Monsters: o sensacionalismo no true crime

Por: Clara Gomes


Criada por Ryan Murphy e Ian Brennan, a série “Monsters” é uma antologia biográfica de criminosos que marcaram os Estados Unidos . Sua primeira temporada foi lançada em 2022 pela Netflix e teve como foco o assassino em série Jeffrey Dahmer. Inicialmente a trama foi promovida como uma minissérie, mas devido ao sucesso foi renovada para mais duas temporadas.

A segunda temporada de “Monsters”, divulgada com o subtítulo original de “A Lyle and Erik Menendez Story”, aborda o assassinato de José e Kitty Menendez pelos seus filhos Lyle e Erik em 1989. A temporada, que estreou em 19 de setembro de 2024, foi a mais assistida na Netflix por duas semanas seguidas após a estreia e contabilizou 506.5 milhões de horas assistidas entre 23 de setembro e 20 de outubro.


Diferente da primeira temporada, o crime cometido pelos irmãos Menendez já vem há alguns anos sendo revisto pela nova geração e o motivo dado por Lyle e Erik, antes ridicularizado pela imprensa da época, é cada vez mais visto como uma verdade. Os irmãos foram condenados em 1996 pelo assassinato dos pais com alegação da acusação que o crime foi por motivos financeiros, mas de acordo com a defesa, Erik e Lyle foram abusados sexualmente e psicologicamente pelo seu pai, José Menendez, o que os levou eventualmente a cometer os assassinatos.

Recentemente novas provas surgiram e corroboram com a versão da defesa, entre elas o depoimento de Roy Rosselló, ex-integrante da boyband Menudo, que relatou ter sofrido abuso sexual por parte de José, na época vice-presidente da gravadora RCA. O caso já era popular no TikTok e, junto com a grande repercussão da série, fez com que uma nova audiência para avaliar a tese da defesa fosse aberta pelo tribunal de Los Angeles.

Entretanto, mesmo com que a popularidade tenha, mesmo que indiretamente, ajudado no caso, os personagens reais da história não ficaram satisfeitos com o que foi retratado pela série de Ryan Murphy. Em declaração publicada por sua esposa na rede social X, Erik Menendez disse: “É triste para mim saber que o retrato desonesto da Netflix das tragédias que cercam nosso crime levou as verdades dolorosas vários passos para trás. [...] Então agora Murphy molda sua narrativa horrível por meio de retratos de personagens vis e terríveis de Lyle e de mim e calúnias desanimadoras.”

O true crime na ficção seriada

O ato de retratar crimes reais na mídia não é novo, ainda no século XVII eram produzidos panfletos nomeados “Execution broadsides” (Moreira; Bonafé, 2022). O material, que era distribuído e vendido antes das execuções em praça pública, contava com a descrição do crime e informações pessoais dos condenados. No âmbito da ficção seriada estadunidense, especificamente anos 2000, séries como CSI: Investigação criminal (2000) e Mentes Criminosas (2005) já traziam o true crime para milhares de telespectadores.

Entretanto, foi a popularidade de séries documentais como Making a Murderer, lançada pela Netflix em 2016, que ajudaram a popularizar ainda mais o gênero, principalmente na plataforma de streaming. Segundo uma pesquisa realizada pelo portal Vivint, 62% dos entrevistados afirmaram consumir conteúdo de true crime na Netflix. Atualmente, é possível achar diversas opções filmes e séries documentais sobre diferentes crimes reais de todo o mundo no catálogo do serviço on demand.

A partir da ficção seriada o telespectador é apresentado a diferentes versões e pontos de vista sobre o crime, como a perspectiva do criminoso, as testemunhas e os investigadores. Estes elementos fazem com que esses conteúdos dialoguem com a fascinação contemporânea, ao tentar imprimir uma ordem a esses fragmentos do real. (Burdman; Helich; Figueiredo, 2023). Porém, Monsters segue um caminho diferente de outras séries de true crime,em que o foco são as investigações policiais, ao escolher trazer essa amplitude de versões, como se estivesse dramatizando os já populares seriados documentais.

Contemporaneamente, é comum perceber nas histórias sobre crimes, sejam elas baseadas em fatos reais sejam em ficções, a possibilidade de o detetive ser um mero coadjuvante do caso e o protagonismo ficar totalmente com o criminoso, que tem a chance de contar sua versão do caso e, mais que isso, aproximar o telespectador de seu ponto de vista ao mostrar sua história familiar muitas vezes marcada por sofrimento, agressão ou invisibilidade social (Burdman; Helich; Figueiredo, 2023, p.85)

De modo geral, as tramas episódicas precisam de um gancho para convencer o telespectador a continuar assistindo. Nas tramas de true crime, esse efeito é explorado através da descoberta de novas pistas que podem mudar a trajetória do protagonista, normalmente o criminoso, sendo mostradas no final de um episódio. A construção em torno dos personagens, também ajuda o público a criar uma relação parassocial em relação a eles, desejando saber como as novas descobertas irão afetá-los.

A realidade e ficção em Monsters: A Lyle and Erik Menendez Story

Na esquerda: Lyle e Erik Menendez na vida real e na direita suas versões interpretadas por Nicholas Alexander Chavez e Cooper Koch. Fonte: Divulgação/Web e Netflix

Monsters: A Lyle and Erik Menendez Story é composta por 9 episódios, a trama abarca um pouco do período antes do crime até o último julgamento. O primeiro episódio já começa com os irmãos cometendo o crime e então avança para Erik Menendez arrependido confessando a autoria do assassinato para o seu psiquiatra Doutor Oziel. Lyle Menendez por sua vez, nega a confissão e leva o irmão para fora do escritório.

No mesmo episódio a personalidade dos irmãos também é apresentada ao público. Erik é o mais novo e que se sente mais arrependido pelo o que fez, já Lyle é uma pessoa fechada e que sempre protege seu irmão, além de ao longo dos episódios ser retratado como alguém ganancioso. As características impostas aos personagens foi interpolado com a realidade dos irmãos Menendez. Na rede social TikTok, famosa pela linguagem e estética do edits, os posts com o verdadeiro Erik Menendez têm mais curtidas e destaque dos sobre seu irmão Lyle.


Diferença de curtidas entre vídeos dos irmãos na vida real
Fonte:TikTok/Reprodução

A ficção seriada é pautada pelo hibridismo, no qual o cotidiano vivido se mistura como ficcional e os sentidos e ideias são compartilhados (Rocha; Prezia; Melo; Lobão, 2022). Quando se trata de um crime real, mesmo tendo a maioria das informações sobre o crime disponível, ao ser dramatizado e o criminoso retratado como um personagem, o público tende a ser influenciado.

Os dois primeiros episódios da série são sobre a vida de Erik e Lyle antes de serem presos. Já os episódios três, quatro e cinco é uma preparação para a audiência no tribunal e os últimos episódios são focados nas audiências. Além da história dos irmãos, outras três storylines são abordadas na série: o terapeuta doutor Oziel e sua amante Judalon, a advogada de defesa Leslie Abramson e o jornalista da Vanity Fair Dominick Dunne.

Da esquerda para a direita: Doutor Oziel, Judalon, Leslie Abramson e Dominick Dunne 
em Monsters: A Lyle and Erik Menendez Story
Fonte:Reprodução/Netflix

Doutor Oziel mantinha fitas gravadas das sessões com Erik e Lyle, inclusive confissões, e compartilhou com sua amante Judalon essas informações, até então eles eram os únicos que sabiam que os irmãos haviam matado seus pais. Um episódio inteiro é dedicado ao período que a amante viveu na casa do terapeuta, o motivo do desentendimento dos dois e ,posteriormente, a ida de Judalon à polícia para informar que havia provas da culpa dos irmãos, o que levou as autoridades a prendê-los.

Leslie Abramson já era uma advogada de defesa famosa e foi contratada para defender unicamente Erik Menendez. A série também mostra sua família, com seu marido e um filho recém adotado. O instinto materno é posto no seriado como um dos motivos que atraiu Leslie para representar unicamente Erik, que sempre é retratado como o menos agressivo.

Dominick Dunne é um repórter americano que cobriu o caso dos irmãos Menendez para a revista Vanity Fair. Além de ser retratado como um inimigo pessoal de Leslie Abramson, o jornalista é um dos principais personagens contra os acusados. É retratado realizando jantares em que discute o caso e rebate os principais argumentos da defesa.

É somente no episódio cinco, The hurts man, que retrata uma conversa entre Leslie e Erik na cadeia, que a tese de abuso sexual é enfatizada. Mesmo assim, a figura de Dominick Dunne aparece para rebater e diminuí-la, assim como a equipe de acusação no tribunal. A série também reforça algumas vezes a versão da acusação, de que os irmãos assassinaram seus pais pela herança, ao estereotipar o personagem de Lyle como mesquinho e mimado.

Ao trazer diferentes visões difundidas na época, Ryan Murphy acaba também retratando informações falsas, principalmente referente à relação entre os irmãos. No segundo episódio, há uma cena de beijo entre os dois, sugerindo uma relação incestuosa. Fato esse que nunca foi verdade, e foi espalhado por tabloides sensacionalistas na época. O mesmo vale para as cenas sobre uma suposta homossexualidade de Erik Menendez, um tema constante na série, e que foi negado pelo próprio Erik em entrevista a Barbara Walters em 1996. O único momento em que a orientação sexual de Menendez foi trazida à tona foi no tribunal, quando o promotor Lester Kuriyama especulou que a capacidade de Erik de descrever detalhadamente os abusos sofridos se devia ao fato de ele ser homossexual, suposição feita unicamente com base no estereótipo preconceituoso sobre homens que foram abusados sexualmente.

Ao dramatizar um caso real e controverso, principalmente devido a forma como os abusos sexuais contra homens eram vistos na época, a trama prejudicou os relatos dos irmãos, utilizando fontes erradas e sensacionalistas. A segunda temporada de Monsters acaba repetindo os erros da cobertura midiática da época. Ao trazer diferentes versões e desmenti-las o tempo todo, o telespectador pode muitas vezes não identificar as informações falsas e equivocadas.

Um ponto importante nesta discussão da desinformação na trama de Ray Murphy é que a família Menendez não foi consultada durante a produção da série. Em carta aberta, Joan VanderMolen, tia de Lyle e Erik, teceu críticas ao seriado e seus criadores: “ [...] Nós os conhecemos, os amamos e os queremos em casa conosco. Murphy alega que passou anos pesquisando o caso, mas no final confiou no desmascarado Dominick Dunne,o hacker pró-acusação, para justificar sua calúnia contra nós e nunca falou conosco. [...] É triste que Ryan Murphy, a Netflix e todos os outros envolvidos nesta série não tenham uma compreensão do impacto de anos de abuso físico, emocional e sexual.”.

Joan VanderMolen, canto inferior esquerdo, durante uma coletiva de imprensa sobre os desdobramentos do caso dos irmãos Menendez. Fonte: Damian Dovarganes/ Associated Press

Mesmo ajudando a trazer popularidade ao caso e consequentemente ao movimento de liberação dos irmãos, a série peca ao retratar um tema tão sensível como abuso sexual de forma superficial. Ao basear a parte ficcional em mentiras sobre a vida das pessoas reais retratadas, a produção da série apenas reproduz o sensacionalismo da época e explora argumentos que podem ser considerados ofensivos para os familiares e demais envolvidos no caso real.

Referências

BURDMAN, Marina; HELICH, Tatiana; DE FIGUEIREDO, V.L.F. Os realismos do true crime:: estratégias narrativas dos episódios-piloto da série ficcional (HBO) e da série documental (Netflix) The Staircase. Rumores, São Paulo, v. 17, ed. 34, p. 77-94, 2023.

MIYASHIRO, K. A reclamação insólita de um dos irmãos Menendez sobre série da Netflix.Disponível em: <https://veja.abril.com.br/coluna/tela-plana/a-reclamacao-insolita-de-um-dos-irmaos-menendez-sobre-serie-da-netflix/>. Acesso em: 13 dez.2024

MIYASHIRO, K. Família dos irmãos Menendez detona série da Netflix: “Grotesco”. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/coluna/tela-plana/familia-dos-irmaos-menendez-detona-serie-da-netflix-grotesco>. Acesso em: 16 dez. 2024.

MONTANARO, P. Monstros: Irmãos Menendez: Afinal, Erik é gay? Disponível em: <https://observatoriodocinema.uol.com.br/streaming/netflix/monstros-irmaos-menendez-afinal-erik-e-gay/>. Acesso em: 16 dez. 2024.

‌ROCHA, Larissa; PREZIA, Ligia; MELO, Luísa; LOBÃO, Raquel. Desinformação e ficção televisiva seriada:: uma discussão sobre o papel da mídia na construção social da realidade. In: COMUNICAÇÃO e ciência:: reflexões sobre a desinformação.. 1. ed. São Paulo: INTERCOM, 2022. v. 1, cap. 16, p. 371-396. ISBN 978-85-8208-132-7.

ROELOFFS, M. W. Prosecutors Could Back Resentencing Menendez Brothers Today—As Controversial “Monsters” Stays High On Netflix Charts. Forbes, 24 out. 2024. Disponível em: https://www.forbes.com/sites/maryroeloffs/2024/10/24/prosecutors-could-back-resentencing-menendez-brothers-today-as-controversial-monsters-stays-high-on-netflix-charts/. Acesso em: 13 dez. 2024

Popularity and Impact of True Crime Content | Vivint. Disponível em: <https://www.vivint.com/resources/article/true-crime-numbers>. Acesso em: 13 dez. 2024





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