Saindo do armário: A importância de Glee na narrativa teen e LGBT

                               

Histórias adolescentes sempre fizeram sucesso na televisão, apesar das mesmas serem consideradas produtos da Indústria Cultural, conceito esse que parte dos pesquisadores Theodor Adorno e Max Horkheimer (1947). Segundo os autores, a produção em massa passa a ser adaptada à produção artística, o que leva produtos culturais, como filmes e programas de televisão, a se popularizar entre as massas. Acontece é que, segundo esse conceito, os produtos culturais passam a perder valor artístico e passam a ganhar valor mercadológico. Ao se analisar, no entanto, nos últimos anos, o desenvolvimento das produções seriadas televisivas norte-americanas, capazes, hoje, de despertar, ao mesmo tempo, audiência e interesse teórico, percebemos que estas alcançam um alto padrão de qualidade graças, principalmente, à maleabilidade do formato e ao nível cada vez mais elevado de roteiro (LAHNI, ASSIS e AUAD, 2013, p.3).

Segundo Raffi Sarkissian (2014), a visibilidade LGBT começou a ganhar destaque nos anos 90, com a ascensão de comunidades queer na internet. Isso propiciou um aumento de personagens LGBT’s na televisão, que eram tratados como adultos bem ajustados, colegas de trabalho, dentre outros papéis em uma sociedade heteronormativa. Mas em tramas adolescentes, jovens queer só começaram a surgir numerosamente em meados dos anos 2000, quando as discussões sobre identidades e representações começaram a ganhar espaço na mídia de massas.

O ano de 2010 foi importante para a comunidade LGBT na televisão, pois de acordo com Sarkissian (2014) esse foi um ano em que houve o maior número de representações queer adolescentes na TV. Entretanto, algo ainda era pouco comum entre essas produções, a falta de narrativas centrais, e personagens tridimensionais que representassem muito mais que somente o “amigo gay” da protagonista. A representação, como afirma Sarkissian (2014) é importante principalmente para jovens, e a representação queer, que na época era algo relativamente novo e crescente, se faz ainda mais importante. O conteúdo de mídia é um componente ativo no processo cultural da construção de identidades LGBT’s, principalmente e particularmente para jovens queer.

A televisão adolescente é frequentemente citada como uma fonte de informação para adolescentes sobre sexualidade, e a conexão com o desenvolvimento da identidade sexual é de grande interesse para os estudiosos da televisão. (MEYER e WOOD, 2013, p. 436) (tradução nossa)

A ascensão da representatividade queer adolescente em Glee

Foi então que em maio de 2009 estreando na Fox, surgiu a série Glee, criada por Ryan Murphy, Brad Falchuk e Ian Brennan. Retratando a vida escolar de adolescentes da escola fictícia William McKinley High School, em Lima, Ohio, a série reúne alguns jovens considerados excluídos em um coral chamado New Directions. Através de lições musicais, lecionadas por Will Schuester (Matthew Morrison), esses jovens lidam com os mais variados problemas da adolescência, entre descobertas e realização de sonhos. Priorizando e incorporando personagens LGBT’s e desenvolvendo suas histórias, Glee construiu um distinto espaço queer, que permitiu mais efetivamente o engajamento entre jovens LGBTQIA+ (SARKISSIAN, 2014).

                            

Com isso, Meyer e Wood (2013) pontuam que Glee desvia das narrativas tradicionais adolescentes, onde identidade queer não é frequentemente considerada um dos “fatos da vida”. Mas como Glee se estabeleceu como uma narrativa adolescente relevante para a representatividade LGBT? O programa contém uma série de personagens queer, desviando-se dos formatos tradicionais de televisão para adolescentes, onde identidades não heterossexuais são tipicamente contidas em um personagem simbólico (MEYER; WOOD, 2013). Entre as histórias temos os personagens gays, Kurt Hummel, Blaine Anderson, Dave Karofsky, Sebastian Smythe, Spencer Porter, a personagem lésbica Santana Lopez, bissexual Brittany Pierce e transgêneros Wade Unique e Sheldon Beiste, sendo todos esses personagens centrais ou recorrentes na narrativa da série.

Quando se trata de adolescentes LGBT na televisão, Glee ocupa uma posição única devido não apenas ao número de personagens queer regulares e recorrentes, que equivalem a sete nas primeiras quatro temporadas, mas também às diversas formas em que o sexo, orientação e função de identidade, em relação à vida dos personagens LGBT e ao impacto que eles têm na narrativa mais ampla da série. Como acontece com a maioria do conteúdo queer mainstream anterior, o conceito de 'armário' (a necessidade de ocultar a identidade queer de alguém) figura de forma proeminente na maioria do desenvolvimento dos personagens. [...] Em Glee, no entanto, eles apresentam um espectro de relações com 'sair do armário', em que nenhuma das quais faz com que seja um problema individual ou apresentado exclusivamente do ponto de vista dos personagens heterossexuais. Em vez disso, eles são apresentados como complexos, intrinsecamente relacionados a enredos mais amplos e alinhados com amplos temas de exploração de identidade que todos os personagens vivenciam. (SARKISSIAN, 2014, p. 147-148) (tradução nossa)

Saindo do armário e a importância da narrativa queer em Glee

Como Sarkissian (2014) explica sobre o conceito de “armário” sendo uma forma de ocultar a sexualidade e/ou identidade de alguém, em Glee, temos o desenvolvimento dos personagens LGBT’s que diferem do comumente usado em outras narrativas, onde personagens queer tem como única característica a revelação de sua sexualidade ou o conhecido “sair do armário”. No show, Glee trabalha com o desenvolvimento dessas histórias de maneira a não reduzi-los unicamente à sua sexualidade, tornando o processo de descobrimento e exploração de sua identidade uma passagem muito mais realista e identificável principalmente para com o público jovem. Tomamos como primeiro exemplo o personagem de Kurt Hummel, interpretado por Chris Colfer, que ganhou um arco narrativo ao lado da protagonista da série, Rachel Berry (Lea Michele), e se tornou o grande símbolo LGBT da série. Kurt é um personagem com características subversivas, não sendo o tipo de personagem queer que era comumente representado na televisão, que Sarkissian (2014) divide em duas formas: aqueles que estão passando por uma fase, ou personagens afeminados, mas “enrustidos”. Hummel não é apresentado dentro de um “armário” já que gradualmente sua sexualidade é trazida ao foco, enquanto outras questões percorrem pela vida do adolescente. Além disso, a série não fez um grande mistério em torno da sexualidade de Kurt que poderia ser levada em consideração pela forma exagerada e afeminada como ele é apresentado, já que sua sexualidade é afirmada logo no terceiro episódio da primeira temporada “Acafellas”.

Diante disso, poderíamos, com efeito, constatar que, na série, a representação de Kurt acaba tanto por denunciar o caráter construído das noções de feminino e masculino quanto por dissociar a ideia de efeminação da ideia de servilismo. Em termos narrativos, acredita-se que o julgamento acerca da subversão é válido, posto que, ao mesmo tempo em que se põe um olhar irônico sobre ele e a sua teatralidade, não raro mesmo sobre sua aflição, o espectador pode ser levado a, enquanto ri de Kurt, a torcer e se afeiçoar a ele, tanto quanto por todos aqueles que entram no Glee Club. (LAHNI; ASSIS e AUAD, 2013, p.8).

A sexualidade de Kurt é apenas uma peça para que outras narrativas se desdobrem e tornem esse um personagem complexo. Do relacionamento de Kurt com Blaine Anderson (2x06 - “Never Been Kissed”), um jovem gay assumido e muito seguro de sua sexualidade, ao período de assédios e bullying por Dave Karofsky que levaram Kurt a mudar de escola (2x09 - “Special Education”), Hummel foi um personagem que nunca passou pelo marasmo dos poucos caminhos que eram viáveis a personagens queer, mas sim abriu portas criando um personagem com convicções nítidas, dramas adolescentes à flor da pele e escolhas que refletem seus gostos tão estimados, como por roupas e divas da música.

                                  

Sarkissian ao citar Blaine Anderson (Darren Criss) diz que, assim como Kurt, o personagem também jamais teve sua história atrelada ao “armário”. Blaine teve sua história desenvolvida passando primeiro por uma desilusão amorosa e depois se envolvendo com Kurt. Mas dentre todas essas fases, ele nunca esteve inseguro sobre sua sexualidade, nem teve sua retratação reforçada com estereótipos que pairam sobre a comunidade LGBT. E sobre o desenvolvimento de personagens com características que vão além da sua sexualidade, Sarkissian também cita Sebastian, que na terceira temporada (3x05 -"The First Time") se torna o líder do coral da qual Blaine fazia parte, os Warblers, e é retratado como vilão na narrativa. Sua orientação sexual não é um problema e não precisa de reconhecimento narrativo formal para sabermos disso. “Em vez disso, é firmemente estabelecido por meio de sua justaposição com personagens e relacionamentos LGBT existentes, sublinhando o contexto inconfundivelmente estranho de Glee que não depende necessariamente da narrativização da orientação sexual para apresentar um novo personagem gay.” (SARKISSIAN, 2014, p. 149)

Entretanto, diferente de Kurt e Blaine, Santana e Karofsky são dois personagens que tiveram arcos “dentro do armário”, mas o desenvolvimento dessa narrativa não foi feita de forma estereotipada, pois como Sarkissian (2014) cita, “esses personagens oferecem os casos mais fortes de resistência a tais estereótipos narrativos familiares precisamente porque eles têm permissão para desenvolver identidades queer ao longo de três anos”. Santana (Naya Rivera) começou de uma personagem coadjuvante, com poucas falas na primeira temporada, para uma personagem de personalidade forte e temperamento explosivo da segunda temporada em diante. Ela era sempre retratada como “a pegadora da escola” e como uma das “alunas mais sexy de McKinley”, até que sutilmente foram levantando o possível relacionamento entre ela e sua melhor amiga Brittany.

O ponto alto da narrativa sobre sua sexualidade se dá quando um boato de que ela seria lésbica se espalha quando um dos candidatos que concorria contra Sue Sylvester (Jane Lynch) nas eleições ameaça expor em seu vídeo de campanha (3x06 - "Mash Off"). Após o ocorrido, ela lida com o conflito de querer “sair do armário”, mas enfrenta o medo da rejeição. É interessante perceber que ela teve esse medo, mas recebeu apoio por parte da comunidade (o clube Glee), bem como de seus pais, mas um momento especial se destaca, que é quando ela se assume para sua avó, que é muito religiosa (3x07 - "I Kissed a Girl"). Essa cena reflete o já conhecido momento do “coming out”, mas a intenção dele foi mostrar a rejeição por parte da avó de Santana e como ela foi afetada por isso, já que ela amava e dependia muito da aprovação e do amor de sua avó. Após todo o momento conturbado com relação a sua revelação, Santana volta a ser a adolescente provocativa, mas sua sexualidade, agora estabelecida, é somente um ponto a mais na construção da personagem, que desenvolve várias outras narrativas centrais, inclusive ao lado da protagonista da série.

                              

Com Karofsky (Max Adler) o “coming out” foi mais drástico, já que vimos uma outra faceta desse momento, que chega a ser sugerido com Santana, mas acabou culminando em Dave. Karofsky sempre perseguiu Kurt por conta de sua sexualidade, e sempre deixou claro que não o aceitava. As provocações e o bullying viraram ameaças reais, até que Kurt resolveu confrontar Dave, mostrando mais uma característica presente em Kurt, que é a sua afirmação enquanto homossexual. Entretanto Kurt foi surpreendido por Karofsky, que acabou o beijando forçadamente, nos revelando assim que Karofsky também era gay, se encaixando no conceito de “armário” apresentado por Sarkissian (2014) e à narrativa normativa ao qual o personagem estava preso. O episódio (2x06 - “Never Been Kissed”) ainda constata o fato de esse ter sido o primeiro beijo de Kurt, bem como o primeiro beijo homossexual a ser exibido na série. As atitudes de Karofsky em rejeitar sua identidade sexual e não se assumir publicamente acabam levando a um triste ocorrido, quando sua sexualidade é exposta em sua nova escola, culminando em uma tentativa de suicídio de Dave (3x14 - "On My Way"). As narrativas de Karofsky e Hummel passam a se cruzar agora de forma diferente, o embate entre os dois, que antes se dava pelo confronto entre ser gay e não se aceitar enquanto homossexual, se transpõe em o apoio que Kurt passa a dar para Dave, mesmo com todo o bullying sofrido.

                                    

Na terceira temporada, tivemos a introdução de mais uma personagem importante para o elenco queer da série, que trouxe novas pautas e abriu portas para um desenvolvimento futuro de “coming out”. Wade “Unique” Adams é uma personagem transexual da série, interpretada por Alex Newell, vice-colocado do reality spin-off de Glee - The Glee Project (2011 - 2012).

Unique desenvolve durante a terceira e quarta temporada do show um papel interessante, pois ela, assim como Kurt, não teve a sua sexualidade como questão central da sua narrativa, apesar da mesma lidar com problemas de insegurança para performar como mulher. Mesmo assim, nesse enredo, Unique ainda não havia se apresentado enquanto transexual, mas sim como um jovem que gosta de se vestir de mulher. Somente na quinta temporada (5x05 - “The End of Twerk") que Wade começa a lidar com a sua identidade de forma aprofundada, após passar por um incidente no banheiro da escola, quando alguns rapazes a ameaçaram. A partir disso a narrativa de Wade introduz sua luta para mudar as regras de gênero no banheiro da escola, bem como ela passa a ser tratada como uma personagem feminina. Ela não estava necessariamente no “armário”, pois a narrativa deixava claro que Wade estava conformado com sua identidade de gênero, mas foi necessário um evento ocorrer para assim podermos compreender os conflitos, necessidades e intenções do personagem de Alex Newell.

                                              

E como dito, Wade foi importante para desencadear um evento na série, que foi a revelação de Shannon Beiste enquanto homem trans, sendo assim, Sheldon Beiste, interpretada por Dot Jones. Shannon surge na segunda temporada da série, e é um personagem que ganha protagonismo passando por diversas narrativas, que dentre elas, abordam sua sexualidade. Shannon era retratada como uma mulher máscula, e muitos achavam que ela era lésbica, entretanto, na terceira temporada sua sexualidade (heterossexual) é revelada (3x05 - "The First Time") já que ela assume gostar do treinador Cooter Menkins. Mas alguns problemas na relação dos dois é desenvolvido, gerando conflitos na narrativa que de alguma forma podem ter levado Beiste a assumir sua identidade de gênero.

Mesmo em seu relacionamento com Cooter, os jovens de McKinley ainda à tratavam de forma masculinizada, o que levou ao seu incidente com Cooter (3x18 - "Choke") quando algumas alunas do Glee Club fizeram piada do olho roxo de Beiste. O que foi então revelado, é que ela havia sido agredida por Cooter, recebendo posteriormente apoio das meninas que riram dela, e principalmente de Sue Sylvester e Roz Washington. Passado esse evento que marcou o ápice da narrativa de Shannon sobre sua sexualidade, na sexta temporada (6x07 - "Transitioning") Beiste assume sua identidade de gênero “saindo do armário” enquanto homem trans. A narrativa serial (SARKISSIAN, 2014) construída sobre a personagem é de fato desenvolvida gradualmente por esses eventos que acontecem desde que a personagem surge na segunda temporada do show. Shannon sempre precisou lidar com os questionamentos sobre sua aparência que refletiam como as pessoas a enxergavam sexualmente. “Enquanto episódios individuais em Glee geralmente giram em torno de temas independentes que inspiram as músicas e performances, personagens e desenvolvimentos de enredo, como relacionamentos românticos, rivalidades e preparações para as competições expandem a narrativa ao longo de vários meses ou anos.” (SARKISSIAN, 2014, p. 151). Vale destacar que ao final do sétimo episódio da sexta temporada "Transitioning", Wade Unique retorna para o show e realiza uma performance em apoio a Sheldon Beiste, juntamente com um coral de 200 pessoas trans.

                                

Passado por todos os pontos e desdobrando, mesmo que minimamente, algumas narrativas, percebemos que o trabalho feito na série Glee foi um passo dado que abriu caminho para termos conteúdos teen e LGBT’s tão progressistas como os de hoje, como é o caso de Euphoria (2019) e Sex Education (2019). Obviamente Glee não é a única responsável por isso, e a mesma não se isenta de problemas, estereótipos e críticas, entretanto, ela fez parte de um momento onde a ascensão de séries teen que tratavam de temáticas queer desafiava os modelos tradicionais da televisão, bem como subvertia os estereótipos de programas que tentaram dar um primeiro passo, mas acabaram caindo no clichê normativo que fugia da realidade LGBT. Desafiar o status quo da televisão, e transformar modelos narrativos seriados em espaços para o desenvolvimento de histórias queer, fornecendo arcos que não dependem somente da sexualidade dos personagens, é algo a se levar em consideração, e de fato, propiciou para que tenhamos uma variedade de produtos teen que se propõem em oferecer narrativas queer fora do estereótipo. “Sair do armário” e fazer sua narrativa, nunca pareceu tão promissor para jovens LGBT quanto vem sendo nos últimos anos.

REFERÊNCIAS

LAHNI, Cláudia Regina; ASSIS, R. B. B. R. ; AUAD, Daniela . Homossexuais em séries de TV: reflexões sobre Glee. In: XVIII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste, 2013, Bauru. Anais do XVIII Congresso de Comunicação na Região Sudeste. Disponível em: https://portalintercom.org.br/anais/sudeste2013/resumos/R38-1061-1.pdf. Acesso em: 1 jul. 2021.

MEYER, M.D.E., WOOD, M.M. Sexuality and Teen Television: Emerging Adults Respond to Representations of Queer Identity on Glee . Sexuality & Culture, v. 17, p. 434–448, 2013. DOI: https://doi.org/10.1007/s12119-013-9185-2

SARKISSIAN R. Queering TV Conventions: LGBT Teen Narratives on Glee. In: PULLEN C. (eds) Queer Youth and Media Cultures. Londres: Palgrave Macmillan,2014. DOI: https://doi.org/10.1057/9781137383556_10




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