O trabalho do fã como modelo de negócio em Valorant

Victor Motta Aragão Cortez


A “primeira onda” de estudos das práticas da cultura de fãs abordava o fandom como protagonista, indo de encontro as críticas da época. Não eram alienados ou delusionais, são pessoas que respondem, retrucam, caçam. Comunidades de fãs são um ato de subversão contra os blocos de poder das mídias que produziam conteúdos culturais. É notável perceber que, culturas de fãs mais comumente sujeitadas ao ridículo, são aquelas associadas à: jovens, mulheres, LBTQ+, etc. Nesta primeira onda de estudos, já foi notada a relação de poder social imprimida nos gostos das partes menosprezadas da sociedade (SANDVOSS; GRAY; HARRINGTON, 2017)

Importante contextualizar, os principais estudos dessa primeira onda foram publicados durante todos os anos 90, até o início dos anos 2000. As práticas de fãs giravam muito em torno de escrita de cartas, fanfics, participação em convenções. Acompanhando a ascenção da Web 2.0, aparecimento e estabelecimento das Redes Sociais e novas relações de trabalho do Século XXI, os fãs se modificaram, e os detentores do poder (que sempre o tiveram, não se engane) produtores do conteúdo, donos das propriedades intelectuais, começaram a se adaptar à essa nova realidade (SANDVOSS; GRAY; HARRINGTON, 2017).

De acordo com Jenkins (2015) e Duffett (2013) a “segunda onda” de estudos das comunidades passa também pelos anos 90 mas se extende aos anos 2000, escancarando a manutenção e reforço de estruturas socioeconômicas de poder dentro das comunidades de fãs, continuando amplas desigualdades dentro dos grupos formados, não somente entre os fãs participantes das comunidades, mas também uma nova participação ativa dos produtores do conteúdo para com os grupos. A “terceira onda”, mais contemporânea, é onde a maior parte do argumento deste ensaio se apoia; os estudos de fãs vão além do objeto de estudo em si, relacionando a cultura de fãs a outros temas da sociologia, filosofia, rotina e cultura modernas.

O mundo e a internet evoluíram bastante, e com eles, mudaram nossas relações de trabalho e nossa relação com o lazer. Com cada vez mais horas trabalhadas, a hiper-conectividade do nosso dia-a-dia fez com que trabalho e lazer se misturassem durante todo o nosso dia ativo, consumindo conteúdos, memes, trocando mensagens e participando durante nosso “horário de trabalho”, e, pasme, “trabalhando” durante nosso horário de lazer. Mesmo que não percebamos isso enquanto o fazemos.

O conceito de “Cultura Participativa” introduzido por Jenkins (2008) no início dos anos 2000 é emergente dos impactos da Web 2.0 na Economia Cultural. A Web 2.0 tem como um dos pilares uma falsa premissa de democracia e globalidade, imprimida pela comunicação bidirecional das plataformas sociais; estamos cada vez mais perto de nossos ídolos, dos criadores do que somos fãs; ao mesmo tempo, nunca estivemos mais longe e mais atados à estruturas invisíveis. Os detentores da Propriedade Intelectual e Direitos Autorais ainda são os mesmos; a disparidade de poder entre os produtores de cultura só aumenta (massa x agentes capitalistas).

De acordo com Macedo (2021), a ilusão de horizontalidade e participação do futuro de algo que é querido faz com que o tempo de qualidade e lazer, atividades on-line divertidas, se tornem trabalho não remunerado. Apropriam-se do que é interessante e causa lucro, ainda detendo tanto os lucros, quando o direito à propriedade intelectual (MACEDO, 2021). Essa mistura do tempo de lazer com o tempo de trabalho é uma característica do capitalismo tardio, que se incorpora através de mecanismos próprios de afeto e identificação dos fãs, quase como uma dependência. Gatilhos sentimentais fazem com que aquela produção de valor se torne trabalho não-pago, mal remunerado ou não-remunerado, produzido socialmente e de maneira e origem coletivas. “Todos os dias alguém conectado à uma rede está realizando microtrabalhos não-remunerados por horas à fio” (GALLOWAY, 2012, p. 45).

Somado a esse invisível desnível estrutural de poder, uma outra característica do capitalismo tardio é a glorificação da produtividade e a necessidade de trabalho (MACEDO, 2021) Inerente a nós, como uma força coercitiva, essa característica contribui para que não percebamos esses mecanismos, maquiados e escondidos atrás de sentimentos mais profundos de identificação e pertencimento. Numa visão orientada pela ordem neoliberal e centrada na visão de mundo norte-americana, o fã deixa de ser um Trabalhador, e se torna um Consumidor Engajado de Mercadoria Significativa (MACEDO, 2021). O fã “produz por que quer”, por ter significado na vida dele; mas ignora-se que esse significado é construído propositalmente, e o sentimento, manipulado. Pressupõe-se que o fã tem ciência de que seu trabalho é usado para lucratividade, e continua o fazendo por motivações maiores (manutenção e expansão de laços sociais). Mas quando isso é planejado para que aconteça, talvez não seja tão espontâneo assim.

Se desenvolve então o conceito da “Cultura da Convergência”; esse processo de transformação no comportamento e pensamento dos consumidores e suas relações sociais com outros consumidores (JENKINS, 2008). Existe uma promessa retórica de “participação”, iniciativa, criatividade. Relações informais e afetivas com outros grupos de fãs, individualiza-se a responsabilidade do desenvolvimento afetivo do fã para com seu conteúdo, escondendo o fato de que planejadamente, “a sustentabilidade da Internet como meio é diretamente dependente de quantias enormes de trabalho, que não são equivalentes ao emprego” (TERRANOVA, 2000, p. 32).

Isso nos traz para o ponto onde “modelos de negócio” são desenvolvidos em cima da recorrente percepção e necessidade deste trabalho invisível dos fãs. O modelo de exemplo que analisado é o jogo “Valorant”, lançado em junho de 2020 pela famosa produtora de videojogos “Riot Games”, notoriamente conhecida por um exímio trabalho de gestão de Comunidades, envolvendo seus fãs em diversos conteúdos de um múltiplo universo de games que se conversam, prendem e conquistam.

O jogo “Valorant” foi o debut da empresa no gênero de FPS (First-person shooters) com um jogo de “guerra” tático onde equipes se enfrentam; essencialmente, é um jogo social, onde você precisa cooperar com seu time para vencer. Para além disso, o jogo possui uma ambientação rica em história e conteúdo; cada mapa diferente onde o jogo ocorre é parte de um universo maior, que se conectam entre si. Os personagens assumidos pelo jogador também têm toda sua história, seu passado, seus mistérios e peculiaridades, construindo um cenário onde o jogador que se vê envolvido pelo universo do jogo, tem milhares de opções, seja no universo do jogo ou no particular de personagens favoritos, para se aprofundar e imaginar, com diversos propositais “ganchos” de pontas soltas, deixando a história com um mistério, uma dica, ou uma curiosidade para o futuro. O jogo é construído para que se envolva emocionalmente, seja pela identificação, pela competitividade, ou pela sociabilidade.

Um exemplo de gancho é percebido nas falas de dois personagens, registrados pelos nomes de Omen e Viper. Os personagens, dentro de jogo, interagem entre si em determinadas situações, com falas diversificadas. Em uma dessas falas, Omen refere-se à Viper por outro nome: Sabine. E Viper responde indignada, “Não me chame desse nome novamente!”. Constrói-se um cenário de curiosidade: por quê Sabine? De onde esse nome vem? Por quê agora é Viper? Por quê a indignação? O que ocorreu entre eles dois? Todos esses são ganchos percebidos e postados por fãs em diversas redes sociais e fóruns. O jogo é repleto destes pequenos ganchos que, somados, tornam tudo muito interessante (e perigoso).

Voltando para o “modelo de negócio”, Valorant é um jogo free-to-play (gratuito). Sua renda provém da venda de uma moeda virtual dentro do jogo, utilizada para consumo de itens exclusivos in-game que modificam alguns aspectos do jogo visualmente ou sonoramente. Cosméticos para as armas do jogo que as tornam coloridas ou sinistras, “Cards” e “Sprays” que possibilitam o jogador expressar individualidade e identificação. Alguns exemplos são os Cards de identificação do mês do Orgulho LGBT, lançados gratuitamente para serem resgatados pelos fãs e se tornando sua “capa” ou “identificação” dentro do jogo, se tornando possível demonstrar apoio ou identificação com diversas bandeiras.


Cards de identificação coloridos com as cores de diversas bandeiras LGBTQIA+
possibilitaram aos jogadores expressão de individualidade.

Esses cards e sprays não se limitam apenas à expressões individuais do jogador como pessoa, mas também se conectam aos ganchos do universo e dos personagens citados anteriormente. Cenas exclusivas dos personagens em outros contextos ou ambientes, que revelam parte de seus passados misteriosos, fazem partes de cards, como a coleção “Volta ao Lar”, que mostra os personagens do jogo “de férias”, fazendo atividades corriqueiras no mundo de Valorant. Não mais são super-heróis em guerra. A palavra-chave aqui é identificação; o fã se vê nos personagens (que já se via por características de personalidade e preferências), agora em outros contextos. O apelo desse gancho é enorme e poderoso.


Respectivamente, personagens: Jett, Skye, Yoru e Brimstone, na série “Volta ao lar”

Com tamanho apelo, a monetização desse conteúdo se torna muito poderosa. A estratégia de monetização de Valorant vem do modelo “Passe de batalha” introduzido por alguns jogos precursores e hoje em dia sendo regra para jogos free-to-play. Você pode jogar de graça, mas para expressar individualidade, você deve pagar por acesso à um “Passe VIP”, onde também deve jogar partidas e completar desafios para “progredir” no Passe; quanto mais joga, mais recompensas vai desbloqueando. Ou seja, não só pagar pelo conteúdo, mas “conquista-lo” também. E os ganchos são fortes; quanto mais progressão no Passe sazonal (que se renova à cada três meses), mais raros são os itens que se obtém; inclusive, ao concluir o passe sazonal, existe um item de identificação Dourado, que separa jogadores casuais dos mais “Hardcore”, que completaram todos os desafios dessa temporada.


Card “Ducky” normal e Card “Ducky” Dourado, para quem completou o passe sazonal.

E como o trabalho do fã se conecta com esse modelo de negócio baseado em ganchos emocionais (característicos do capitalismo tardio exemplificados anteriormente)? Até agora, foi mostrado conteúdo produzido pela empresa, e consumido pelo fã. Bem, o “Passe de Batalha” possui 55 itens renovados à cada 3 meses; uma quantidade bem grande de conteúdo criativo novo, fora todo o conteúdo gratuito que completa e preenche os ganchos (vídeos cinemáticos, sneak peeks, eventos recorrentes temáticos, etc). Por ser uma quantidade grande de conteúdo, a empresa se apoia no trabalho do fã para construir esse Passe Sazonal, sendo praticamente metade dos 55 itens produto do trabalho de fãs e da cultura de memes.

Sintetizando, memes são identificação: com uma personalidade, com uma situação, são a relação de universos em um expoente comum. Os memes produzidos pelos fãs em fóruns ou plataformas como TikTok e Twitter, são utilizados pela empresa, transformados em produtos dentro do jogo, pelos quais os jogadores pagam e expressam individualidade, mantendo relações de poder socioeconômico e trabalhando - pagando para trabalhar.


Meme “Everything is Fine”


O meme “Everything is Fine” foi relacionado ao personagem Phoenix, capaz de controlar o fogo, por fãs na plataforma Twitter, e posteriormente desenhado e postado em fóruns. Virou um ítem consumível dentro do game, obtido através da compra do Passe de Batalha e algumas horas de jogo para progressão dentro do passe. Já o spray “Me Revive Jett” vem de um meme espontâneo da comunidade, onde em um vídeo de gameplay, um jogador inexperiente repetidamente pedia à personagem Jett para que o revivesse; porém esse poder pertence à outra personagem, Sage, causando confusão e humor nos jogadores e posteriormente virando um produto consumível dentro do jogo também.

O exemplo mais extravagante dessa relação fã-produto que quero trazer é a ascenção do movimento “Wide Joy” dentro do game, que mostra como todo movimento, mesmo não-calculado, é estudado, percebido e utilizado pelos detentores do conteúdo. “Wide Joy” foi um bug (erro do jogo) onde a personagem Killjoy aparecia esticada. Se tornando um meme da comunidade em fóruns e no Reddit simplesmente pela aparência engraçada que ela aparecia no jogo.


Posteriormente, o bug foi corrigido, porém houve um evento de 1º de abril, onde foi criado um modo de jogo em que todos os jogadores eram, exclusivamente, Killjoy Esticada. O vídeo de lançamento fez um enorme sucesso e, posteriormente, foi lançado um card de identificação onde a personagem Killjoy lê em seu tablet notícias sobre a “Killjoy Esticada”, obtido através do Passe Sazonal, e sua versão mais rara Dourada - metalinguagem e identificação sendo palavras chave para construir um universo palpável e envolvente. O trabalho do fã e o surgimento espontâneo de conteúdo mercantilizado e transformado em produto - e o fã adorando tudo isso.


Fica claro que o envolvimento do fã com o conteúdo produzido é muito bem estudado e explorado, em diversos âmbitos, no capitalismo tardio e na Cultura da Convergência. Interligados, forma-se uma teia de ganchos pautados em identificação e apelo emocional. Cabe a nós perceber, entender, e aceitar ou não essa influência constante que o que gostamos tem no nosso bolso e no nosso tempo - não ser cegamente induzido já é um primeiro passo para a futura captura dos Memes (Meios) de Produção.

Referências:

DATTEBAYO! A Cultura de Fãs de Naruto. [S. l.], 13 jun. 2021. Disponível em: http://mediabox.observatoriodoaudiovisual.com.br/2021/06/dattebayo-cultura-de-fas-de-naruto.html. Acesso em: 14 maio 2022.

DUFFETT, M. Understanding Fandom - An introduction to the study of media fan culture. Londres: Bloomsbury, 2013.

GALLOWAY, A. The interface effect. Cambridge: Polity, 2012.

GAME of Thrones: os limites (invisíveis) entre fãs e produtores. [S. l.], 6 ago. 2021. Disponível em: http://mediabox.observatoriodoaudiovisual.com.br/2017/08/game-of-thrones-os-limites-invisiveis.html. Acesso em: 14 maio 2022.

JENKINS, H. Cultura da convergência. 2. ed. São Paulo: Aleph, 2008.

JENKINS, H. Invasores do Texto - Fãs e cultura participativa. Rio de Janeiro: Marsupial Editora, 2015.

MACEDO, T. O custo da participação: lazer e trabalho gratuito (de fãs) na cultura da conectividade. Lumina, [S. l.], v. 15, n. 2, p. 191–211, 2021. DOI: 10.34019/1981-4070.2021.v15.27569

SANDVOSS, C; GRAY, J; HARRINGTON, L. Introduction: Why Still Study Fans?. In: GRAY,J.; SANDVOSS, C.; HARRINGTON, C.L. (eds.). Fandom: Identities and Communities in a Mediated World. 2. ed. Nova York: New York University Press, 2017.p. 8-32.

TERRANOVA, T. Free Labor: Producing Culture for the Digital Economy. Social Text, Durham, v. 18, n. 2, p. 33-58, 2000. DOI: <https://doi.org/10.1215/01642472-18-2_63-33>.

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