Por Ana Luiza Pires
O mundo conhecido pelos personagens da pacata cidade de Hawkins, cidade fictícia de Indiana, não é nada do que parece. Habituados com a monotonia da cidade, a vida de muitos dos moradores se transforma quando o garoto Will Byers, misteriosamente, desaparece. No mesmo cenário, e na busca dos amigos de Will, surge Eleven, garota com poderes sobrenaturais, criada em um laboratório governamental onde foi submetida a experimentos que amplificaram suas habilidades. E mais ainda: monstros se tornam reais, assim como a existência de um universo paralelo conhecido como o “Mundo Invertido”, este um lugar parecido com o que vivemos, mas habitado por criaturas aterrorizantes e envolto em uma atmosfera sombria e distorcida, com ambiente dominado por uma substância viscosa e escura, estando conectado ao mundo real através de portais.
Esse é o conflito principal da primeira temporada de Stranger Things, série estadunidense escrita e dirigida por The Duffer Brothers, produzida e distribuída pela plataforma de streaming Netflix (2016-Atual), que se tornou um fenômeno mundial desde o seu lançamento. Com uma narrativa de suspense, terror e ficção-científica, toda ambientação de Stranger Things nos leva de maneira verossímil para a década de 1980. Portanto, a série trabalha com inúmeras referências e intertextos à época na qual a história é contada, que estão presentes de forma intrínseca na produção, seja na ambientação, narrativa, contexto histórico e político e até mesmo na construção dos personagens.
Segundo Figueiredo (2018), é possível notar, atualmente, uma grande retomada dos anos 80 através das mais diversas expressões artísticas. Percebe-se nos serviços de streaming e nas produções contemporâneas uma grande fixação pelo período, seja em filmes, séries, músicas e em outras linguagens, que trazem produções que não apenas buscam reproduzir elementos característicos da década, mas também obras originais do período. Desse modo, a série celebra obras originais da década de 1980, com destaque à trilha sonora, por exemplo, e cria com primor um universo nostálgico, até mesmo para um público que não viveu naquela época.
O Desaparecimento de Will Byers é o título do episódio piloto da série, lançado no streaming em 15 de julho de 2016. O episódio nos apresenta com eficiência o conflito principal da temporada, e de forma imersiva somos inseridos no universo da história, e somos sutilmente situados e envolvidos pelo aspecto sobrenatural da trama.
Além disso, o episódio apresenta os personagens que serão recorrentes ao longo da temporada. Um grupo de amigos, próximos de Will, é formado por Dustin, Lucas e Mike, junto com Eleven, que se junta ao grupo posteriormente, compõem o elenco infantil. Além deles, destacam-se os personagens de Jonathan, Nancy e Steve, que formam o elenco jovem, e o delegado Hopper e Joyce, mãe de Will, que compõem o elenco adulto. Apesar de estarem envolvidos em diferentes tramas e subtramas ao longo desta temporada, todos os personagens estarão envolvidos com o universo paralelo e a busca por Will.
O que é uma ficção de qualidade?
Desde os anos 1980 diversas discussões a respeito da qualidade no audiovisual têm sido desenvolvidas (BORGES; SIGILIANO; 2019). A discussão surge como uma nova maneira de se pensar a televisão e, desde seu princípio, busca analisar o que seria a qualidade na TV, a fim de entender possibilidades de se pensar a qualidade no audiovisual, assim como possíveis definições para o termo.
Com base nisso, diversos autores propuseram critérios para avaliar a qualidade no audiovisual (MACHADO, 2000). É importante destacar o contexto no qual essas discussões surgem, dada a relevância e influência significativas que a televisão detinha na década de 1980. Apesar de por muito tempo ter sido considerada uma forma de expressão inferior a outros meios, é inegável a sua importância para informar, entreter e educar, além de sua capacidade de alcançar uma grande audiência.
Ademais, a partir desses estudos, é entendível que o conceito de “Qualidade” não se refere a definição de um produto audiovisual como bom ou ruim, mas a sua complexidade enquanto produto e narrativa (BORGES, 2014). Além disso, também leva-se em consideração a forma como o público recebe o conteúdo, uma vez que se entende que a audiência participa ativamente no consumo da produção, interagindo e criando novas mensagens a partir do que já foi produzido.
Nesse aspecto, é preciso destacar o papel social e cultural que a TV tem para a sociedade, afinal, esta “não é simplesmente um meio de transmitir imagens de um emissor para vários receptores, mas um meio com a proposta de criar uma experiência comum para milhões de pessoas” (BORGES, 2014, p.07). A grande audiência, para esses estudos, não é sinônimo de qualidade, mas a credibilidade do público naquilo que é produzido é crucial.
A proposta teórico-metodológica desenvolvida por Borges e Sigiliano (2021) foi criada com o intuito de compreender e aprofundar-se nas discussões e processos pelos quais passa a produção audiovisual, desde sua criação, circulação e experiência estética, inter-relacionando os conceitos de qualidade no audiovisual e competência midiática (BORGES et al, 2022).
Esta análise se aprofunda nos processos de criação, buscando compreender como a série é produzida a partir de dois diferentes planos: o da expressão e o do conteúdo. No primeiro, conforme proposto por Borges (2014), há uma abordagem técnica da produção, onde são analisados aspectos como ambientação, fotografia, edição e trilha sonora. Já no segundo plano, o foco recai sobre a construção narrativa e os personagens envolvidos. O método também busca olhar para a mensagem audiovisual que é criada e nesse aspecto analisa a qualidade na produção a partir de determinados parâmetros, que são: oportunidade, ampliação do horizonte do público, diversidade, estereótipo, originalidade/criatividade.
A oportunidade está relacionada à maneira como a produção utiliza o contexto em que é criada e em como isso é refletido na abordagem dos temas, mas também na sua relevância para o período em que surge.
A ampliação do horizonte do público visa analisar como a produção apresenta propostas que estimulam os espectadores a refletir sobre o conteúdo, além de enriquecer e ampliar seu repertório cultural.
O próximo parâmetro aborda a diversidade, examinando sua representação na produção, seja em termos de raça, sexualidade, estrutura familiar, gênero, entre outros aspectos. O objetivo é compreender como essas características contribuem para a complexidade da narrativa, atribuindo camadas de sentido, evitando que sejam tratadas de forma isolada. Seguindo esse mesmo olhar, o parâmetro estereótipo visa analisar se as representações na produção são simplificadas em estereótipos ou se há uma abordagem mais complexa, tanto em sua forma quanto em suas questões.
Por fim, a originalidade, que consiste em observar o diferencial que a produção oferece, tanto em sua concepção estética quanto na abordagem do tema central.
Stranger Things é uma série de qualidade? (análise do piloto)
De acordo com Belim (2014, p. 60) o piloto de uma série deve cumprir três funções centrais, são elas: apresentar a história; introduzir a estrutura narrativa e seus elementos; e conquistar a lealdade do telespectador, para que ele assista ao próximo episódio.
Essas características são facilmente percebidas no piloto de Stranger Things, que em menos de cinquenta minutos de duração, nos introduz com maestria no universo da série. Mais do que a busca dos amigos por Will, também conhecemos o vínculo afetivo destes com o garoto, e o mesmo se aplica à mãe do personagem. E quando esse grupo de amigos encontra Eleven no final do episódio, é possível perceber como uma maneira de prender o espectador, deixando-o curioso sobre o que virá após esse encontro."
No piloto da série, um dos aspectos que mais chama a atenção na apresentação dos personagens é a sutileza em que isso acontece, sem diálogos expositivos ou características escancaradas, mas através de intertextos, referências, caracterização e até na escolha dos planos. Logo na cena inicial a fotografia nos mostra de forma sutil a dinâmica dos amigos que formam o grupo principal. Mike, que se demonstra um líder, é visto centralizado no quadro, em destaque. Enquanto Will é enquadrado de forma a estar mais afastado do grupo, o que se concretiza com o desaparecimento do garoto já nesse episódio.
Nesse cenário, há uma primeira referência de produção audiovisual da época, havendo em quadro um pôster do filme “O Enigma de Outro Mundo” (1982), filme de terror e ficção científica de John Carpenter. Esse é um elemento simples, mas que além de situar a história temporalmente, também nos revela gostos e o perfil daqueles personagens, nesse caso nerds ávidos, que são introduzidos na série enquanto jogam RPG, Dungeons and Dragons.
"A segunda referência de destaque é a menção da HQ “X-Men #134”, lançada em junho de 1980, sendo característica da série celebrar obras da década. No entanto, essa referência se destaca ainda mais pela semelhança com o roteiro de Stranger Things. Em “X-Men #134”, parte da saga “Fênix Negra”, a história gira em torno de Jean Grey, que atinge o potencial máximo de seu poder como telepata, tornando-se a personagem mais forte do grupo. Essa premissa se assemelha à de Eleven, apresentada pouco depois, não apenas por ambas serem personagens femininas fortes, mas também pela semelhança entre seus poderes.
Outra referência que merece destaque é a utilização da música “She Has Funny Cars”, de Jefferson Airplane, na primeira aparição de Eleven na temporada. A música é diegética, ou seja, está sendo tocada dentro do universo da história, nesse caso, em uma rádio. Alguns trechos da canção, como “Every day I try so hard to know your mind/And find out what's inside you” (Todos os dias eu tento muito entender sua mente/E encontrar o que há dentro de você) e "You can do whatever you please/The world's waiting to be seized" (Você pode fazer qualquer coisa que quiser/O mundo está esperando para ser apanhado), destacam-se pela semelhança com a descrição dos poderes da personagem e tudo o que ela representa na série.
A trilha sonora é uma das principais responsáveis pela criação da atmosfera do episódio. Em primeiro momento nenhuma das criaturas monstruosas são apresentadas, mas através de sons, ruídos, e BGs, é possível perceber a presença de algo não-humano. No entanto, é imprescindível destacar a combinação do som com a fotografia, que traz um toque retrô e os tons suaves das produções da época, que em conjunto, dispensa diálogos auto-explicativos, pois o universo nos é apresentado de forma áudio-visual. A edição e montagem são dinâmicas, e mesmo nas pequenas cenas, há diversas intercalações de planos e ângulos, sendo essa uma característica forte das produções atuais, se distanciando do ritmo de de montagens da década de 1980.
No parâmetro da oportunidade, pode ser destacado o ano em que a série foi lançada, em 2016, que nos Estados Unidos foi marcado pelas eleições presidenciais, que aconteceriam meses depois ao lançamento da temporada. Sendo assim, dado o aspecto nacionalista presente na série, assim como os conflitos, pode-se observar uma conexão com o contexto vivido no momento.
A ampliação do horizonte em Stranger Things pode ser percebida nos inúmeros intertextos presentes na série, que sempre fazem conexão direta com a narrativa, e mesmo que as referências tenham como característica celebrar a obras da década de 1980, a forma como são inseridas se destacam pela coerência e ligação com a trama. Ademais, é relevante notar a forma como a série retrata o contexto político-social vivido pelos Estados Unidos nesse período, mas sendo importante adotar uma visão crítica dessa interpretação, pois a narrativa é contada a partir da perspectiva americana.
A diversidade é sutil, e muitas das representações são trabalhadas da maneira como seria em 1980. No núcleo principal, há somente um personagem negro, o Lucas, que nessa temporada é pouco desenvolvido. Há a camada da sexualidade de Will, personagem que pertence à comunidade LGBTQIA+, mas que é apenas mencionada no episódio, não havendo desenvolvimento. É importante destacar que a sigla que representa o movimento atualmente não existia nesse período. Foi apenas na década de 1990 que a primeira sigla, GLS (gays, lésbicas e simpatizantes), ganhou força. Nesse parâmetro, o protagonismo está em Eleven, a personagem feminina que se destaca por seus poderes sobrenaturais. Ademais, podemos destacar a diversidade da estrutura familiar de Will, em que Joyce se malabarize sendo mãe solo de dois garotos. Apesar da diversidade nesses termos, em primeiro momento nenhum desses personagens são trabalhados de forma complexa.
A originalidade/criatividade em Stranger Things pode ser analisada em diferentes aspectos. A série se destaca por, além de ser ambientada nos anos 1980, também se comporta da mesma maneira. Isto é, traz em sua estética e demais, características das produções lançadas nessa época. Um exemplo notável é a vinheta de abertura, em que cor, tipografia e afins são referências diretas às produções da década.
Ademais, também há destaque para o contexto histórico. Nesse período acontecia a Guerra Fria, conflito entre os Estados Unidos e a União Soviética. A produção se mostra original ao trazer camadas e trabalhar as problemáticas em um universo fantasista como é o da série.
BELIM, C. Narrative Structure Analysis of the 2012 Nominees for Drama TV Series: What Does the Pilot Episode Reveal?. Marinescu, B.; MITU, B. (eds.), Contemporary Television Series: Narrative Structures and Audience Perception. Cambridge: Scholars Publishing, 2014, p. 59-93.
BORGES, G.; SIGILIANO, D. Qualidade Audiovisual e Competência Midiática: proposta teórico- metodológica de análise de séries ficcionais. Encontro Anual da Compós, XXX, São Paulo, Anais. 2021. Disponível em: <https://bit.ly/3Bb8OsL>. Acesso em: 15 abr. 2024.
BORGES, G. Qualidade na TV pública portuguesa: Análise dos programas do canal 2:. Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2014.
BORGES, G. et al. A qualidade e a competência midiática na ficção seriada contemporânea no Brasil e em Portugal. Coimbra: Grácio Editor, 2022.
FIGUEIREDO, C. A nostalgia dos anos 1980 nas produções da Netflix. In: III Jornada Internacional GEMInIS (JIG 2018) - São Paulo-SP, 2019. Disponível em: https://bit.ly/3XT0rkl. Acesso em: 01 jun. 2023.
JENKINS, H. A Cultura da Convergência. São Paulo: Editora Aleph, 2009.
MACHADO, A. A televisão levada a sério. Senac, 2000.
Netflix. Países onde o aplicativo Netflix está disponível. Netflix, On-line, 2024. Disponível em: https://bit.ly/3XYhAJj. Acesso em: 18 mar. 2024.
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