O pai dos reality shows: Survivor e o seu legado na cultura participativa e de fãs

Ricardo Souza


A televisão sempre se mostrou capaz de unificar tribos e proporcionar para o telespectador experiências únicas, que mesclam ficção e realidade. Assim descreve-se a reality TV, uma janela para trazer histórias que transitam pelo real e o roteirizado. Um olhar super poderoso que vasculha o que se passa no espaço da vida privada e transporta o que encontra para o espaço da mídia (ROCHA, 2010).

Há um fascínio em observar outras histórias, principalmente se em seu cerne elas são reais, o que torna a reality TV tão popular. O “voyeurismo midiático” é uma prática na qual o indivíduo sente prazer em observar a vida alheia (ROCHA, 2010). A televisão usa desse artifício para criar uma identificação maior com o público, afinal, ver “gente como a gente” torna esse processo de identificação mais fácil.

Em parte, os fãs nascem desse artifício, visto que a percepção do que é fã mudou, principalmente para a mídia, que os considera como o centro das atenções através da construção de uma cultura e identidade própria (MONTEIRO, 2010).

Assim, os grandes conglomerados de mídia observam que o seu público, antes passivo e imerso nas narrativas apresentadas, passam a se comportar diferente e a interagir com o produto através da identificação com o que é exibido.

Parte disso só foi possível graças às novas tecnologias, como a internet, possibilitando a atividade e interação com o que é exibido com a criação de fóruns e, consequentemente, com a formação dos fandoms mais ativos.

Embora a nova cultura participativa tenha raízes em práticas que, no século 20, ocorriam logo abaixo do radar da indústria das mídias, a web empurrou essa camada oculta de atividade cultural para o primeiro plano, obrigando as indústrias a enfrentar as implicações em seus interesses comerciais. Permitir aos consumidores interagir com as mídias sob circunstâncias controladas é uma coisa; permitir que participem na produção e distribuição de bens culturais – seguindo as próprias regras – é totalmente outra. (JENKINS, 2006, p 190)

O termo Cultura Participativa, proposto por Jenkins (2006), surge então com o avanço da tecnologia e com a expansão dos meios de comunicação, que entram em convergência à medida que a informação e os diversos tipos de conteúdo começam a se mesclar. Jenkins (2006) pontua que essa participação, fomentada pelo avanço tecnológico, promove uma circulação de conteúdos em diferentes plataformas, como no caso dos spoilers.

Em síntese, a cultura de fãs e a sua participação é vista como um avanço. E como um dos grandes exemplos desse avanço, Survivor (2000) surge como uma proposta única, que chama atenção pelo sucesso entre os telespectadores, dos mais casuais até os mais ativos, que tiveram tanto reconhecimento a ponto de fazer história dentro da própria franquia.

A força dos fãs em Survivor

Survivor (2000) é um reality show de grande sucesso, criado por Charlie Parsons em 1992 no Reino Unido. Entretanto, foi a versão estadunidense, de 2000, dirigida por Glenn Weiss e produzida por Mark Burnett que colocou o programa no radar do público.

A premissa do programa é a de colocar um grupo de participantes, divididos em duas tribos, em um local remoto, sem comida, água, fogo e acampamento. Os participantes são então obrigados a sobreviver nessas condições, participando ao longo do episódio de provas de recompensa e a prova da imunidade, concedida a toda tribo ganhadora, sendo um membro da tribo perdedora eliminado por seus próprios companheiros.

Após um certo número de episódios, as tribos se fundem e, então, o jogo torna-se individual, havendo apenas um imune por episódio, sendo o restante passível de ser eliminado pelos membros remanescentes.

Survivor é um reality que promove o entretenimento em detrimento das dificuldades de relacionamento entre os participantes (ROCHA, 2010). Apesar do nome sugestivo, o programa tornou-se muito mais do que um reality de “sobrevivência”, considerado por fãs e pelo próprio apresentador e produtor executivo, Jeff Probst, um experimento social, que avalia a estratégia e a sociabilidade dos jogadores, com o físico em segundo plano.

Com essa premissa, Survivor se destacou na grade da televisão estadunidense, e ao longo dos seus primeiros anos foram conquistando um grande público, que vinha se tornando cada vez mais ativo com a expansão da internet.

Em sua primeira temporada, o público, que desconhecia o formato, foi pego de surpresa ao ver tantos participantes “comuns” compartilhando histórias e fortalecendo narrativas pela relação que os participantes tinham, como a do vencedor da primeira temporada, Richard Hatch, um homem gay e o ex-fuzileiro naval Rudy Boesch.

O público passa a se tornar ativo em Survivor com o crescimento do fandom pelos fóruns de debate sobre o programa. Por lá circulavam especulações sobre localidades, participantes e seus desempenhos, teorias acerca de detalhes deixados pela produção em temporadas anteriores.

Assim, a cultura dos spoilers começa a ganhar força, em que Jenkins (2006) conta com o caso de um nome que ficou popular entre os fãs do programa, o “ChillOne”. Essa persona surge no final de 2002, durante sua passagem de ano novo no Brasil, coincidentemente, mesma época em que filmavam a sexta temporada do programa, Survivor: Amazon. O usuário acabou sabendo de informações sobre eliminações do programa, e postou-as em fóruns do show, chamando a atenção de muitos fãs, que se interessavam em ter spoilers.


A comoção foi grande e Jenkins (2006) analisa esse aspecto com base no conceito de Pierre Lévy (1998) sobre a Inteligência Coletiva e, como o spoiler, nesse contexto, parte de um conhecimento compartilhado entre fãs sobre uma informação individual que pertence ao programa.

O próprio show reforça esse tipo de especulação em seu formato, deixando o público ávido a saber e teorizar sobre quem será eliminado, visto que a imprevisibilidade é inerente ao reality. Tal especulação é vista até hoje, em grupos do programa ou na remixagem de conteúdos, como faz o canal do YouTube Once Upon An Island.


E isso é parte do que torna o spoiling de Survivor uma atividade tão atrativa. A capacidade de expandir seu anseio individual, associando conhecimento com outros, intensifica os prazeres de qualquer espectador ao tentar “esperar o inesperado”, como insta a campanha publicitária do programa. Assim, os spoilers de Survivor reúnem-se e processam informações. Ao fazê-lo, formam uma comunidade de conhecimento. Estamos realizando experiências com os novos tipos de conhecimento que surgem no ciberespaço”. (JENKINS, 2006, p. 58, 60)

Avançando na força que os fãs ganham com relação ao programa, Survivor, que desde cedo começou a experimentar formatos diferentes, como na oitava temporada sendo feito a primeira versão All-Stars somente com retornantes (e vencedores inclusos), apresentou na sua décima segunda temporada - Survivor: Panama, a participante Cirie Fields, uma dona de casa que era uma fã casual do programa.


Cirie terminou em quarto lugar em sua temporada original, e conquistou uma grande base de fãs por seu carisma e, acima de tudo, seu jogo social e estratégico, sendo hoje considerada uma das grandes jogadoras que já passou pelo programa. Sua trajetória revela como ela, uma fã casual do programa, que diferente do exemplo citado anteriormente, não participava de fóruns e muito provavelmente compartilhava suas impressões do programa com amigos e família, se tornou um grande nome no jogo.

Sua participação, portanto, não parou por aqui, e ela retorna mais uma vez em uma temporada que eleva o conceito de fandoms, vistos como peças fundamentais para a mídia. A temporada 16 - Survivor: Micronesia - Fans vs. Favorites, foi a primeira temporada do show a colocar fãs declarados para concorrer com ex-participantes, entre eles, Cirie Fields. A temporada é considerada por muitos como uma das melhores do programa, e apresentou uma dinâmica muito interessante em ver fãs competindo contra os seus próprios ídolos. Não à toa a apresentação dos participantes retornantes, ou seja, os favoritos, foi um momento quase que a parte na edição, já que os fãs recebiam alegremente eles na localidade, até o momento em que a competição verdadeiramente começa.

Por fim, outro exemplo de personagem a participar do programa e que demonstrou a força do fã na condução da narrativa foi John Cochran, participante da temporada 23 - Survivor: South Pacific. Cochran era um grande fã do programa, se considerando um fã ativo, daqueles que sabem todos os detalhes do show. Essa narrativa foi bastante explorada na temporada, o que levou a algumas reviravoltas e a sua eliminação precoce em oitavo lugar. Entretanto, a história de John teve uma virada imprevisível, quando na temporada 26, o show realizou a segunda versão de Survivor - Fans vs Favorites, contando com Cochran no elenco, mas dessa vez, ao lado dos retornantes do programa, ou seja, dos favoritos. John passou de fã para o estágio de ex-participante (amado pelo público) e seu jogo social e estratégico acabou lhe rendendo o prêmio da temporada, consagrando Cochran como o vencedor de Fans vs Favorites. Entretanto, o rapaz não deixou de ser fã na sua segunda participação, e ele elevou o conceito ao realizar o que é visto como um sonho para muitos fãs: participar ativamente do produto admirado.


A cultura participativa e de fãs é um fenômeno grandioso, e teve incontáveis desdobramentos e feitos ao longo de vários anos. Survivor com certeza teve um papel preponderante no crescimento dessa cultura, por isso, mesmo depois de 20 anos e mais de 40 temporadas, continua no ar com um grande número de fãs espalhados pelo mundo.

O mais interessante nisso é ver que, algo que começou lá em 2002, com o surgimento de um membro em um fórum, continua sendo levado adiante ainda hoje, e representa uma nova forma de produzir e consumir conteúdos ativamente.


Referências

JENKINS, H. Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph, 2006.

MONTEIRO, C. Fandom: cultura participativa em busca de um ídolo. Anagrama, v. 4, n.1, p.1-13, 2010. DOI: https://doi.org/10.11606/issn.1982-1689.anagrama.2010.35481

LÉVY, P. A inteligência coletiva. São Paulo: Loyola, 1998.

ROCHA, D. C. (2010). Reality TV e reality show: ficção e realidade na televisão. E-Compós, v.12, n. 3, 2010.DOI: https://doi.org/10.30962/ec.387

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