Por Isadora Imbelloni
Há quem diga que a presença da mulher no cinema é um ato político por si só e dessa afirmação torna-se impossível discordar quando a memória não insiste em falhar. Cléo de Verberena, Gilda de Abreu e Carmen Santos são algumas das muitas pioneiras que, com obras majoritariamente ficcionais, marcam a tumultuada e pouco reconhecida presença feminina neste cenário. A realização de seus filmes entre 1920 e 1950 representa um grande feito, que se popularizou ainda mais na década de 1960, com o moderno cinema brasileiro. Ainda que não pareça, já que a história as omitiu, “[...] dezenas de mulheres estrearam na direção de filmes entre os anos 1960 e 1970 no Brasil. Algumas continuam atuando ainda hoje, outras encerraram suas carreiras.”, conforme Holanda (2015).
Neste período, a “segunda onda feminista”, vinda da Europa e dos Estados Unidos, gerou discussões acerca do papel da mulher na sociedade e, com isso, o debate se desenvolveu também no cinema nacional. Em meio à conjuntura autoritária e repressiva da época, nascia um cinema cada vez mais independente, logo, grande parte de suas produções, sobretudo documentais, já expressavam uma postura crítica acerca de temáticas ligadas ao coletivo, principalmente, feminino. A construção de papeis sociais, a criação de carreira profissional e inserção na política são alguns dos assuntos abordados em filmes da época.
A exemplo disso, Helena Solberg questionava a sociedade patriarcal e moralista em suas produções extremamente significativas para o Cinema Novo, assim como Adélia Sampaio explicitava a homofobia e misoginia no país em 1984 com o longa-metragem “Amor Maldito”. Seja devido ao olhar empático e sensível sobre uma sociedade ferida, ou pela identificação com as demais minorias sociais, a força feminina e sua relação com tais problemáticas se fortificou com o passar dos anos. O que engaja e une grande parte das cineastas está na vida real ou na representação dela, do alto de uma periferia ao sertão massivamente rural e precário. Está no não dito pela falta de voz ou escuta.
Gravação de “Antônia” (2006), dirigido por Tata Amaral -
Fonte: Reprodução
Outrossim, a forte presença no cinema independente permitiu que mulheres escrevessem suas histórias em um cenário ideal para a testagem de novos recursos. Como tudo que se pauta no social e político, que é feito por gente e para gente, a arte evolui, e a base dos limites, antes conhecidos e bem estabelecidos, tornaram-se imprecisos. Aos poucos, as narrativas social e politicamente engajadas passaram a ser cada vez mais contadas com a ajuda de seus protagonistas reais, e com isso uma névoa pairou sobre a fronteira entre a ficção e o documentário e os holofotes estavam apontados para ela.
A liberdade é híbrida
Desde a concepção do cinema a meados do século XX, a ficção e o documentário não costumavam ser conectados senão pela linha que assumia um enquanto completo oposto do outro. Essa crença torna-se razoável quando resumimos um a “mentira” e o outro a “verdade”, termos comumente associados a estes dois gêneros fílmicos. O desenvolvimento de convenções e protótipos está profundamente enraizado na história. De um lado tem-se a interpretação, atuação profissional, o ensaio e a roteirização, associadas à ficção; do outro, o uso de não-atores e de câmeras portáteis, a improvisação e o “risco do real”, relacionadas ao documentário. É evidente que trata-se de duas narrativas distintas, todavia, seria possível assumir que não há mistura entre elas? Quando cineastas e estudiosos passaram a colocar em xeque questões como os limites da verdade em uma obra documental ou da encenação em um filme ficcional, a discrepância passou a se posicionar lado a lado e para além: interseccionando. A essa conclusão chega Migliorin (2010) ao afirmar que,
Rouch – sempre ele – percebera pela antropologia algo de que o cinema iria se apropriar de maneira indelével: a realidade é inseparável da imaginação. Ficcionalizar e viver a realidade, sonhar e carregar sacos no porto de Abidjan (Eu, um negro, 1958) são partes de uma mesma vida que o documentário não pode negligenciar.
Essa impossibilidade de separação faz com que a fronteira exista. Trata-se da intersecção entre dois ou mais gêneros, que geram múltiplas possibilidades de obras e formatos. Entretanto, esse território pode ser confuso já que é ali que se misturam ideias, conceitos e predefinições, logo, são inevitáveis questionamentos acerca dos limites para esses encontros. E é isso que acontece na fronteira entre a ficção e o documentário. Até onde vai um e a partir de onde começa o outro? São questionamentos difíceis de responder já que as próprias definições de gêneros se mostram ultrapassadas. Como aponta Fernão Pessoa Ramos (2008), a fronteira é de difícil definição dado que foi há pouco tempo que as qualificações narrativas, sobretudo em termos de veracidade, têm parado de se sustentar nas formulações ligadas à década de 1960.
“Jogo de Cena” (2007), de Eduardo Coutinho -
Fonte: Reprodução
Apesar da complexidade evidenciada, pouco importa aqui conceituar os gêneros, delimitar seus territórios ou mapear de forma precisa este terreno. Entender que a fronteira existe basta para o reconhecimento da liberdade do artista para trabalhar embaralhando-a, como certeiramente pontua Fernão (2008). Nunca coube aos artistas seguirem predefinições, assim como nunca coube à arte ser segmentada e organizada em caixas. É com tal liberdade em mente que os filmes híbridos passaram a ter o seu próprio lugar neste universo.
De formas e intensidades diversas, as características comuns à ficção e ao documental passaram a se misturar em produções majoritariamente experimentais. Em algumas delas, a exemplo dos clássicos “O Sanduíche” (2000), de Jorge Furtado, e “No Lies” (1973), de Mitchell Block, as peças pregadas no espectador são visíveis. O primeiro se apresenta e se porta como ficção em suas tomadas (ângulos e enquadramentos pré definidos) e montagem bem articulada, mas, por se tratar de um documentário, embaralha as crenças do espectador, que busca decifrar o gênero da obra a qual assiste; já o segundo, apresentado como documentário, cativa o espectador por meio de entrevistas envolventes e abordagem de uma temática complexa, características comumente associadas ao gênero, mas se revela, ao final, como uma narrativa ficcional inteiramente encenada.
Cena de “O Sanduíche” (2000) e filmagem de “No Lies” (1973) -
Fonte: Reprodução
Produções como essas, cada vez mais frequentes, deram origem a este formato fílmico que segue se consolidando, sobretudo, entre cineastas brasileiras. Filmes híbridos atualmente não são mais tão relacionados à experimentação, apesar de não deixarem de ser experimentais. A nova correlação a se observar está entre eles e o cinema feminino engajado: filmes híbridos enquanto potenciais atores da mudança. O que inicialmente parece um impasse, pode e deve ser visto como uma liberdade.
Dos anos 2000 aos dias atuais
Após a redemocratização do país, o cinema nacional se expandiu devido ao período de retração e à extinção da Empresa Brasileira de Filmes S.A, até então principal responsável por financiamentos ao setor. O chamado “cinema de retomada”, caracterizado pelo fomento à produção, em meados de 1990, marcou a ascensão de grandes mulheres à direção de obras dos mais variados gêneros e formatos. “Carlota Joaquina, Princesa do Brazil” (1995), de Carla Camurati, “Durval Discos” (2002), de Anna Muylaert e “Bicho de Sete Cabeças” (2000), de Laís Bodanzky são alguns destaques.
Apesar de tais avanços, ocorridos nas últimas décadas, a representatividade feminina no cinema brasileiro ainda é extremamente baixa: cerca de 20% a 25% das mulheres ocupam cargos de direção e roteiro, e ainda que o façam, seus filmes são muito pouco valorizados em bilheterias e premiações. O terreno para o cultivo de seus sonhos ainda é infértil, mas, felizmente, algumas resistem e se destacam, em um cinema cada vez mais engajado, por seus trabalhos no limite entre a ficção e o documentário, e esse é um dos tópicos que tornam Sandra Kogut, Maria Augusta Ramos e Juliana Antunes ainda mais próximas. O amor pela sétima arte, a direção de filmes muito bem recebidos pela crítica, a abordagem de vivências cotidianas em cenários pouco ocupados pelo cinema nacional são algumas das características que essas três grandes artistas têm em comum. Todavia, a mais extraordinária analogia está diante dos olhos de qualquer espectador: a construção da mise en scéne em seus filmes de destaque.
A estreia de Sandra Kogut em filmes de ficção é marcada por um filme não tão ficcional: “Mutum” (2007) acompanha o universo particular de Thiago, menino que, junto à sua família, nasceu e cresceu em terras pobres e isoladas no interior de Minas Gerais. A sintonia dos realizadores com o chamado cinema humanista é evidente, já que, com exceção de João Miguel, Izadora Fernandes e outros poucos atores profissionais, o elenco é quase totalmente formado pela população local. É notório tratar-se aqui de um filme roteirizado e previamente idealizado, porém, a visível busca da, até então documentarista, por uma representação mais fiel de tal realidade, torna perceptível a composição do corte final em uma mistura entre encenações e trechos cuja câmera e seus movimentos se apresentam para acompanhar rostos, olhares, trejeitos e expressões de indivíduos pertencentes a um território aparentemente invisível para o resto do mundo.
Cena de “Mutum” (2007) -
Fonte: Reprodução
Sob a mesma premissa de fidelidade com a realidade representada, Maria Augusta Ramos une, em “Juízo” (2007), o documental e o encenado. A obra acompanha a trajetória de menores pobres em conflito com a lei, desde sua prisão ao julgamento por tráfico, roubo e homicídio, expondo as fragilidades de um sistema de justiça falho e desigual. Proibido expor a imagem de menores infratores, os depoimentos originais foram captados de costas. As tomadas de frente foram reproduzidas com a repetição do discurso, mas com outros adolescentes em idades aproximadas e condições socioeconômicas parecidas ou iguais aos personagens verdadeiros. Como pontua a diretora, “eu não fui atrás de adolescentes com experiência com teatro. Agi no sentido de que não atuassem para que fossem eles mesmos. Isto foi importante porque é a personalidade de cada adolescente que faz esta realidade com falta de perspectiva”. Dessa forma, Maria escancara na tela problemas judiciários que a justiça escolhe ignorar e pessoas reais que a sociedade abandona.
Cena de “Juízo” (2007) -
Fonte: Reprodução
Explorando também a fronteira entre o documentário e a ficção, Juliana Antunes adentra a periferia de Belo Horizonte, que vive à espreita de uma anunciada guerra do tráfico. Nesse contexto, “Baronesa” (2018) acompanha a rotina de Leid e sua amiga Andreia, cujo sonho é se mudar da favela onde reside e construir sua própria casa no Baronesa, fugindo assim do caos prestes a eclodir. O longa-metragem carrega consigo questões em torno da representação no cinema, já que, como aponta a diretora, “nunca foi minha intenção colocar em xeque o que é verdade e mentira. Queria ser verdadeira no que estava filmando. Já a palavra final é sempre de quem vê”.
Cena de “Baronesa” (2018) -
Fonte: Reprodução
Torna-se notável o pouco espaço para uma mise-en-scéne conduzida pelos próprios personagens, já que o filme é composto por quadros que parecem cuidadosamente pré-concebidos em uma cadência que se organiza de forma a preservar o tempo narrativo. Todavia, a mistura de recortes da vida das personagens com elementos da vida da diretora não impede que a ficção seja invadida pela realidade. Com uma produção quase exclusivamente feminina, “Baronesa” pode, para uns, não se apresentar como uma representação, mas nunca deixará de ser um objeto desse real.
Salienta-se que é inegável que, em algum momento, filmes como os citados aqui possam esbarrar em diversas problemáticas, como a estereotipização. Os cenários das obras abordadas na presente análise carregam consigo o olhar do outro, na maioria das vezes, privilegiado, quando comparado aos personagens apresentados. Todavia, torna-se imprescindível reforçar que a garantia de abordagens que respeitem as particularidades de cada vivência e que estejam livres de generalizações é um dos fatores que preservam o sentido deste cinema humano.
Este é um breve recorte das últimas décadas, logo, há uma gama de filmes com tais características não citados na presente análise. Considerando também o cenário internacional, desde 2016 cerca de quatro filmes híbridos produzidos por mulheres foram realizados, alguns deles muito bem recebidos pela crítica, logo, destacados em festivais de cinema; são eles “Nakom” (2016), de Kelly Daniela Norris, “Baronesa” (2018), de Juliana Antunes, “Alcarrás” (2022), de Carla Simón e o recente “Transe” (2024), de Carolina Jabor e Anne Pinheiro Guimarães.
As evidências aqui apresentadas são as mais relevantes de um levantamento de todas as obras audiovisuais brasileiras dirigidas por mulheres. Diante disso, é crível a possibilidade de estreitamento da relação entre o cinema feminino e a fronteira, entretanto, suas consequências ainda são imprecisas. Pode ser que as mulheres estejam desenvolvendo ainda mais um subgênero que se fortaleça e se solidifique com os anos, ou pode ser que não. Apesar de tantas incertezas, há uma correlação interessante se consolidando, logo, é preciso acompanhá-la, sobretudo, devido ao seu potencial transformador do cinema que conhecemos hoje.
É possível que, nas obras citadas aqui, assim como em tantas outras produzidas de forma semelhante, as materialidades do real e do representado tenham se esbarrado verdadeiramente em algum momento. Mas também é possível que as obras, idealizadas por pessoas majoritariamente brancas e de classe média e distribuídas para este mesmo público, nunca apreendam nada dessas vivências. Por meio dessas experimentações e produções, cada vez mais frequentes no cinema brasileiro, a esperança que resta é de que a sétima arte tenha finalmente encontrado tais comunidades e que essas pessoas, em conjunto, estejam reinventando-a. De tudo isso, uma coisa é certa: o cinema é mais potente na coletividade.
Referências
MIGLIORIN, C. Ensaios no Real: O Documentário Brasileiro Hoje. 1ª Ed. Beco do Azougue, 2010.
NICHOLS, B. Introdução ao Documentário. 5ª Ed. Papirus Editora, 2010.
RAMOS, F. Mas Afinal… O Que É Mesmo Documentário?. 1ª Ed. Senac, 2008.
HOLANDA, K. Documentaristas brasileiras e as vozes feminina e masculina. Significação, São Paulo, v. 42, n. 44, p. 339 - 358, set./nov. 2015. Disponível em: https://bit.ly/3yMp8Ep. Acesso em: 7 mai. 2024.
THEBAS, I. Mulheres no Cinema. Instituto de Cinema SP. Disponível em: https://bit.ly/3yS4Jhu. Acesso em: 8 mai. 2024.
MENDES, C. Mulheres do Cinema Brasileiro: artigos destacam obras e desafios das mulheres na sétima arte. Sesc São Paulo, 2023. Disponível em: https://bit.ly/4eaeXtG. Acesso em: 8 mai. 2024.
O sanduíche. Direção: Jorge Furtado. Brasil, 2000
NO lies. Direção: Mitchell Block. Estados Unidos: Cinema Direto Ltda, 1973.
MUTUM. Direção: Sandra Kogut. Brasil, 2007.
JUÍZO. Direção: Maria Augusta Ramos. Produção: Diler Trindade. Rio de Janeiro: Diler & Associados; Nofoco Filmes, 2007.
BARONESA. Direção: Juliana Antunes. Produção: Ventura Film. Belo Horizonte, 2018.
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