas óticas para que, então, se possa reformular a história.

Referências:

CLASTRES, Pierre. "Do etnocídio". In: Antropologia da Violência - pesquisas de antropologia política. SP: Cosac Naify, 2004.

BENJAMIN, Walter. Teses sobre o conceito de história, 1940.

OCBAZGHI, Emmanuel. “How ‘white savior’ films like Green Book hurt Hollywood” Business Insider. 06/03/2019. Disponível em: < https://www.businessinsider.com/white-savior-films-green-book-hollywood-racism-people-of-color-film-2019-3>. Data de acesso: 07/04/2019.




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