Mais do que um rostinho bonito: mulheres como personagens complexas em séries

Quando uma obra audiovisual é protagonizada por uma mulher , na maioria das vezes esta figura será norteada a partir de duas formas: uma personagem que está completamente dentro dos padrões, com cabelos lisos, traços caucasianos e magra ou então aquela que passará por uma “extreme makeover”. Esse segundo caso geralmente se resume em uma atriz padrão que se passa por uma personagem considerada feia na narrativa, por ser gorda, ter cabelos crespos ou cacheados e às vezes simplesmente por usar um óculos e rabo de cavalo. O filme O Diário da Princesa (2001) é um dos maiores exemplos de como a ideia de um padrão de beleza e sua importância é imposta na sociedade. Pois, uma das mensagens que o filme transmite é de que uma princesa não pode usar óculos e ter cachos, ela precisa da sobrancelha perfeita, cabelos alisados e lentes de contato. Essa situação cria também uma associação de beleza com bondade e/ou poder, que tem sido tema de estudo para vários pesquisadores. Em um desses estudos, foi possível concluir que os “cineastas de Hollywood têm retratado indivíduos fisicamente atraentes de maneira mais favorável do que seus equivalentes menos atraentes em termos de bondade moral, atividade romântica e resultados de vida” (SMITH; MCINTOSH; BAZZINI, 1999, p.75, tradução nossa).


“Siga algumas regras e você será bonita” é o que vemos em filmes, séries e novelas há décadas. E quem pensa que isso é uma realidade ultrapassada está completamente enganado. A série Insatiable (Netflix 2018-2019), por exemplo, mostra o quanto essa narrativa ainda é usada e reverberada na contemporaneidade. A trama mostra Debby Ryan (com enchimentos e maquiagens para ficar gorda) reforçando o estereótipo que para ser feliz e bem sucedida é preciso ser magra. Além disso, a forma como a personagem alcança a magreza de forma extremamente perigosa e irresponsável com uma dieta restritiva. 

Apesar da mentalidade de alguns produtores, diretores e roteiristas não terem mudado, a do público não é mais passiva como antes e esse tipo de narrativa não é mais uma fórmula de sucesso. Pelo contrário, Insatiable recebeu tantas críticas pela sua gordofobia explícita e por todas as outras problemáticas de série que foi cancelada após a segunda temporada e se tornou uma das séries originais da Netflix mais criticadas. No site Metacritic - que reúne resenhas de jornalistas renomados e especializados e gera uma nota baseada em uma média ponderada entre a avaliação dada por essas fontes - a trama está com uma pontuação de 25 em 100 pontos.


Como explica Friedrich (2018, p.16) o público busca por personagens com quem possam se identificar, 

De lavagens cerebrais que levaram à segunda guerra mundial, à criação contínua de um padrão de beleza, o que é exposto seja nas telas de cinema ou nas propagandas de revistas manipula o nosso olhar sobre o mundo. Somos fascinados, aficionados, manuseados pelo o que consumimos. Todos nós buscamos identificação com os produtos culturais. [...] Procuramos ali um reflexo de nós mesmos, algo que nos faça acreditar que aquilo que estamos assistindo tem alguma relação conosco.

Nesse contexto, enquanto grande parte do que estava na mídia eram mulheres padronizadas, todas aquelas que não se encaixavam nesse conjunto de características eram invalidadas. E suas aparências únicas eram desmerecidas ou apagadas devido a busca de um visual padrão.

Personagens complexas

Ao pensar em séries protagonizadas por homens percebemos que a maioria das temáticas são sobre suas conquistas, aventuras, carreiras e etc. Suits (USA Network 2011-2019), Prison Break (FOX 2005) e Breaking Bad (AMC 2008-2013) são alguns exemplos de tramas que falam sobre homens, suas relações de amizade e parceria com outros homens e seus feitos. Enquanto a maioria das mulheres presentes na série são desenvolvidas para serem um par romântico para algum deles. E por muito tempo isso não era diferente nas séries protagonizadas por mulheres, estudos mostram que o arco narrativo da personagem principal se voltava para a relação conjugal, familiar e com a casa, sendo “principalmente esposas e/ou mães que não tinham identidade fora de casa e pouco poder real dentro dela” (DOW, 1990, p.264, tradução nossa).

Hoje o cenário já está mudando e, isso se dá principalmente pela aumento do número mulheres por trás das câmeras. Apesar dos índices não serem muito positivos - dados da Women and Hollywood mostram que em 2019 mulheres representavam 12% dos diretores, 20% dos roteiristas e 26% dos produtores dos 100 filmes de maiores bilheterias do ano - podemos ver que séries que contam com mulheres em sua produção estão se destacando cada vez mais. Como é o caso de Phoebe Waller-Bridge, showrunner britânica criadora das séries Killing Eve (BBC 2018) e Fleabag (BBC 2016).


Um estudo coordenado por Martha Lauzen, da San Diego State University, mostra que programas que não possuem mulheres entre os produtores executivos, apenas 35% dos personagens principais são femininos. Tendo apenas uma mulher entre esses produtores o número já aumenta para 42%. É importante que a aparência não seja o aspecto principal de uma personagem, pois isso reforça a ideia de que mulheres podem ser reduzidas em um rosto bonito e um corpo ideal. Muitas vezes para tentar contrariar esses padrões séries colocam protagonistas gordas, latinas, negras em narrativas sobre peso, imigração e negritude. Apesar de serem temas importantes, por que uma personagem gorda não pode protagonizar uma série de fantasia? Por que mulheres latinas não podem ser detetives em uma série de suspense? Mulheres negras só terão destaque em séries sobre hip hop? E a resposta para todas essas perguntas é não! Veremos alguns exemplos que fogem do comum e mostram que mulheres são mais do que um rostinho bonito.

Annalise Keating conquistou o público em How to Get Away with Murder (ABC 2014-2020) se aqueles que preferem a forma “antiga” de representar uma mulher acreditaram que uma protagonista negra e fora dos padrões de beleza seria um “tiro no pé”, não poderiam estar mais enganado. Viola Davis se tornou um ícone em vários âmbitos para quem assistiu (e até para quem nunca ouviu falar) a série. Trouxe uma atuação impecável, com uma personagem muito bem construída e por fora das telas se mostrou uma voz importante para as causas que defende e um ótimo exemplo para ser seguido, alguém para pessoas admirarem e se identificarem.


A série Crazy Ex Girlfriend (CW 2015-2019) é uma série perfeita para quem quer ver atrizes reais, segundo Luisa Rodrigues em um matéria para a revista Superela, esse é um dos principais motivos para assistir a série

[...] Rebecca é uma protagonista completamente fora dos padrões. Ela não tem o corpo ideal, muito menos o Biotipo de estrela de Hollywood. Só que, ao contrário de seriados como Ugly Betty, esse NÃO É o tema central da trama. Na verdade, ninguém ali parece um puta modelo que, acidentalmente, se tornou ator ou atriz, sabe? O enredo é composto por pessoas normais, de diferentes biotipos e etnias, vivendo seus problemas cotidianos como cada um de nós.

Seja na aparência ou na personalidade, Rebecca Bunch é um ótimo exemplo sobre representação feminina. E apesar de o nome da série dar a entender que se trata de uma mulher que só pensa no ex, a narrativa vai muito além disso, introduzindo temas como rivalidade feminina, transtornos psicológicos, machismo e muito mais de forma aberta e responsável.


Outra série com uma protagonista incrível é Jane The Virgin (CW 2014-2019). O elenco conta também com diversas outras mulheres que representam personagens fortes, com personalidades complexas e histórias completas. E as atrizes não saíram direto de um cirurgião plástico para o set, são reais, identificáveis e com uma aparência única que em momento nenhum é o foco da narrativa.

Para finalizar, apesar de não ter sido bem recebido pela crítica, o spinoff Vis a Vis El Oasis (FOX 2020-2020) conta com um elenco majoritariamente feminino e sua história é totalmente protagonizada por elas, vivendo aventuras que antigamente apenas personagens homens viveriam enquanto suas mulheres esperariam em suas casas com os filhos.

É possível perceber que é possível sim personagens mulheres terem aparências reais e personalidades complexas, a fórmula da esposa/mãe não é a única e muito menos a de sucesso. E para que essa representatividade seja cada vez mais certeira é preciso valorizar a presença de mulheres na frente e atrás das câmeras.


Referências

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