SKAM e os ‘superpoderes’ do engajamento


SKAM é uma série adolescente norueguesa produzida entre 2015 e 2017, pela empresa pública NRK, para distribuição no seu canal online NRK P3 e, também, na emissora juvenil tradicional da rede. Ao longo de suas quatro temporadas o programa explora os percalços enfrentados pelos adolescentes nesta fase da vida. Com abordagens muito diferentes das séries estadunidenses como, por exemplo, The OC (2003-2007, Warner) e Gossip Girl (2007-2012, CW), a trama escandinávia busca representar, através da proximidade e da identificação, os jovens do mundo todo.

Como iremos discutir mais adiante, SKAM foi norteada pelos novos modos de distribuição e engajamento do ambiente da convergência midiática. A partir da hibridização e da imbricação de diferentes plataformas e linguagens, que compõe o universo ficcional, a atração atravessou fronteiras geográficas e etárias. Nesse sentido, as ações dos telespectadores interagentes eram demandas pela própria estrutura narrativa e, dialogicamente, teriam efeito na produção subsequente. Como pontua Sundet (2017, Online),

SKAM claramente guiou-se a partir da cultura da convergência e da cultura participativa, trazendo novos componentes à narrativa, tal como o seu aspecto em “tempo real, e de seguir a lógica do serviço público que difere da maioria de outras franquias transmidiáticas já que não buscava criar fãs como leais consumidores, mas como (jovens) cidadãos engajados (livre tradução do autor).

Neste sentido, de modo geral, SKAM foi norteada por duas questões centrais: o modo de desenvolvimento, que abrange desde a criação dos roteiros até as temáticas abordadas nos arcos narrativos, e as ações de distribuição e engajamento adotadas pela NRK que dialogam com os hábitos culturais dos jovens.

A construção e a representação

A pesquisa que deu origem a SKAM foi baseada em um método denominado modelo NABC, utilizado pela rede desde o início dos anos 2000, no qual são feitas profundas entrevistas com o público a fim de compreender suas vontades (o público-alvo eram adolescentes de 16 anos, recém-chegados ao ensino médio). Tento como fio condutor os percalços vividos por adolescentes nessa nova fase de constantes mudanças e descobertas, cada temporada da série é protagonizada por um personagem diferente.

Para trazer verossimilhança à trama, o casting procurou atores e atriz inexperientes - e da mesma faixa etária dos telespectadores em potencial - servindo como consultores e guias das necessidades dessa parcela da sociedade norueguesa. Além disso, o formato de produção permitia que a equipe pudesse localizar nas ações de engajamento, principalmente na aba de comentários do site oficial, as demandas que, por fim, influenciaram no desdobramento da narrativa. Dessa forma, o enredo estava em construção e os fãs eram parte fundamental desse processo.

Tendo como pano de fundo o colegial, o programa busca a dialogar diretamente com o público através das especificidades de cada personagem, apostando na interação e em novas maneiras de falar sobre velhos temas. Os arcos narrativos exploram enquadramentos surpreendentes de questões como, por exemplo o bullying (e o contemporâneo ciberbullying), os transtornos de ansiedade e mentais, as sexualidades, os assédios, o estupro e as complexidades das relações humanas.
 

Na primeira temporada de SKAM é protagonizada por Eva Mohn (Lisa Teige). A personagem se vê vítima de uma relação precipitada, onde sente que perdeu sua identidade e mantém-se refém do próprio amor. Ela desconfia de Jonas (Marlon Valdés Langeland) o tempo todo, mas eles fazem as pazes e se mantém juntos até que os problemas voltem a assombrá-los. Em certo momento, quando Eva (Lisa Teige) acredita que o namorado a traiu e acaba ficando com Chris (Herman Tømmeraas), que também é comprometido. Nesse momento, a protagonista se sente sozinha como nunca, mesmo contando com o apoio de suas amigas. Sofre bullying e é excluída de eventos e participação social. No entanto, como parece acontecer recorrentemente no enredo de SKAM, o final da temporada carrega apoio a todos que se sentem da mesma maneira: Eva (Lisa Teige) descobre que precisa ser feliz consigo mesma acima de tudo.
 

Na segunda temporada, mudamos o foco para Noora Sætre (Josefine F. Pettersen). A personagem enfrenta um dilema entre o amor de William (Thomas Hayes) e a amizade de Vilde (Ulrikke Falch), além dos problemas externos com a família e a suspeita de ter sido estuprada por Nico (Fredrik Vildgren), irmão de William, onde se vê vítima de ameaças dele. A possibilidade do estupro é reforçada por fotos dela nua que ele guarda em seu celular. Noora (Josefine F. Pettersen) passa então por um momento de ansiedade, negação e isolamento quando percebe o que poderia ter acontecido, mas com a ajuda das amigas toma coragem e enfrenta o assediador e o medo. Nesse momento, a série cumpre um fundamental papel social indicando, inclusive, leis norueguesas que criminalizam as atitudes de Nico (Fredrik Vildgren), podendo ser considerada fonte de informação para jovens que passam pelas mesmas situações possam se sentir resguardados legalmente e consigam seguir o exemplo da personagem.
 

Na temporada em que Isak Valtersen (Tarjei SandvikMoe) conhece Even (Henrik Holm), a narrativa é focada no processo de amadurecimento identitário dos personagens. Assim como todo jovem gay, Isak (Tarjei SandvikMoe) precisa aprender como lidar com seus amigos, família e também com a comunidade LGBT+, onde a evolução do personagem constrói um amplo espelho da realidade.

O personagem assume sobre si a categorização e preconceitos construídos socialmente e passa a reproduzir comportamentos homofóbicos, pretendendo não se associar com gays afeminados, por efeito, mais estigmatizados. Como aponta Bourdieu (2012, p.144), o ‘dominado’ passa “a viver envergonhadamente a experiência sexual que, do ponto de vista das categorias dominantes, o define, equilibrando-se entre o medo de ser visto, desmascarado, e o desejo de ser reconhecido pelos demais homossexuais”, assim como representado por Isak. Outro personagem gay, Eskild (Carl Martin Eggesbø), mais velho e experiente, faz o papel do movimento LGBT+ na desconstrução dessa perspectiva levando o personagem (e o público) a refletir sobre as maneiras de enfrentar tais dificuldades que promovam maior aceitação pessoal e que, por fim, desenvolvam positivamente a autoestima.

Em outras discussões muito interessantes são levantadas diversas questões relacionadas a homossexualidade e religião que levam um conforto a jovens LGBT+ religiosos ou de famílias religiosas. Isak (Tarjei SandvikMoe) então consegue se abrir com a sua mãe e conviver melhor com a fé dela. Além disso, também é abordado o transtorno de bipolaridade de Even (Henrik Holm), momento no qual ele precisa ajudar a si mesmo e ao novo namorado que convive com mudanças repentinas de humor e episódios de surto que podem causar sérios problemas. Por fim, o auxilio mútuo desenvolvido, por ele e Even (Henrik Holm), consegue promover reflexões sobre os limites das nossas relações e do apoio e suporte dos quais todos precisamos.
 

A última temporada de SKAM é protagonizada por Sana Bakkoush (Iman Meskini), uma garota muçulmana que enfrenta recorrentes dilemas por viver na sociedade ocidental. Desse modo, a personagem se sente à margem e promove reflexões sobre a fé: tanto internamente, dela para/com a religião, quanto à própria relação da sociedade norueguesa com o islã. Pressionada, Sana (Iman Meskini) começa a criar contas fake para divulgar mensagens pessoais que Sara (Kristina Ødegaard) trocava com Isak (Tarjei SandvikMoe), quando eles namoravam. O ciberbullying advindo de fortes repressões sociais sofridas pela personagem deságuam numa corrente de ódio. Assim como na vida real, o anonimato dá maior sensação de força aos oprimidos (e a todos em geral) e acaba sendo usado de maneira destrutiva. Sana (Iman Meskini) se vê destituída do que havia construído, suas amizades, e precisaria consertar o que foi feito para não atingir outras pessoas. Em contrapartida, sua experiência pode ser levada ao plano do real e usada para conscientizar e discutir essas questões entre os jovens.

O poder do engajamento


SKAM adotou um modelo de distribuição híbrido no qual os episódios eram disponibilizados on-line e também na televisão. Usando um conceito de publicação em “tempo real”, as cenas eram liberadas no site no momento que ocorriam, em forma de pílulas, e no final da semana todas essas micro narrativas seriam unidas em um único episódio.

A trama também explorava arcos narrativos externos, criando um grande universo transmidiático. As mensagens trocadas pelos personagens eram postadas em tempo real, permitindo uma imersão dos telespectadores. As ações propiciavam ao público vivenciar a mesma angústia da espera (de uma resposta) dos personagens, ao atualizar o site o tempo todo ou esperar a notícia da publicação nas comunidades de fãs. O canal norueguês também criou contas no Instagram para os principais personagens de SKAM, os perfis poderiam ser acompanhados seguindo a mesma lógica de imersão e narrativa paralela.


Mensagens trocadas pelos personagens no site oficial, com seção de comentários disponível.


Instagram de Isak invadido por Eskild, na última festa da série. "Não digam pro Isak que estou com o celular dele"

O modo de construção do universo narrativo de SKAM se deve tanto aos hábitos de consumo e culturais do público alvo quanto aos preceitos da NRK de que o enredo não poderia se limitar a simples sedução dos adolescentes, mas ser um meio de informação e suporte aos problemas diariamente enfrentados por eles. Nesse contexto, o desenvolvimento seguindo essa lógica abre possibilidades de criação maiores do que no modelo comercial. Como ressalta Jenkins (2014, p. 157), “[...] as estruturas de rede de TV e os estúdios ainda privilegiam receitas de publicidade de conteúdo de primeira execução”.

A forma de desenvolvimento e engajamento de SKAM promove um modo de acompanhamento sem precedentes: não-linear e, também, sem indicativos de quando novas informações estariam no ar, o que gerou a necessidade de engajamento em “tempo real”, tal como a distribuição. Muitas vezes ignorada pelas grandes redes comerciais, essa face da cultura de fãs pode ser explorada e tornar-se peça chave no tabuleiro da série escandinávia. É, de fato, um grande exemplo dos universos ficcionais descritos por Jenkins (2009, p. 161). Como ponta o autor, esses programas “[...] não podem ser completamente explorados ou esgotados em uma única obra, ou mesmo em uma única mídia”.

De acordo com Borges e Sigiliano (2017, p. 198) a qualidade de um produto audiovisual de ficção está relacionada tanto as próprias maneiras de contar a história, “[...] que apresentam hibridização de linguagens e não se esgotam em apenas uma mídia”, quanto à capacidade de promover o engajamento dos telespectadores. Nessa perspectiva, SKAM está à frente da grande parcela de narrativas ficcionais seriadas produzidas atualmente. Não somente no complexo tratamento dado às temáticas abordadas quanto aos múltiplos arcos narrativos que convergem durante a série e na alteração das perspectivas, mas também pela forma de interação direta com o conteúdo transmidiático, além da possibilidade de interferir, ainda que indiretamente, no desdobramento da produção.

Expansão transnacional

Segundo Sundet (2017) SKAM foi transformada em fenômeno mundial pelas ações de engajamento seguindo a mesma lógica de propagação utilizada na publicidade das primeiras temporadas. A autora afirma que em contrapartida das narrativas transnacionais tradicionais, a série não ganhou espaço através do mainstream ou da mídia convencional, mas pelo contato entre fãs de diversos países.

Apesar de ser em norueguês e não apresentar legendas, o conteúdo não era bloqueado geograficamente, ou seja, o acesso era livre em qualquer lugar do mundo. Isso permitiu que as comunidades de fãs começassem a disponibilizar traduções e não somente dos episódios, mas também do conteúdo transmídia como, por exemplo, as mensagens em inglês, nos comentários do site oficial.

Diante do sucesso internacional, os produtores passaram a enfrentar problemáticas em relação aos direitos autorais da trilha sonora e precisaram bloquear os episódios da série apenas para IP’s noruegueses. Ainda assim, os fãs disponibilizaram links pelo Google Drive com legendas em diversos idiomas, produzidas em todos os cantos do mundo. Como pontua Sundet (2017, Online), “Enquanto SKAM foi originalmente criada como um ‘azarão’ no qual ‘tudo era permitido’, sua crescente popularidade internacional e o burburinho forçaram a produção em caminhos de distribuição um pouco mais tradicionais” (livre tradução do autor).

O engajamento foi responsável não somente pela divulgação e popularização interna, mas também por sua visibilidade internacional. A série agora ganhará versões produzidas nos Estados Unidos, Itália, Holanda, Alemanha, Espanha, e França. A versão americana será produzida por Simon Fuller (criador do American Idol) e terá Julie Andem (produtora original da série) no comando. A versão italiana já está sendo produzida e as estratégias de marketing já se iniciariam: Eva e Martino (o Isak da versão) já tem suas contas no Instagram.

No Brasil, a página no Facebook Portal SKAM Brasil conta com 125 mil seguidores e detém, também, um grupo na rede com 70 mil pessoas além de um perfil no Twitter com 27 mil seguidores. No grupo, eram postadas as traduções das mensagens dos personagens em português. A página agora tem postado informações relativas a versão já em produção. Vale ressaltar que parte desse conteúdo é minerado e selecionado pelos fãs que fazem parte desse grupo fechado. 
Mensagens traduzidas no Portal SKAM Brasil

Em 2017, Isak e Even ganharam um concurso no portal estadunidense, E! News, concorrendo com personagens de diversas franquias solidificadas nesse mercado. Segundo Sundet (2017, Online), o casal de uma série

em norueguês, de baixo orçamento, um drama adolescente online que sequer foi ao ar nos Estado Unidos ter sido capaz de ganhar de casais de séries adolescentes bem estabelecidas nos EUA demonstra a força de sua fanbase e do engajamento do qual foi capaz.

Isak e Evenganharam a votação popular do portal americano E! News

SKAM é um exemplo de narrativa experimental, transmidiática e seu sucesso é representativo da necessidade de repensar os modelos tradicionais de produção e distribuição de conteúdos audiovisuais. Enquanto a televisão se debate para manter as audiências, baseadas e medidas a partir de “[...] um sistema de avaliação de valor, para a condução de acordos e negócios” (JENKINS et al, 2014, p. 156). A série escandinava de baixo orçamento, produzida por uma empresa pública de comunicação, ganhou o mundo e atravessou fronteiras através dos ‘superpoderes’ das comunidades de fãs.

Referências:

BORGES, G; SIGILIANO ,D. A qualidade na ficção seriada lusófona. In: CUNHA, I. F.; CASTILHO, F.; GUEDES, A.P. (Orgs.). A ficção seriada e o espaço lusófono: conceitos, trânsitos e plataformas. São Paulo/Lisboa, p. 183-202, 2017.

BOURDIEU, P. A dominação masculina. 11.ed. Trad.de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.

JENKINS, H. Cultura da Convergência. 2 ed. São Paulo: Aleph, 2009.

JENKINS, H.; GREEN, J.; FORD, S. Cultura da conexão: criando valor e significado por meio da mídia propagável. São Paulo: Aleph, 2014.

SUNDET, V. From secret online teen drama to international cult phenomenon: The global expansion of SKAM and its public service mission. The Scandinavian Invasion: The Nordic Noir Phenomenon and Beyond. Oxford: Peter Lang, 2017.

1 Comentários

  1. Adoreei tudo aqui, mostrou bem como a série é e espero que todos possam saber como a série é maravilhosa.

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