Conflitos e hierarquias por shipping dentro do fandom do anime Naruto

Allex Demourier, Amanda Raquel, Pedro Paiva


Os ambientes digitais da atualidade, pelo menos aqueles que são diretamente voltados para socialização dos usuários, contam com as mais diversas categorias e gêneros de assuntos para dinâmicas sociais. Entre os coletivos de usuários cibernéticos que mais cresceram e expandiram suas interações estão as comunidades de fãs, ambientes formados por usuários, consumidores de determinado objeto midiático, que performam interações de gosto entre si. Principalmente nas três últimas décadas, o estudo de culturas midiáticas passou a se debruçar sobre essas comunidades e sobre a maneira como elas se relacionam, se organizam e compartilham conhecimentos e afetos.

Segundo Lévy (1999, p. 49) a construção dessas comunidades é facilitada pelo ciberespaço e somente por ele podem se organizar de tal forma que cooperem, alimentem e consultem uma memória comum em tempo real mesmo com uma distribuição geográfica diferente. O estudioso dos meios de comunicação Henry Jenkins continuou a falar sobre comunidades de fãs baseando se no trabalho sobre as relações sociais no ciberespaço de Pierre Lévy. Segundo ele:

Comunidades online de fãs podem ser uma das melhor-realizadas versões da cosmopédia de Levy, grupos expansíveis e auto-organizados focados na produção, debate e circulação coletiva de significados, interpretações, e fantasias em resposta a vários artefatos da cultura popular contemporânea. (JENKINS, 2006, [s.p]) (tradução nossa).

É através dessa popularização do espaço virtual que os fandoms podem potencializar suas formas de se conectar e se fortalecer. Fãs então deixam de ser apenas espectadores e se tornam produsers, (produtores + usuários, em português), nos termos de Axel Bruns [1] . A internet amplificou o alcance dos fãs de diversos segmentos. Sobre a popularização dos meios digitais e como isso trouxe impacto na produção midiática, Bruno Campanella (2012) afirma que

A popularização das tecnologias digitais trouxe mudanças significativas na produção cultural. Fundamentalmente, ela representou uma maior democratização do acesso às etapas de criação e circulação de conteúdos midiáticos, esmaecendo, assim, tradicionais distinções entre produtor e consumidor (CAMPANELLA, 2012, p. 475).

Os fandoms direcionados para os produtos animados japoneses, denominados “animes”, são uma ramificação dessas comunidades que exemplifica muito bem essas narrativas sociais. Além de contar um fandom no qual se inserem indivíduos que gostam e acompanham a cultura de animes em geral, essa comunidade também comporta o que poderíamos chamar de sub-fandoms, organizações direcionadas apenas para uma animação específica, ou seja, cada série animada conta com um fandom individual. Para Urbano (2013, p. 13), “a demonstração do capital subcultural articulado no fandom on-line de animês se expressa, fundamentalmente, em conversas sobre variados títulos, e, principalmente, sobre produtos culturais raros e não convencionais”.

Esses sub-fandoms podem ser caracterizados de diversas maneiras - existem fandoms que englobam gêneros específicos de animes, fandoms de animes específicos, fandoms de personagens, shipps (torcida por um casal romântico) e de dinâmicas específicas. Por exemplo, Naruto é um anime com vários personagens e que pertence ao gênero de aventura (ou shounen, animação que tem como público-alvo meninos jovens e que tem tramas de aventura e ação). Assim, um indivíduo que é fã da personagem Sakura estaria inserido no fandom “geral” (fã de anime) e em diversos outros sub-fandoms (gênero, anime específico e personagem).

Os sub-fandoms possuem características e culturas próprias, diferenciando-se dos outros com suas específicas dinâmicas e relações. Explicando: fãs do anime Naruto têm costumes que diferem daqueles que são fãs do anime Boku no Hero, mesmo sendo dois produtos do mesmo gênero (shonen). Do mesmo modo, no interior da subcultura de fãs de Naruto, os fãs da personagem Sakura têm costumes diferentes dos fãs da personagem Hinata, mesmo sendo derivados do mesmo produto.

Com todas essas sub-culturas interligadas sob o guarda-chuva de uma grande cultura geral, os conflitos que já são intrínsecos ao fandom acabam se tornando ainda mais complexos.

Conflitos e hierarquias dentro das comunidades de fãs

Os estudos de fãs são bastante amplos, diversos e podem ser encarados a partir de várias nuances e pontos de vista. Apesar da presente investigação observar o fenômeno das comunidades de fãs a partir da perspectiva dos conflitos (ou seja, as “tretas”), cabe salientar que esses grupos de indivíduos também são repletos de senso de comunhão, ativismo, socialização positiva e compartilhamento de conhecimento. Para Jenkins (2009, p. 57) essas comunidades “são definidas por afiliações voluntárias, temporárias e táticas, e reafirmadas através de investimentos emocionais e empreendimentos intelectuais comuns”. Ainda que as comunidades de fãs tenham em suas manifestações grandes afinidades e objetivos comuns, estamos falando de grupos de pessoas com personalidades, características e opiniões distintas. Sendo assim:

Os fandoms são formados por afiliações voluntárias e temporárias, através   de   investimento   emocional   e   esforço   intelectual.   Porém existem várias características que diferenciam cada fã, como por exemplo, níveis de participação, graus de influência, preferências e objetivos.  Cada um com suas próprias motivações e peculiaridades. Não se pode pensar neste público como um bloco homogêneo de interesses e comportamento (REZENDE; NICOLAU, 2014, p. 5).

Borges e Viana (2020), ao analisarem os comportamentos dos fãs da franquia Star Wars no lançamento do filme The Last Jedi, de 2017, trazem definições do que podem ser consideradas “práticas tóxicas” dentro da comunidade de fãs. Citando Gray (2019, p. 130), os autores afirmam que "embora a produtividade dos fãs esteja, com maior frequência, associada a prazeres como a admiração, gozo ou conexão com um objeto midiático, pode também ser oriunda da frustração e do antagonismo incitados por esses objetos". Ou seja, da mesma maneira que o fã que gosta do objeto midiático encontra prazer em exaltar esse produto, também pode encontrar prazer em rivalizar com fãs, artistas, produtores daquele ou de outros objetos midiáticos, tudo isso sob a justificativa de afeto.

O que auxilia e dá combustível para esses antagonismos e disputas é principalmente a divergência de opiniões entre diferentes fãs, mesmo que o seu objeto de admiração seja o mesmo. Ainda mantendo o exemplo de Naruto, fãs de Sakura podem discordar do destino da personagem no anime, ou do melhor “shipp” para a personagem, o que abre precedentes para conflitos, discussões e categorização por parte de outros fãs. Algo como: "Se você realmente gosta da personagem, deveria querer que ela ficasse com o personagem X em vez de Y".

Explicando com mais profundidade este combustível, Borges e Viana acrescentam, a partir de Star Wars:

A incapacidade de alguns fãs em lidar com opiniões divergentes, notadamente, aqueles com discursos antagonistas ao filme (“haters e extremistas”), é apontada como o principal motivo do bate-boca agressivo e ofensivo entre facções de fãs, radicalizando a polarização do fandom, e é considerada comportamento antiético uma vez que iria de encontro aos princípios do “debate justo” e pacífico que caracterizaria, para muitos, a comunidade de fãs da saga" (BORGES; VIANA, 2020, p. 140).

Ou seja, quem está do meu lado é um bom fã; quem está contra mim obrigatoriamente é um hater, que tem a opinião errada e enganosa.

Fandom de Naruto: conflitos por shipping

Naruto / Naruto Shippuden (TV Tokyo Corporation, 2002-2017) foi uma animação japonesa (Anime) baseada numa série de mangás escrita e ilustrada por Masashi Kishimoto. O enredo do anime é centralizado na vida do personagem "Naruto", que ao nascer é amaldiçoado com o destino de carregar um demônio dentro de si mesmo.

Como afirma Urbano (2020, p. 5):

Longe de se configurar em um circuito caracterizado pelo consenso entre seus membros, a cultura promovida pelos fãs de animês em suas comunidades on-line envolve fortes contradições e dissensões. Fundamentalmente, pontuamos a forte existência de hierarquias, alianças e rivalidades constituindo a organização de algumas dessas comunidades (URBANI, 2020, p. 5).

Como veremos, as disputas entre os fãs desse anime são, majoritariamente, causadas por um "embate de favoritismo". Facções específicas brigam para defender um determinado personagem, determinado shipp ou determinado acontecimento da história. É importante ter em mente, ao se estudar uma rede social específica, as distinções entre as diversas plataformas e suas múltiplas operacionalidades, já que cada uma delas fornece ferramentas específicas, possuindo materialidades diversas, o que pode trazer diferentes resultados (DOURISH; MAZMANIAN, 2012; LEMOS, 2019). Para esta análise, optamos por investigar o comportamento desse fandom no Twitter. Observamos os confrontos provocados pelos distintos favoritismos dos usuários, mais especificamente o favoritismo voltado para os casais canônicos da animação. Analisamos esses embates entre perfis da rede durante os meses de abril e maio de 2022, a fim de entender e expor quais as principais motivações das discussões e os gatilhos que, geralmente, provocam inimizades entre os usuários. Os tópicos analisados foram o do casal SasuSaku (Sasuke e Sakura, casal canônico do anime) e, por consequência, a personagem Sakura, que por muitas vezes era o foco das brigas.

Naruto foi concluído em 2017, tendo agora um spin-off chamado Boruto, que acompanha a vida do filho do personagem principal, mas que é pouco popular entre os fãs do anime original. Portanto, conseguimos perceber que, como Naruto acabou cinco anos atrás, os tópicos de discussão são "reciclados" - assuntos já saturados entre os fãs. Isso acabou contribuindo para que os fãs se fechassem em bolhas específicas, cercando-se daqueles que partilham de suas opiniões e ignorando ou até mesmo bloqueando qualquer um que discordem delas. Por exemplo, encontramos fãs de SasuNaru (shipp dos personagens Sasuke e Naruto) falando mal de shipps como SasuSaku ou NaruHina (Naruto e Hinata, também canônico no anime), mas a repercussão era apenas entre aqueles que concordavam com as opiniões ali expostas, sem contato com fãs dos shipps atacados.

Notamos também que quando há um evento grande dentro do fandom - por exemplo, no dia 28 de março houve mobilização entre os fãs de Sakura no Twitter por ser aniversário da personagem - crescem os números de "indiretas" trocadas pelos fãs, mas sem conflito direto. Fãs de Sakura enviam indiretas para fãs de Hinata por não terem a "força" que o fandom de Sakura tem, enquanto fãs de Hinata debochavam entre si do fato de que os fãs de Sakura se achavam muito importantes por algo tão "pequeno" quanto uma tag nos assuntos mais comentados do Twitter.

Como o conteúdo em português mais parecia uma “guerra fria”, expandimos nossa busca para brigas além do Brasil. Aí encontramos conflitos diretos entre fãs e antifãs do shipp SasuSaku. Conseguimos notar a diversidade de motivos para se opor a um determinado shipp. Muitos fãs desgostam dos shipps por motivos usuais - fãs de Sakura que não acham Sasuke um bom par para ela, ou fãs de shipps diretamente concorrentes como SasuNaru, NaruSaku (Naruto e Sakura) ou SakuIno (Sakura e Ino). Porém, chega a ser ainda maior o número de antifãs de SasuSaku que são fãs de um casal que em nada antagoniza o shipp: NaruHina. Os dois pares podem coexistir sem que um inviabilize o outro.

Rivalidades entre SasuSaku x NaruHina e fãs de Sakura x Hinata são as mais expressivas que encontramos em nossa análise. Os dois shipps não são auto excludentes, pelo contrário - os dois são canônicos e nenhum impede a existência do outro. Ainda assim, essa rivalidade se expressa em maior intensidade do que outros shipps - como NaruSaku (Naruto e Sasuke), SakuHina (Sakura e Hinata) e SasuHina (Sasuke e Hinata).

Os dois fandoms discutem entre si para provar qual casal é melhor e mais bem desenvolvido. Por terem as fanbases mais extensas do anime - principalmente SasuSaku - as constantes defesas e justificativas para a grandiosidade dos casais são constantes, mesmo que nenhum dos dois tenha de fato um bom desenvolvimento (em nossa humilde opinião). Por essa razão, explicações, referências e debates sobre o significado de cada ação de um personagem para com o outro são comuns. Os sub-fandoms querem encontrar constantes validações do porquê seu shipp ser melhor ou mais “saudável” e de qualidade. Às vezes, a maneira de encontrar essa validação é mostrando como o outro shipp é mal escrito, menos desenvolvido e/ou não saudável.

Enquanto fãs de NaruHina acusam SasuSaku de ser “abusivo” ou “tóxico” e usam isso para afirmar que seu shipp sempre foi puro e saudável, fãs de SasuSaku acusam NaruHina de pouco desenvolvimento, má escrita e pouca química. Essa rivalidade se dá na tentativa de provar a qualidade superior de seu shipp, mesmo que os dois possam coexistir pacificamente (o que de fato acontece no cânone do anime, com os quatro personagens sendo extremamente próximos e com uma amizade forte entre si). A seguir alguns exemplos desses conflitos (coletados do Twitter):

"Fãs de Narushina estão sempre se metendo nos assuntos do fandom Sasusaku. Por que incomoda vocês se os fãs da família Uchiha querer ter outro filho? Isso assusta vocês? Preocupem-se com Naruto mandando clones sombrios para as festas de aniversário de hinata" (tradução nossa).


“Naruto negligenciou a própria família em nome das atividades como hokage, mas eles [fandom rival] nunca querem falar sobre isso. Naruhina stans são uma piada" (Tradução nossa).

Outra coisa interessante que notamos foi a rivalidade entre fãs de Sakura e Hinata. No caso das personagens femininas, o cenário mais comum é o de fãs de Sakura gostarem da personagem de Hinata e vice-versa, mas fazem postagens maldosas sobre a outra apenas para irritar os fãs da rival - o que Borges e Viana (2020, p. 136) caracterizam como trolagem, "isto é, ações desagradáveis e provocativas de usuários online cujo intuito exclusivo é causar divergência e controvérsia pública no fandom sem alguma reivindicação de ativismo de fãs".

A briga entre fandoms das personagens se dá por um motivo semelhante aos dos shipps, mas se apresenta de maneira diferente: enquanto o objeto de discussão ainda é "minha personagem favorita é superior a sua", o discurso é muito mais voltado para o fandom rival do que, de fato, à personagem; fãs de Hinata podem gostar de Sakura, mas detestam os fãs dela por acharem que ela é a melhor personagem do anime, o que de certa forma "diminui" o papel de Hinata.

As acusações acabam sendo sempre as mesmas. No spin-off atual, as duas personagens se tornaram donas de casa que cuidam dos filhos, em vez de personagens ativas na história. Uma fanbase utiliza esse mesmo fato contra a outra fanbase mutuamente. As defesas que ambas levantam para proteger sua personagem favorita também são igualmente aplicáveis ao outro lado (por exemplo, listar todas as conquistas e realizações desta ou daquela personagem).



Diante de um fandom tão extenso e tão antigo (que se encontra em um período defasado e retraído de sua trajetória) como o grupo de fãs do anime Naruto, as organizações se tornam cada vez mais complexas e diversas, a ponto de parte do protagonismo desempenhado por esses fãs ser guiado por interações hierárquicas e conflituosas.

Referências

BORGES, M.; VIANA, P.. Toxicidade nas Práticas de Fãs na Repercussão do filme Star Wars: Os Últimos Jedi. Geminis, v. 11, n. 3, p. 127-145, 2020. Disponível em: <https://bit.ly/3d3oR5b>. Acesso em: 5 ago. 2022.

CAMPANELLA, B, O fã na cultura da divergência: Hierarquia e disputa em uma comunidade on-line. Contemporanea, v. 10, n. 3,p. 474-489, 2012. Disponível em: <https://bit.ly/3dc2QkU>. Acesso em: 5 ago. 2022.

DOURISH, P., MAZMANIAN, M. Media as material: Information, Representations as Material Foundations for Organizational Practice. In: CARLILE, P. R.; et al. (eds.) How Matter Matters. 3. ed. Oxford: Oxford University Press, 2012.

JENKINS, H. Fans, Bloggers, and Gamers: Exploring Participatory Culture. Nova York: New York University Press, 2006.

JENKINS, A. H. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2009.

LEMOS, A. Comunicação e Mediação. In: ALZAMORA, G; COUTINHO, F.; ZILLER, J. (orgs.). Dossiê Bruno Latour. Belo Horizonte: Editora UFMG. 2019.

LÉVY, P. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.

REZENDE, N. NICOLAU, M. Fã e Fandom: estudo de caso sobre as estratégias mercadológicas da série Game of Thrones. In: 8º Simpósio Nacional da ABCiber, 2014, São Paulo. Anais eletrônicos... São Paulo: ESPM-SP, 2014, p. 1 –14. Disponível em: <https://bit.ly/3QloVeR>. Acesso em: 5 ago. 2022.

URBANO, K. Legendar e distribuir: o fandom de animês e as políticas de mediação fansubber nas redes digitais. Dissertação (Mestrado em Comunicação) - Instituto de Arte e Comunicação Social, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2013. Disponível em: <https://app.uff.br/riuff/handle/1/13951>. Acesso em: 5 ago. 2022.

URBANO, K. Fansubbers brasileiros e suas políticas de mediação nas redes digitais. Famecos, v. 27, p. 1-13, 2020. Disponível em: <https://bit.ly/3oXd9Md>. Acesso em: 5 ago. 2022.

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