“Admirável Gado Novo” e “Admirável Chip Novo”: Análise das músicas sob o viés da Comunicação

Geovana Santiago


Estas músicas que atravessaram gerações levantam questões importantíssimas sobre a sociedade em que vivemos. Ainda são extremamente atuais e despertam diversas leituras, não se atendo ao contexto histórico e cultural em que foram escritas. Apesar da distância temporal das músicas, além de estabelecer relações entre elas, é possível analisá-las sob a mesma ótica. “Admirável Gado Novo”, de Zé Ramalho, foi lançada em 1979 e “Admirável Chip Novo”, de Pitty, em 2003.

A intenção aqui não é dissecar as letras com relação à inspiração dos artistas para compor, mas apontar trechos que dialoguem com o tema da comunicação e seus desdobramentos na atualidade. A partir dos trechos das músicas serão feitas algumas relações com conceitos e teorias — das mais variadas.

Antes de entrar na análise das músicas, é importante abrir espaço para o livro “Admirável Mundo Novo” (1932), de Aldous Huxley — cujo título evidencia sua influência nas músicas em questão. O romance que se passa em 2540 é extremamente futurista, denunciando a perspectiva de uma sociedade totalitária deslumbrada pelo avanço da ciência. Huxley antecipa desenvolvimentos em tecnologia reprodutiva e manipulação psicológica, deixando muitos questionamentos sobre a vida contemporânea.

No romance distópico, o governo (central e autoritário) se encarrega de evitar qualquer conflito, mantendo a população sempre feliz. Nesse contexto, não há espaço para contestações, incertezas ou depressão e, para isso, são distribuídas pílulas pelo próprio governo (chamadas “soma”) para objetivar o prazer e a felicidade das pessoas.

Há uma série de regras que devem ser cumpridas e valores que não existem, como: família, amor, religião, privacidade e dúvida, por exemplo. Os bebês são gerados em laboratórios e são modificados geneticamente, fazendo com que as pessoas nasçam com características pré-determinadas, de acordo com sua casta. Isso mostra o quanto o autor estava à frente de seu tempo, pois a fertilização in vitro só foi realizada 40 anos depois da publicação de seu livro.

De acordo com a casta pertencente, as pessoas recebiam informações sobre como ser e agir, anulando qualquer individualidade e liberdade de escolha. Dessa forma, os pertencentes às castas superiores tinham suas ações modeladas para um comportamento de elite, enquanto as pessoas da casta mais baixa eram biologicamente fabricadas para servir, sem reclamar. Não havia consciência sobre a injustiça presente nessa situação, pois a sociedade era totalmente manipulada para, apesar de tudo, ser feliz.


Partindo do contexto do livro e de todas as questões que ele sugere, é possível inferir algumas colocações nas músicas. Para ficar mais organizado o pensamento, será feita uma análise de cada vez, explorando todos os trechos com potencial inclinação para a comunicação.

Admirável Gado Novo (1979) — Zé Ramalho

Vocês que fazem parte dessa massa
Que passa nos projetos do futuro

Nesse trecho inicial é possível atribuir a diminuição das particularidades à massificação do povo. Outro ponto interessante é que esta mesma “massa” está ligada a projetos do futuro, portanto, a massificação não é em vão — tem um propósito e tem algo/alguém se beneficiando dela.

Essa homogeneização da sociedade pode ser vista na Teoria da Agulha Hipodérmica, formulada pela Escola Norte-Americana na década de 1930. Nessa época, os estudos giravam em torno da compreensão das influências da comunicação no comportamento das pessoas. A Teoria baseou-se na passividade do receptor, que responderia aos estímulos causados pelas mensagens de forma apática, massiva e sem questionar.

Essa Teoria é, pois, tida como limitada e defasada por ter um fundamento extremamente simplista e genérico. Nela, os indivíduos são vistos como equivalentes e, portanto, a forma com que recebem as mensagens também é a mesma. Os estudos posteriores criticaram-na por não considerar quaisquer particularidades: cultural, política ou social.

É duro tanto ter que caminhar
E dar muito mais do que receber

Esse trecho retrata muito bem a busca pelo Capital Social, explicada por Raquel Recuero. Esse Capital almejado corresponde aos recursos mobilizados através dos laços (conexões) sociais feitos em rede. Nesse contexto, cada ferramenta permite determinados tipos de laços, variando entre fracos e fortes, alterando, portanto, o tipo de investimento por parte dos atores sociais.

Além disso, os benefícios obtidos pelo Capital Social estão muito ligados ao acesso, seja a lugares ou informações. Tal acesso não estaria disponível de outro modo, se não através dos investimentos dos laços sociais. Um ponto importantíssimo para se destacar é a finitude do recurso — o que gera competição entre os atores. Para Recuero (2012), não é possível ter uma visibilidade igualitária nas redes, uma vez que a atenção de todos está concentrada em alguns.

E ter que demonstrar sua coragem
À margem do que possa parecer
E ver que toda essa engrenagem
Já sente a ferrugem lhe comer

Essa estrofe pode ser analisada sob a problemática da diferença da vida mostrada nas redes sociais e a vida real. O que é postado é apenas uma pequena parcela — escolhida para exposição — da vida das pessoas. Desse modo, os usuários vão sempre escolher facetas que eles querem mostrar de sua vida, suprimindo os momentos em que é vulnerável e maximizando os momentos felizes.

Nesse contexto, essa “coragem” escancarada para os outros e o fracasso escondido corroboram para a manutenção desse ciclo, dessa engrenagem. Esse sistema, porém, é muito prejudicial, pois gera comparação e competição entre as pessoas. Assim, os usuários participam dessa engrenagem à medida que compartilham uma vida perfeita e são, também, corroídos por ela.

Êh, ô, ô, vida de gado
Povo marcado
Êh, povo feliz!

O refrão da música traz algumas provocações a serem discutidas. A escolha da palavra “gado” para representar o povo pode ser relacionada, de novo, à massificação da população. Além disso, refere-se à obediência, uma vez que o gado só obedece às ordens do produtor, não tendo o poder de questionar, por ser irracional.

“Povo marcado”, sob o viés da comunicação, pode ser entendido como referência aos estereótipos e aos rótulos da sociedade. Atualmente a população está cada vez mais dividida em pequenas comunidades e, assim, há o grupo dos fãs de K-pop, o grupo dos fãs de HQ’s, o grupo das pessoas que fazem cosplay, etc.

“Povo feliz” faz uma clara alusão à felicidade compulsória da sociedade do livro de Huxley. Relacionando essa felicidade ao cenário comunicacional atual, é possível fazer duas leituras:

1) A felicidade forjada e estampada nas redes sociais;

2) A felicidade adquirida pelo uso dos softwares. No documentário da Netflix “O Dilema das Redes” (2020) o cientista da computação Tristan Harris diz que quando estamos desmotivados ou entediados é possível reverter nosso estado de espírito através de uma “chupeta virtual” particular — o celular. Isso pode se dar pela comparação com pessoas “inferiores” a nós, inflando o nosso ego, por exemplo.

Lá fora faz um tempo confortável
A vigilância cuida do normal

Esse trecho pode levantar uma questão mais sociológica sobre o não aproveitamento do tempo e do mundo do lado de “fora”. Muitas vezes as pessoas passam o dia inteiro dentro do escritório ou do quarto, trabalhando ou mexendo nas redes sociais por lazer. Assim, não se dão conta do que se passa do lado de fora, se faz calor ou frio, se o tempo está ensolarado ou chuvoso. “Perdem” o seu tempo cercado de tecnologias em salas escuras.

A questão da vigilância é muito presente e normalizada na atualidade, uma vez que estamos sendo monitorados cada vez mais. O Capitalismo de Vigilância, muito alimentado pelos algoritmos e pela inteligência artificial, é uma espécie de capitalismo de informações e dados na web.

As grandes empresas de tecnologia trabalham sobre os dados fornecidos pelos usuários (mediante a política de privacidade), além dos dados colhidos a partir do uso das plataformas. As informações sobre o é pesquisado, o que é compartilhado, comentado e curtido são armazenadas e usadas posteriormente para as publicidades serem mais assertivas. As recomendações de vídeos, por exemplo, se baseiam nas preferências dos usuários.

Os automóveis ouvem a notícia
Os homens a publicam no jornal

É possível observar aqui a humanização das coisas, pois automóveis não ouvem — quem ouve é o ser humano. Nesse contexto, é pertinente associar os estudos de Marshall Mcluhan sobre os meios de comunicação. O teórico canadense pensava os meios como extensões do homem, uma espécie de “prótese técnica”, estabelecendo praticamente uma relação simbiótica entre a tecnologia e o homem. Por exemplo: os celulares, computadores e até mesmo a “nuvem” seriam como extensões da memória humana.

O povo foge da ignorância
Apesar de viver tão perto dela

Pode-se estabelecer uma relação, nesse trecho, com a falsa liberdade de escolha observada nas redes e a impotência das pessoas diante dela. Por mais que reconheçamos a vigilância sobre nossas escolhas e dados, é difícil fugir desse sistema. Até mesmo quando pensamos escolher algum vídeo para assistir, por exemplo, ele nos foi indicado a partir de nossas informações colhidas pelas empresas de softwares. Então, por mais que tenhamos uma infinidade de vídeos para escolher, tendemos a optar pelos recomendados, pois os algoritmos nos conhecem muito bem.

E sonham com melhores tempos idos
Contemplam esta vida numa cela

Apesar do “aprisionamento” dos usuários, o vislumbre de um futuro melhor se faz presente. Esse futuro é contemplado numa cela e, atrevendo-me a alterar essa obra-prima da música brasileira, também é contemplado numa tela. A vida alheia é alvo de olhares e, seguida deles há a contemplação —admiramos e desejamos a vida dos outros.

Admirável Chip novo (2003) — Pitty

Pane no sistema, alguém me desconfigurou
Aonde estão meus olhos de robô?

Os primeiros versos da música já indicam, através de uma linguagem típica de sistemas de informação, a crítica à maneira como a tecnologia está sendo usada. Os indivíduos são configurados, como produtos, para agirem mediante uma programação externa.

Essa configuração se faz também presente no livro de Huxley, com relação às distintas castas. Cada indivíduo é pré-programado em laboratório, sendo biologicamente criado para agir seguindo às atividades destinadas a determinada casta, sem reclamar, nem questionar sua condição.

Relacionando essa programação às redes sociais e aos softwares em geral, a máxima defendida no documentário da Netflix “O Dilema das Redes” (2020) é: “se você não está pagando por algum produto, então, você é o produto”. Há uma desumanização, devido aos “olhos de robô”, seguida da manipulação. Tal expressão simboliza, claramente, a manipulação do que vemos e até mesmo a maneira como percebemos.

Eu não sabia, eu não tinha percebido
Eu sempre achei que era vivo
Parafuso e fluído em lugar de articulação
Até achava que aqui batia um coração

A não percepção imediata da manipulação faz parte do sistema e a falsa sensação de liberdade, também. De novo, há a desumanização do indivíduo, enxergado como mera máquina, sem coração, pronta para manobrar a partir de forças externas.

Nada é orgânico, é tudo programado
E eu achando que tinha me libertado

Esse trecho aponta, de forma explícita, a configuração presente na vida dos indivíduos. No âmbito da comunicação, muitas vezes as pessoas pensam em manipulação somente através dos grandes meios, como TV, rádio e mídia impressa — adicionando também a internet, com as redes sociais. Porém, pouco é falado sobre as plataformas de streaming e os algoritmos programados para colher informações dos usuários.

Muitas pessoas se julgam livres da vigilância e da coleta de dados por não terem redes sociais, mas passam horas na Netflix, por exemplo. Os filmes recomendados são resultados de uma análise das preferências e das preterições dos usuários observadas pela plataforma. Portanto, “nada é orgânico”.

Mas lá vem eles novamente e eu sei o que vão fazer
Reinstalar o sistema

Nesse trecho é possível associar a manipulação a um ciclo vicioso, onde sempre vai haver imposições. Quando os indivíduos pensam estar livres de algum preceito, o sistema o substitui por outra determinação. Na esfera comunicacional, pode-se associar novamente às pessoas que, por não estarem nas redes sociais, acreditam que fazem escolhas de forma livre, quando não é bem assim.

Pense, fale, compre, beba
Leia, vote, não se esqueça
Use, seja, ouça, diga
Tenha, more, gaste e viva

Pense, fale, compre, beba
Leia, vote, não se esqueça
Use, seja, ouça, diga

Com essa quantidade de verbos no imperativo, a crítica às convenções sociais é clara. Os indivíduos, desde muito cedo, são expostos a um mundo que tende a inibir a capacidade humana de fazer escolhas e de interpretar, seja pela mídia, pelo governo ou pela própria sociedade. Nesse contexto, a imposição de ações e opiniões se torna uma realidade, cabendo aos indivíduos perceber isso e tentar burlar a “regra”.

Não senhor, sim senhor, não senhor, sim senhor

Esse verso confirma a obediência da massa em meio à diminuição de sua autonomia e individualidade, deixando nítido o que deve ou não ser feito. Além disso, pode-se apontar a facilidade em que as pessoas mudam de opinião: “não”, “sim”. Relacionando com as redes sociais e o protagonismo das digital influencers, muitas pessoas seguem cegamente o que elas falam, indicam e fazem, simplesmente por serem elas fazendo.

Considerações Finais

O processo de analisar as músicas sob a luz da comunicação foi bem interessante, pois deslocou, em partes, o significado inicial delas. Surpreendi-me em estabelecer mais relações com a música de Zé Ramalho porque preliminarmente ela foi feita em um contexto muito diferente do proposto por essa análise — a questão agrária.

Sem dúvida, as provocações de ambas as músicas se convergem, como por exemplo, a falsa liberdade de escolha e a auto-depreciação do “sistema”, o que enriquece as idéias propostas aqui. Além disso, a contextualização do livro serviu como um bom ponto de partida para o aprofundamento posterior das letras das músicas.

Referências

A atualidade chocante de Admirável Mundo Novo. Outras Palavras, Online, 2015. Disponível em: <https://outraspalavras.net/tecnologiaemdisputa/a-atualidade-chocante-de-admiravel-mundo-novo/>. Acesso em: 3 fev. 2021.

Admirável Mundo Novo: ideias insanas de antigamente que se tornaram realidade. Canal Tech, Online, 2016. Disponível em: <https://canaltech.com.br/entretenimento/admiravel-mundo-novo-previsoes-para-um-mundo-contemporaneo-67205/>. Acesso em: 3 fev. 2021.

Análise da música: "Admirável Chip Novo" (Pitty) e a intertextualidade com o livro "Admirável Mundo Novo" (Aldous Huxley). Interagindo com a Linguística, Online, 2010. Disponível em: <hhttp://interagilinguistica.blogspot.com/2010/11/analise-da-musica-admiravel-chip-novo_25.html>. Acesso em: 3 fev. 2021.

O meio é a mensagem, porque também é conteúdo. Meio & Mensagem, Online, 2017. Disponível em: <https://www.meioemensagem.com.br/home/opiniao/2017/01/05/o-meio-e-a-mensagem-porque-tambem-e-conteudo.html>. Acesso em: 3 fev. 2021.

PITTY. Admirável Chip Novo. Letras, Online, 2021. Disponível em: <https://www.letras.mus.br/pitty/admiravel-chip-novo/>. Acesso em: 3 fev. 2021.

RAMALHO, Z. Admirável Gado Novo. Letras, Online, 2021. Disponível em: <https://www.letras.mus.br/ze-ramalho/49361/>. Acesso em: 3 fev. 2021.

RECUERO, R. O capital social em rede: como as redes sociais na internet estão gerando novas formas de capital social. Contemporânea, v.10, n.3, p.597-617, 2012. Disponível em: <https://periodicos.ufba.br/index.php/contemporaneaposcom/article/view/6295/4671>. Acesso em: 3 fev. 2021.

SOUZA, T. Análise do discurso da música “Admirável Gado Novo” de Zé Ramalho e sua relação com o livro admirável mundo novo. XXI Congresso Nacional de Linguística e Filologia, Anais...Online, Rio de Janeiro, 2017, p. 1601-1611. Disponível em: <http://www.filologia.org.br/xxi_cnlf/cnlf/tomo2/0114.pdf>. Acesso em: 3 fev. 2021.

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