Aranha-fãs: as disputas entre os fãs de Homem Aranha

Gabrielle Neves, João Lucas Dantas, Juliana Amorim e Victor Silva


As velhas e sempre emocionantes relações/conflitos humanos pautam-se a partir de uma necessidade. Necessidade essa que pode ser estimulada por um pensamento que faz parte de uma coletividade comum, seja por uma aproximação que irá levar a um encontro convergente de comportamentos, seja por um distanciamento desses comportamentos em busca de criar, pertencer ou defender uma própria opinião, fundamentalmente compartilhadas por outros. Com a ascensão do novo milênio, a revolução da informática levou um tempo consideravelmente curto para fazer parte de nossas vidas - e há necessidade de apontar que, caso não acompanhá-la, ficaremos anacrônicos frente às transformações e velocidades que constantemente fazem questão de lembrarmos que estamos vivenciando uma experiência nunca antes sentida pelas gerações anteriores.

Um outro ponto interessante a ser citado é que a internet (e suas inúmeras ramificações) não foi formada apenas para atender uma necessidade global. Ela também continua, talvez em outro ponto de vista, a elevar este “status” dos conflitos humanos a níveis cibernéticos. Dramas são criados graças a esta rede e seus recursos conquistam um papel decisivo na criação, no desenvolvimento e, principalmente, no desfecho de tramas, potencializadas, sobretudo, por uma base fomentada por seguidores fiéis e inseridos dentro dessas redes Jenkins (2006) cita que são através dessas ferramentas que vão fornecer “os meios necessários para o cidadão comum se expressar e disponibilizar seus trabalhos e ideias livremente, sem a intermediação das antigas mídias de massa.” (JENKINS, apud CAMPANELLA, 2012, p. 475). Portanto, com o acesso às novas mídias digitais, a comunicação não ficou reprimida ou limitada, mas expandida a ponto de unir novas impressões acerca de um assunto pelas redes sociais. Campanella (2012, p. 475) ainda completa o pensamento ao dizer que isso iria implicar “em um potencial intrínseco de transformação sociopolítica da sociedade” graças a tais discussões em fóruns e outras ferramentas que, de certa maneira, apropriam-se da imagem ou de um assunto que geralmente reúne diversas pessoas em prol de algo comum, como os fandoms, tão relevantes - e importantes - nas discussões atuais.

Os fandoms existem a partir de uma correlação com um objeto escolhido para criarem e manterem uma perspectiva afetiva que um dia foi levantada por outras pessoas. Indo de conteúdos televisivos, artistas ou cinema estão sempre expostas para as mais diversas análises ou apropriações. Todavia, essas mesmas relações de “veneração” mútuas podem não seguir uma ambientação livre, haja vista que existem diversas comunidades de fãs que organizam uma verdadeira sociedade dentro da sociedade para proteger um ideal cultural. Uma vez iniciado, a escolha de participação de outros fãs leva muita consideração de quais posições hierárquicas se podem alcançar ou um papel a desempenhar dentro dessa bolha. Sendo assim, existe, dentro deste sistema, a utilização do termo cunhado por Sarah Thornton “capital subcultural” inserido em um fluxo de conhecimentos precedidos através de contatos sociais e que podem ser manifestados através de vestimentas ditas “da moda”, livros best-sellers, filmes de sucesso de bilheteria ou até mesmo estilos de danças adotados e consumidos em determinado período e por determinado público. Os praticantes do “capital subcultural” possuem um perfil semelhante: são jovens com marcas de rebeldia e que buscam sua independência.

Com isso, chegamos no Homem-Aranha, um super-herói que aparece nas revistas em quadrinhos publicadas pela Marvel Comics. Esse personagem foi criado por Stan Lee e pelo Steve Ditko, Lee trabalhou como roteirista e escritor dos quadrinhos do aranha, enquanto Ditko trabalhou em dupla com Stan Lee como escritor e também como o artista das revistas. O Homem-Aranha apareceu pela primeira vez na Amazing Fantasy #15, em 01 de agosto de 1962, durante a Era de Prata dos Quadrinhos, uma fase de várias revoluções artísticas no meio.


O personagem contou com diversas encarnações nos cinemas e na TV além de sua origem nas histórias em quadrinhos. Em 2002, muitos fãs foram agraciados com a primeira encarnação live-action do teioso nos cinemas. O filme, dirigido por Sam Raimi e estrelado por Tobey Maguire, foi seguido por duas outras sequências que solidificaram uma trilogia que os fãs adoram e veneram. Logo após o fim da trilogia, outro filme do aranha surge em 2011, dessa vez com uma equipe completamente diferente, recontando a história do personagem com uma abordagem nova, sendo estrelada por Andrew Garfield e dirigida por Marc Webb.

Com o lançamento de uma nova encarnação do Homem-Aranha, fãs da encarnação de Maguire se manifestam contra a versão de Andrew, com alegações hierárquicas de que os verdadeiros fãs do herói devem gostar da primeira trilogia iniciada em 2002. Os filmes estrelados por Garfield foram dois: O Espetacular Homem Aranha e o O Espetacular Homem Aranha: A Ameaça de Electro. Tais filmes se tornaram divisores de águas para o fandom do super-herói, desde diversos debates até apontamentos sobre o fracasso dos longas em crítica e bilheteria. Após a polarização dos fãs com a existência de duas encarnações do teioso em menos de duas décadas, surge uma terceira. Uma nova trilogia de filmes é anunciada após o cancelamento de futuros filmes com Andrew Garfield se aposentando do papel, dando espaço para o novo ator a encarnar o escalador de paredes, Tom Holland. Nessa nova versão, os filmes contam com a benção da Marvel Studios, que ganhou legitimidade entre fãs de adaptações de quadrinhos por um padrão de qualidade em seus filmes.


As comparações entre as três versões cinematográficas do Homem-Aranha são quase inevitáveis. Neste ponto, as preferências dos fãs entram em jogo e tornam-se a razão pelo qual existem “sub-fandoms” derivados do primeiro, onde fãs se reúnem para defender sua versão favorita. A disputa para eleger o melhor Aranha é ainda mais acirrada entre a parte do fandom que apoia o ator Tom Holland e aquela que apoia o ator Andrew Garfield. Ambos se mostraram muito carismáticos ao representar o herói no cinema, porém de formas distintas.


Há quem diga que a versão interpretada por Andrew Garfield é a mais próxima da personalidade original do personagem Peter Parker, sendo ele um jovem mais “bobão” e piadista. Para outros, Tom Holland é o ator que entrega as melhores cenas de ação, uma vez que o ator sequer precisa de dublê em algumas cenas que envolvem manobras e saltos elaborados. Essas pequenas diferenças são capazes de levar os fãs à fortes embates em prol do ator que acreditam ser o “Spider definitivo”, mesmo que não haja uma competição aparente entre os artistas. Porém, para uma outra parte do fandom, essas disputas só criam problemas desnecessários. Alguns fãs defendem a ideia de que cada versão do Aranha é única e deve ser apreciada como tal, para que as críticas dos fãs não sirvam de munição para sites que desejam realizar duras críticas aos atores envolvidos em tais produções.


Além das disputas referentes ao fandom de cada ator, os fãs do Homem-Aranha também costumam entrar em conflito quando, de um lado, há alguém que consome as HQs do herói, e do outro, há um fã que gosta “apenas” de assistir aos filmes. Assim como fãs que estão há mais tempo em um fandom podem sentir-se superiores aos fãs “recém-chegados”. Também há algo parecido no que diz respeito ao consumo das HQs do Homem-Aranha.

Assim como nos cinemas, o Homem-Aranha apresenta diversas encarnações nos quadrinhos. É intrínseco ao meio de super-heróis conter várias interpretações do mesmo personagem, isso acontece por consequência de que tais quadrinhos são histórias sobre o mesmo núcleo de personagens que são escritas e lançadas de maneira periódica ao longo de mais de 50 anos. Esses personagens têm histórias contadas sob os olhos de diversos autores que contém visões artísticas diferentes. Com o Aranha não é diferente, existem diversas fases icônicas ao longo da cronologia canon e não-cânon do herói.

Nos anos 2000, a Marvel Comics lança uma série de revistas de diversos heróis sob o selo Ultimate. As HQs Ultimate foram fonte de uma gama de incontáveis histórias nas duas primeiras décadas do século XXI e se passavam em uma cronologia diferente da cronologia dos quadrinhos principais do Homem-Aranha.

E assim surge o Homem-Aranha Ultimate, com uma própria mitologia e fantasia que é observada com um certo caráter duvidoso, dando mais apreço à ficção científica, que de certa forma, segue um viés mais explicativo. Essas histórias surgiram como uma maneira de revitalizar os contos já estabelecidos dos heróis, com uma abordagem mais moderna para suas origens. Tendo o lançamento simultâneo de duas abordagens do Homem-Aranha diferentes, sendo as duas contendo dois autores e artistas diferentes, as comparações no Fandom começam a surgir, fãs mais saudosistas do Aranha tradicional tratam o Ultimate Homem-Aranha como uma história inválida do herói, apontando que apenas a cronologia sob o selo clássico da Marvel Comic é genuinamente legítimo. Fiske (1989) pontua que essas múltiplas interpretações de uma mesma obra a partir da definição do conceito de cultura popular e a da analogia ao uso do jeans. Segundo o autor, assim como o jeans, produto de consumo em massa, permite uma ampla variedade de usos pelos mais diferentes grupos sociais, assim também é a flexibilidade dos chamados “textos populares” de se construírem a partir das leituras e interpretações alternativas dos fãs que, então, podem se distinguir do público “normal”.


Assim, conclui-se que o complexo universo criado em torno do Homem-Aranha resulta numa grande variedade de conteúdos a serem consumidos pelos fãs, que também podem criar suas próprias histórias a partir daquelas apresentadas nos quadrinhos ou nos filmes do herói. Não são poucas as fanfics produzidas por fãs do Aranha, que muitas vezes criam histórias alternativas do herói junto a outros Vingadores. Essas versões, contudo, também são fontes de disputas e conflitos internos no fandom, fazendo fãs voltarem-se uns contra os outros apenas para defender seus gostos pessoais, mesmo que estejam tratando do mesmo personagem fictício. Entre os “tapas e beijos” do fandom, a Marvel só tem a lucrar com todo esse engajamento dos fãs nas redes e plataformas digitais. Por causa deles, um dos personagens mais icônicos criados por Stan Lee consegue ter sua imagem renovada e ser apresentado às novas gerações.

Referências

CAMPANELLA, B. O fã na cultura da divergência: hierarquia e disputa em uma comunidade on-line. Contemporanea : Revista de Comunicação e Cultura, v. 10, n. 3, p. 474-489, 2012. Disponível em: <https://periodicos.ufba.br/index.php/contemporaneaposcom/article/view/6435>. Acesso em: 29 jun. 2022.

FISKE, J. The Cultural Economy of Fandom. In LEWIS, L.A (ed.) The Adoring Audience, Londres: Routledge, 1992, p. 30-49.

THORNTON, S. Club cultures: Music, media, and subcultural capital. Wesleyan: Wesleyan University Press, 1996.

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