A fanfic no universo dos Twilighters

Anderson dos Anjos, Julie Lima e Silva, Maria Letícia de Freitas e Pedro de Aquino


Fã, esse conceito tem sido há cada dia ressignificado com o advento de mídias digitais, que reformularam como essa comunidade passou a consumir os conteúdos sobre seu produto favorito. Essa nova construção social pode ser percebida a partir do fenômeno da cibercultura, conceituado por Primo (2007) como um ambiente social onde surgem novas formas de comunicação a partir do trabalho de produção e circulação de conteúdo entre as comunidades de fãs, o que os conecta mais ainda no universo do seu fandom.

A partir disso, Jenkins (2009) pontua que é possível notar diversas novas formas de consumo no mundo digital, pois os fãs passam a interagir ainda mais e participar ativamente do universo do produto midiático de sua preferência. Isso possibilita o aumento de produções autorais a partir do próprio fandom: “esses conteúdos que se proliferam na internet têm como objetivo prolongar essa prática de consumo” (MARTINS; DAMACENO, p.108, 2020).

É nesse contexto que se popularizam as fanfics, criações textuais amadoras de fãs a partir de algum produto da indústria cultural que eles admiram. Essas produções muitas vezes partem da narrativa original para realizar modificações ou recriam as histórias para publicá-las nas comunidades do seu fandom.

No universo digital, existem plataformas específicas para hospedagem dessas produções. Para Martins e Damaceno (2020) esses espaços favorecem novos processos de interação e novas formas de comunicação entre os autores das fan fics e os seus leitores, cujos papéis podem se alternar. Dentro do mesmo estudo, os autores falam sobre dois dos sites mais famosos no Brasil - o Wattpad e o Spirit Fanfics - e identificou neles diversas ferramentas que facilitam a produção de conteúdo e interação dos usuários com as fanfics como modos de compartilhamento, comentários, avaliações e outras ferramentas que permitem a interação digital entre os fandoms.

As plataformas de fanfic funcionam como um meio de socialização e materialização da imaginação dos fãs, que estão cada vez mais procurando uma forma de participar dos produtos que consomem (MARTINS; DAMACENO, 2020, p.110).


O fandom de Crepúsculo, saga que aborda o romance entre o vampiro Edward Cullen e a humana Bella Swan, surgiu em um período no qual a comunidade de fãs já havia estabelecido caminhos e padrões que viriam a fornecer modelos básicos para a tradição de fanwriting - como a realização de prêmios, leitores beta (usuários que lêem e revisam os capítulos das fics antes de eles serem publicados), feedback, notas de esclarecimento etc. Acontece que o fandom de Crepúsculo potencializou esse universo para muito além do público jovem e geek, que em princípio seria o consumidor primário deste tipo de conteúdo. Era muito comum que o público consumidor das fanfics de Crepúsculo, assim como os consumidores da própria saga, fossem mulheres mais velhas, com formação e recursos profissionais (JAMISON, 2017).

Era comum ver críticos e jornais reproduzindo machismo contra os fãs de Crepúsculo e suas fanfics. O preconceito contra a obra vinha, em sua maioria, do gênero masculino, que tendem a diminuir e ridicularizar tudo que agrada o público feminino (GARRUTH, 2019). Não obstante, o próprio fandom de Crepúsculo também é um dos maiores críticos da obra - muitos não acreditam que as adaptações cinematográficas são bem feitas ou mesmo que os livros sejam bem escritos. Acontece que, para eles, é possível apreciar o que havia de bom na história, e imaginar novas possibilidades a partir delas. Isso se estendeu para as fanfics.

Como ocorre em outros fandoms, as fanfics de Crepúsculo se baseiam na obra de ficção, mas, muitas vezes, não se torna possível relacioná-las exatamente com a história original. Isso ocorre porque é comum que os autores de fanfic utilizem apenas as conexões estruturais da história (nomes dos personagens e suas personalidades) e usem sua imaginação para depositar na escrita projeções pessoais, desejos e expectativas. Isso permite que autores encontrem um caminho para a produção de suas próprias obras originais. Masters of the universe”, por exemplo, era uma fanfic de Crepúsculo de conteúdo sexual explícito, passada num universo alternativo, que que posteriormente veio a se tornar o bestseller “Cinquenta Tons de Cinza”.

Para Jamison (2017), a escrita informal, amadora e iniciante das autoras de fanfics foi suficiente para montar uma grande audiência cujos laços se fortaleceram ano após ano nas décadas posteriores aos lançamentos de Crepúsculo. Se existia uma hierarquia dentro da comunidade de fãs na internet, havia outra hierarquia dentro da comunidade de fãs de Crepúsculo, e as autoras das fanfics mais conhecidas certamente estavam no topo desta hierarquia, tendo muitas vezes leitores assíduos de suas produções. É sobre a construção destas relações com base nas fanfics que foram publicadas nos sites Wattpad, Spirit Fanfics e Histórias que vamos estudar a seguir.


Ao analisar a fanfic “História de Jacob e Renesmee - Sunshine”, observamos diversos aspectos, como 1) a arquitetura da plataforma em que a história se encontra; 2) as conexões entre a fanfic e as diversas teorias, assim como 3) as interações de leitores e fãs da Saga Crepúsculo para a fanfic que, narra sequências de fatos após a finalização dos livros e filmes.

Spirit Fanfiction e sua legião de histórias

A plataforma escolhida para publicar a fanfic foi a Spirit Fanfiction, criada em 2001, quando se chamava Amnsp e era um espaço realizado para a discussão de animes e produções semelhantes. Porém, com o passar do tempo, a plataforma passou a liberar opções para a publicação de fanfics e histórias originais.

Com diversas abas, a plataforma é bastante intuitiva, pois há divisões entre histórias recentes, as mais destacadas, os gêneros, categorias e tags utilizadas. Além disso, há uma seção chamada “Minhas Histórias”, que convida o usuário a escrever e produzir seu próprio conteúdo.


“História de Jacob e Renesmee - Sunshine”

A fanfic “História de Jacob e Renesmee: Sunshine” conta a história da relação de Jacob com a filha dos Cullen, já adolescente. A história foi criada e finalizada em 2014, pela autora Gabipadawan02. Estruturalmente, a fanfic contém 49 capítulos, possui faixa etária a partir de 16 anos, por conter insinuações de sexo, linguagem imprópria e violência; seu gênero se divide em aventura e ficção. Neste universo, que ultrapassa os limites de criação da Stephenie Meyer, Renesmee se muda com os pais para a Califórnia, lugar onde descobre novas amizades e a paixão que Jacob sempre sentiu por ela. De início, a personagem apresenta choque ao saber que o seu melhor amigo, na verdade, é apaixonado por ela e que eles sempre estiveram ligados por um imprinting [1].

A fanfic, além de propor uma continuação de uma parte da história não mostrada nos livros e filmes da saga Crepúsculo, nos apresenta também novos personagens, como, por exemplo, amigos que Renesmee conhece na escola e o filho que ela tem com Jacob no decorrer da história. Isso comprova que a cultura da de fãs possibilita criar um futuro para uma história já “acabada”, mas que deixou em aberto algumas questões, como: “Qual o futuro esperado para Jacob e Renesmee?” “O imprinting que eles possuem irá se transformar em uma relação amorosa?” Para respondê-las, existem diversas fanfics, na qual a escolhida para análise foi publicada no Spirit. Essa obra foi escolhida pois ela possui diversas características que são próprias do gênero fanfic, além de possuir uma narrativa levemente diferenciada da maioria das histórias. Não obstante os clichês característicos do gênero, essa história ainda consegue inovar em alguns pontos.

Antes de partir para a visualização de interações dos usuários com a fanfic, é importante ressaltar a problematização em torno da relação de Jacob e Renesmee, que foi aceita por alguns fãs e rejeitada por outros. O próprio Taylor Lautner [2], por exemplo, abominou a ideia de imprinting com Renesmee, de acordo com a Rolling Stone (2020), por esse fenômeno ocorrer na saga com a personagem ainda bebê enquanto o seu personagem era adulto, o que acabou gerando muitas controvérsias no público consumidor. A criadora da saga ressaltou que esse fenômeno não se relaciona apenas com um romance, mas também com uma relação de amigos ou irmãos.

No entanto, alguns fãs abraçaram a possibilidade de romance e, a partir disso, surgiram as fanfics que propõem histórias diferentes para o futuro de Jacob e Renesmee, como o caso da fanfic analisada nesta pesquisa, que mostra a personagem aprendendo a enxergar Jacob não somente como um amigo, mas como o homem de sua vida.

Mesmo que considerem inadequado retratar um homem adulto tendo um relacionamento amoroso com uma adolescente, os fãs da Saga que shippam o casal possuem, através da fanfic, uma certa liberdade para criar seus próprios desdobramentos, conforme o que eles gostariam que acontecesse na história.

Outro ponto interessante são ações realizadas entre a fanfic e seus leitores. Até o momento em que este texto foi escrito, a história publicada no Spirit continha 324.599 visualizações, 1.820 marcações de “favorito” e 436 comentários. Pelos comentários podemos observar uma legião de fãs que têm opinião crítica, são apoiadores do casal Renacob e, principalmente, demonstram empolgação com os capítulos e anseiam por sua continuação. O interessante é perceber que fanfics também podem ser consideradas obras atemporais, visto que existem interações tanto de 2014, como de 2021, por exemplo.

Abaixo podemos ver comentários a respeito do primeiro capítulo da história e pode-se inferir, a partir disso, o desejo de acompanhar os próximos capítulos.


Já na próxima imagem, vemos comentários do capítulo 49, último da história e o mais comentado de todos - 63 comentários. Intitulado “Para Sempre”, a história se encerra com Jacob e Renesmee após tentarem derrotar um novo inimigo. O final do capítulo mostra eles felizes, casados e com um filho chamado Dan, que também é um lobo. Esse final obteve uma repercussão muito grande pelos leitores, como é possível observar abaixo:


Fãs e fanfics: uma relação mútua

Diante dos conceitos discutidos e da análise da história escolhida, fica claro que a cultura das fanfics no ambiente digital possui uma relação intrínseca com a cultura da convergência, pois tem como uma das suas principais estruturas a relação que os leitores têm entre si e com os autores das narrativas. O fato dos leitores algumas vezes poderem participar ativamente das histórias publicadas, sugerindo tramas ou desfechos, aumenta a quantidade e o significado dessas interações, criando um vínculo entre esses indivíduos através da criação artística.

Além disso, em relação ao conteúdo, nota-se que as fanfics podem conter temas adultos, até mesmo fetichizados em alguns casos, mesmo quando baseadas em obras que não discutam esses temas. Certos limites morais parecem ser contestados dentro desse universo, como pode ser observado na história em que analisamos, que apresenta uma relação entre um homem adulto e uma adolescente. Essa tendência acontece, também, pelo fato das fanfics fazerem parte de uma cibercultura que possui como regra principal a liberdade criativa, característica exclusiva da Internet, que geralmente não está sujeita a regras comerciais e editoriais.

Sendo assim, os estudos que abordam o universo da fanfics possuem uma grande quantidade de material de análise e, mais importante, com uma complexidade de relações que têm relevância antropológica, sociológica e psicológica.


Notas

[1] Fenômeno que ocorre com os lobos da Saga Crepúsculo. O lobo, a partir do momento que tem um impriting com outra pessoa sente a pura necessidade de protegê-la, amá-la e cuidar dela até o fim de sua vida.

[2] Ator que interpreta Jacob na Saga Crepúsculo.

REFERÊNCIAS

Devote ‘Twihards’ get their fix online. Today, 2008. Disponível em: <https://www.today.com/today/amp/wbna33921402>. Acesso em: 12 jul. 2022.

JENKINS, H. Cultura da convergência. 2ed. São Paulo: Aleph, 2009.

JAMISON, A. Fic: Por que a fanfiction está dominando o mundo. Editora Rocco. 2017.

GARRUTH, P. Homens não gostam de mulheres. Jornal Fato, Online, 2019. Disponível em: <https://jornalfato.com.br/artigos/homens-nao-gostam-de-mulheres,299463.jhtml>. Acesso em: 12 jul. 2022.

MARTINS, A.; DAMACENO, J. Cultura participativa de fã na internet: canais para interação e produção de fandoms. Aturá Revista Pan-Amazônica de Comunicação, Palmas, v. 4, n. 2, p. 102-120, 2020. Disponível em: <https://bit.ly/3P5CnDs>.Acesso em: 12 jul. 2022.

PRIMO, A. Interação Mediada pelo computador: comunicação, cibercultura e cognição. Porto Alegre: Sulina, 2007.

Taylor Lautner também detestava trama de Jacob se apaixonando por Renesmee em Crepúsculo, Rooling Stone, Online, 2020. Disponível em <https://rollingstone.uol.com.br/noticia/taylor-lautner-tambem-detestava-trama-de-jacob-se-apaixonando-por-renesmee-em-crepusculo/>. Acesso em: 12 jul. 2022.

0 Comentários