O negro na teledramaturgia: antigos estereótipos e a busca por uma nova representação

Ao ligarmos a TV após um dia de trabalho e assistirmos as produções da teledramaturgia com maior audiência no país, qual será o cenário étnico racial mostrado? Será que ele é fiel com nossa sociedade? Infelizmente a resposta é não. Segundo Joel Zito Araújo (2008, p.980) até o final dos anos 90, nas novelas produzidas pela Rede Globo, um terço das tramas não apresentava nenhum personagem negro no elenco, e em apenas outro terço o número conseguia ultrapassar – levemente - o total de 10% do total do elenco.

As telenovelas exercem enorme influência na construção das percepções dos telespectadores sobre o mundo social e o lugar que elas ocupam dentro (LOPES, 2009). Esta questão se torna mais central, ao relembramos que uma das buscas da Rede Globo, era que suas telenovelas difundissem a realidade do brasileiro. Isto é, que as produções funcionassem como uma espécie de espelho da realidade.

Grande parte da população brasileira acredita e, difunde, a ideia que o Brasil, graças ao alto grau de miscigenação, é um país onde a democracia racial existe. Porém, ao comparamos os dados do IBGE de 2014, a maioria da população é negra, cerca de 54%, mas essa marca está longe de ser atingida nas produções audiovisuais nacionais.

Além do baixo índice quantitativo de personagens negros ou não-brancos nas telenovelas, ao analisarmos qualitativamente o cenário continua problemático. A verdade é que o negro ainda não tem uma identidade individual no Brasil e isso é refletido na nossa teledramaturgia, através das empregadas domésticas, dos escravos, das negras sensuais, do malandro, o traficante, etc. Nesse contexto, ao longo de nosso retrospecto histórico conjuntural a teledramaturgia apenas perpetuou estereótipos racistas.

O negro e a teledramaturgia brasileira


A presença do negro na formação do Brasil teve início com a captura de grupos étnicos africanos de suas tribos para serem feitos de escravos nas terras da colônia portuguesa. Desde então negros, brancos e índios misturaram-se, construindo uma população miscigenada, e com sua maioria declarada de negros. Já no século XX, a mídia se torna fonte capaz de propagar a ideia de nação e a televisão tornou-se o principal veículo desta propaganda a partir dos anos sessenta.
 
Conforme mostra Maria Immacolata Vassallo de Lopes (2003, p.31), a telenovela é a produção audiovisual mais consumida pela população brasileira. A representatividade do formato é tão poderosa que ainda hoje, com as novas plataformas de distribuição de conteúdo, o folhetim é um dos principais ditadores da moda e dos modismos, dos conceitos sociais e políticos e da forma linear de difusão de pensamentos no Brasil.

Uma das primeiras telenovelas com negros em seu elenco foi A Gata, escrita por Ivani Ribeiro, baseada no original de Manuel Muñoz Rico, e que tinha como enredo os problemas dos escravos das Antilhas no início do século XIX. Mesmo sendo protagonizada por uma a personagem branca (Marisa Woodward) a trama foi um fracasso de audiência. Conforme indicam as pesquisas realizadas pelos patrocinadores da telenovela na época, o motivo era o grande número de escravos na trama (LEE-MEDDI, 2009). Para solucionar a questão, os autores “providenciaram” uma epidemia matou metade dos escravos da senzala. Apesar de trama ser composta por um grande número de atores negros, nenhum deles teve o nome creditado junto ao restante do elenco branco da atração.

Ainda em 1964 estreou O Direito de Nascer a primeira telenovela de grande sucesso no Brasil. O folhetim na verdade era uma adaptação de Talma de Oliveira e Teixeira Filho ao texto original do cubano Félix Caignet. A história da negra Dolores, interpretada por Isaura Bruno, comoveu todo o país. Dolores, era empregada de uma abastarda e poderosa família, que ao ver Maria Helena (Nathália Timberg), filha de seu patrão, engravidar e ter que, por imposição do preconceito sofrido na época por ser mãe solteira, abandonar o filho, pega-o para seus cuidados, o criando como seu próprio filho. Mamãe Dolores e seu filho adotivo Albertinho Limonta (Hamilton Fernandes) levaram o país às lágrimas.
 

Isaura Bruno se tornou a primeira atriz negra a fazer grande sucesso diante do público. Porém, com ela iniciou-se um dos maiores estereótipos da mulher negra nas telenovelas, a da benevolente mãe preta gorda, de colo amplo, pronta para acolher os filhos de quem fosse. A popularidade de Isaura Bruno logo foi esquecida, por não haver papéis à altura do seu talento e carisma, a atriz acabou interpretando pequenos papéis subalternos até a sua morte.

Os anos 1960 marcaram um raro momento da história do negro nas telenovelas brasileiras. Estrelada por Yolanda Braga, a primeira protagonista negra de uma telenovela no Brasil, a trama A Cor da Pele foi a primeira produção a propor uma discussão sobre o preconceito racial no Brasil. A história de amor inter-racial entre a mulata de olhos verdes Clotilde (Yolanda Braga) e o português Dudu (Leonardo Villar), trouxe para a televisão o primeiro beijo inter-racial da sua história.
 

A Rede Globo começou de maneira no mínimo estranha na inserção de negros em suas telenovelas. Inspirada na ida do homem à lua, Os Estranhos, exibida em 1969, abordava a temática dos extraterrestres. A novela era protagonizada por Regina Duarte, Rosamaria Murtinho, Cláudio Correa e Castro, seres que vinham do planeta Gama Y-12, e por Pelé. Entretanto, presença inesperada do rei do futebol brasileiro, bem no auge da sua carreira e, como protagonista, não contribuiu em nada para a inserção real dos negros nas telenovelas.
 

Pelé vivia Plínio Pompeu, escritor rico e dono de uma ilha, que se deparava com os extraterrestres. O personagem do jogador tinha pouco texto e em nenhum momento teve um envolvimento amoroso dentro da trama. Nesse sentido apesar de protagonista, Pelé se tornou quase um figurante, um elemento meramente decorativo na produção. Segundo Jeocaz Lee-Meddi, caso o papel de Plínio tivesse sido entregue a um ator de verdade, a dimensão do crescimento e a importância na trama poderiam ter sido completamente diferentes.

Baseada no romance homônimo de Harriet Beecher Stowe, A Cabana do Pai Tomás, a telenovela homônima pode ser considerada o mais vergonhoso caso de racismo – até mesmo mundialmente – da teledramaturgia. A história é centrada no escravo Tomás, um homem de bom coração, que passa por vários e cruéis senhores de engenhos durante a Guerra da Secessão nos Estados Unidos. Produzida a partir de um grande orçamento, a novela foi pensada para alcançar um sucesso épico, entretanto a produção foi um fracasso, atingindo um resultado grotesco.
 

Para viver o protagonista negro a patrocinadora da telenovela exigiu que o papel fosse vivido pelo ator branco Sérgio Cardoso. Tal absurdo obrigou Sérgio Cardoso a ultrapassar todos os níveis de blackface que hoje conhecemos. O ator chegou a usar rolhas no nariz pintar o corpo com uma tinta negra, além de usar peruca de cabelo crespo. A novela estreou com vários tumultos e protestos, em um movimento liderado pelo jornalista e dramaturgo Plínio Marcos, em sua coluna diária no jornal Última Hora, que acreditava que o personagem deveria ser interpretado pelo ator Milton Gonçalves. Porém, nada adiantou, para alivio de muitos, a novela foi um fiasco em seus 205 capítulos. Apesar de todo o racismo escancarado, A Cabana do Pai Tomás teve o maior elenco negro até então.

A perpetuação dos estereótipos

“A ficção televisiva destinada ao negro mostra-o quase sempre como escravo, esperando a benéfica ação dos abolicionistas ou mesmo a bondade do seu senhor. Quando ambientado no período contemporâneo, o negro é favelado, bandido, empregada doméstica, traficante, ou aquele que “podia estar roubando, mas está trabalhando”. (FILHO, 2010, Online)
O apogeu da telenovela acontece nos anos 70, quando os grandes dramalhões são deixados de lado e as tramas passam a contar histórias que se aproximam da realidade e do cotidiano do brasileiro (COSTA et al., 2012). Nesse período, o negro se torna ainda mais coadjuvante e cada vez mais esquecido. Na época os personagens das tramas sequer tinham um amigo ou até mesmo algum vizinho negro. O negro apenas figurava em tramas paralelas e vivia personagens subalternas. Zezé Motta conta que ao fazer um curso de interpretação, chegou a ser abordada e questionada sobre o porquê de tamanho preparo se a mesma acabaria fazendo papel de empregada. Diante dessa realidade, deixou de fazer telenovelas por muitos anos, já que recusava-se ser a eterna serviçal nas telenovelas.

Na industrialização das telenovelas, os negros tiveram que gritar e protestar por papéis mais relevantes. Porém, nem sempre o grito era forte o suficiente diante do preconceito, e não foi capaz de cessar a série de estereótipos que estariam por vir. Os principais até hoje, em telenovelas de época ou contemporâneas, são:

  1. A mãe preta que faz tudo pelos patrões brancos.
  2. A empregada doméstica.
  3. O fiel jagunço.
  4. O escravo.
  5. A negra fogosa e sensual.
  6. O malandro.
  7. O traficante.
  8. O “negro perfeito”.
  9. O negro que só serve para compor o caráter de um personagem branco.

O GEMMA (Grupo de Estudos Multidisciplinares de Ação Afirmativa), traçou um perfil sobre “A raça e o gênero nas novelas nos últimos 20 anos” e o resultado mostra que o perfil dos principais personagens das telenovelas é bastante restrito.
 

A média dos personagens brancos, chega a atingir 90% das telenovelas e, isso, em uma sociedade onde cerca de 54% da população é formada por não-brancos. Ao falarmos de protagonistas, os dados se tornam ainda piores, do total, 52% das novelas foram protagonizadas por atrizes brancas, e 43% por homens brancos. Apenas 4% foram protagonizadas por mulheres não-brancas e 1% por homens não-brancos. E não existe qualquer diversidade, pluralidade dessas atrizes, 7 protagonistas não-brancas foram representadas por apenas três atrizes: Thaís Araújo, Camila Pitanga e Juliana Paes. No período em que a pesquisa foi realizada, nenhuma novela sequer teve como protagonista masculino um homem preto.


A busca por uma nova representação


“Pode-se dizer, então, que “Mister Brau” propõe uma crítica de valores ao apresentar para uma sociedade que está acostumada a ver no horário nobre negros apenas como empregados domésticos e confidentes dos protagonistas, um casal afrodescendente com condição financeira elevada, relação sólida e uma carreira bem sucedida. O seriado propõe, ainda, usando a ironia uma discussão sobre racismo e pode ser apontada como uma tentativa de mudar o panorama do negro da televisão brasileira.” (VITORINO, 2016, p. 75-76)

Logo na sua estreia, em setembro de 2015, a série Mister Brau mostrou que viria para ser algo diferente do que antes era apresentado. O primeiro episódio é marcado pela “invasão” de Mister e Michele Brau em sua própria mansão. Seus vizinhos, Andrea e Henrique, os veem nadando, e decidem então chamar os seguranças, por acharem que os mesmos não poderiam ser donos daquela mansão.

E assim, a “implicância” de Andrea com o casal fica evidente desde o primeiro episódio. Andrea parece representar uma série de preconceitos que os negros, mesmo os ricos e bem-sucedidos, enfrentam no Brasil ainda hoje. Segundo VITORINO (2016), os estereótipos que são alimentados por Andrea durante o seriado, de que negros não podem morar em áreas nobres, que possuem profissões pouco valorizadas e não possuem cultura,já foram reforçados em diversas outras produções brasileiras.

Mister Brau é o primeiro seriado semanal protagonizado por um casal negro da emissora, e nele o elenco abrange personagens brancos e negros, apresentando também personagens coadjuvantes de variadas profissões. Outro ponto importante a ser mencionado é que cada integrante do elenco tem a sua particularidade, que pode ser apresentada na fala, nos gestos ou no modo de se vestir. Ou seja, há uma personalidade própria em cada um dos personagens.

Em diversos momentos as famílias de Mister e Michele Brau aparecem, o que mostra que não houve uma ruptura com suas raízes, o mesmo acontece com a figuração nas festas, e com os amigos do casal, que também contam em sua grande maioria com atores negros, junto com todos os músicos de Brau.

Na hora de lidar com o preconceito, como nas diversas situações em que Brau, Michele e Lima são confundidos com empregados, a ironia tende a prevalecer. O que não significa que os personagens se omitem nas situações, quando, por exemplo, ao confundir Lima com um jardineiro, Andrea tenta consertar a situação, o chamando de pardo, e a resposta obtida é:

(. . .)

Lima: Sou lá envelope pra ser pardo? Eu sou afro! Atuante e precoce!

(...) (MISTER BRAU, episódio 03)

O seriado consegue introduzir diálogos educativos sobre a discriminação racial no país. País que mesmo considerando racismo crime inafiançável e imprescritível, segue perpetuando situações como a de Jonathan Azevedo. Que interpretou o traficante Sabiá em A força do querer,e após declarar a vontade de ser galã em sua carreira, e não só traficantes, foi vítima de ataques racistas nas redes sociais.



Ao traçarmos a caminhada dos negros na teledramaturgia brasileira, podemos observar que ao longo dos anos houve uma modificação em sua representação. Entretanto, apesar de os atores negros terem ganhado cada vez mais destaque na teledramaturgia, na maioria das vezes a representação era norteada por estereótipos. Assim, mesmo com algumas ressalvas, Mister Brau se torna um marco na tentativa de mudança na representação do negro na teledramaturgia brasileira.

Referências

ARAÚJO, Joel Zito Almeida de. A negação do Brasil: o negro na telenovela brasileira. São Paulo: SENAC, 2000.

RIO GRÁFICA EDITORA. Melhores momentos – a telenovela brasileira. Rio de Janeiro: Rio Gráfica Editora, 1980.

Infográfico: A raça e os genêros nas novelas dos últimos 20 anos (GEMAA, da UERJ). Disponível em <http://gemaa.iesp.uerj.br/infografico/infografico3/>. Acesso em 22 de agosto de 2017.

FILHO, Nemézio. O Negro na Mídia: a construção discursiva do “outro” cultural. Disponível em <http://www.africaeafricanidades.com.br/documentos/10082010_22.pdf>. Acesso em 21 de agosto de 2017.

VITORINO, Jéssica. Identidades e estereótipos da negritude na dramaturgia televisiva: análise do seriado Mister Brau. Disponível em <http://www.ufjf.br/facom/files/2016/06/Jéssica-Vitorino-Versão-Final.pdf>. Acesso em 5 de agosto de 2016.

COSTA, Fernanda, et al. Telenovelas: um panorama da produção brasileira e a representação do negro. Disponível em: <http://www.rua.ufscar.br/telenovelas-um-panorama-da-producao-brasileira-e-a-representacao-do-negro/>.Acesso em: 22 ago. 2017.

LOPES, Maria Immacolata. Qualidade da Ficção Televisiva no Brasil: elementos teóricos para a construção de um modelo de análise. Disponível em <https://app.box.com/s/jvsjsynvt5yb7o8a1ouzul0cun5fmhnu. Acesso em: 22 ago. 2017.

LEE-MEEDI, Jeocaz. Os negros nas telenovelas. Disponível em <https://jeocaz.wordpress.com/2008/12/16/os-negros-nas-telenovelas/>. Acesso em: 22 ago. 2017.



2 Comentários