O Vale das Bonecas e a sistematização de arquétipos femininos no Cinema Hollywoodiano


Pessoas e comunidades de todo o mundo e todas as eras mantêm vivos os seus valores culturais, morais, ensinamentos e outras questões através de histórias. Com a mídia contemporânea, os aspectos sensoriais e mentais desses contos tomaram outras proporções, além de histórias antigas, temos filmes, séries, reality shows, artes visuais, tecnologias e etc que fazem uma manutenção das narrativas e valores que preenchem nosso registro cultural e histórico. Até mesmo nossas “estrelas” contam histórias, principalmente aquelas que se encaixam na Narrativa Clássica, onde alguns estereótipos que circundam insistentemente as personalidades femininas são facilmente perceptíveis.

Um dos grandes exemplos dessa contínua logística na perpetuação desses estereótipos (que a muito tempo já existiam na sociedade ocidental) e seus mitos é a indústria do cinema, que durante seu início ajudou a disseminar e firmar no imagético popular os ícones que até hoje são amplamente conhecidos e cuja a influência na indústria cinematográfica e cultura pop é inegável. As produções cinematográficas da década de 1910, quando o cinema começou a se tornar mais acessível, principalmente os filmes hollywoodianos, foram marcadas pela euforia e exploração do recém descoberto controle imagético e do movimento das películas. As narrativas exploravam um universo lúdico e fantasioso, envolviam a imaginação dos homens, que traziam suas histórias mágicas para a "realidade" das telas, isto é, uma representação da realidade, ideal à imaginação do homem e também reveladora do seu inconsciente.


Nesse sentido, conseguimos encontrar no cinema, um reflexo daquilo que era desejado, querido ou preterido, o status quo da sociedade e outros indicativos de seu determinado período cultural. É nesse âmbito que podemos traçar uma relação mais profunda entre o cinema, seus processos de produção e o inconsciente do espectador, que faz com que ele crie junto com esse fascínio pelas histórias, diversos significados formados pelo olhar, perpetuando assim as normas morais de uma sociedade ( LAZZARI, 2019).

No documentário E a Mulher Criou Hollywood, as diretoras trazem à tona uma informação pouco disseminada na nossa sociedade tão acostumada a ver mulheres com desigualdade profissional em relação a homens, nele são relembrados nomes esquecidos da história de Hollywood, nomes de diretoras e produtoras mulheres que detinham poder naquela indústria. Como Mary Pickford, que em 1919 chegou a fundar um próprio estúdio de cinema ao lado de Charles Chaplin e outros sócios.


Na obra também acompanhamos a perda de poder dessas mulheres na indústria, que até 1925, eram diretoras de metade dos filmes produzidos em Hollywood. Um dos motivos para essa queda foi a crise de 1929, que causou maior disputa por espaço na promissora indústria de cinema entre diversos desempregados durante A Grande Depressão americana, “Eles entraram na disputa e elas foram aos poucos perdendo espaço por conta da dupla jornada de trabalho. O cinema, que antes era um trabalho para complementar renda, tornou-se atividade profissional full time num negócio cada vez mais ambicioso “(Festival do Rio). Dessa maneira, Hollywood era cada vez mais comandada por homens.

Nesse ambiente e em um tempo onde mulheres apenas recentemente haviam ganhado o direito ao voto, formou-se um uma máquina de narrativas, que serviam também para a manutenção do patriarcado, os valores morais da sociedade norte americana hegemônica daquela época e também a já institucionalizada objetificação feminina - que estava sendo reforçada através do controle sobre a representação de sua imagem (além de outros papéis sociais subjugados ao masculino e branco).

Kaplan relaciona a relação de projeção que o cinema proporciona com dois conceitos da psicanálise: o voyeurismo e o fetichismo. “ O voyeurismo é o ato de olhar alguém sem ser visto, gerando satisfação sexual, e o fetichismo é a busca do homem em encontrar o pênis na mulher, gerando pulsão sexual e amenizando o medo da castração e da diferença sexual. O cinema, dessa forma, se torna um meio perfeito para propagar essas visões e desejos masculinos. (LAZZARI, 2019)


Com esses mecanismos e tendências culturais narrativas e atreladas aos mitos das diferenças sexuais demarcadas, chamadas de “masculino” e “feminino”, os posicionamentos na representação pelos dois gêneros de domínio-submissão, privilegiam o “macho” (através de mecanismos de voyeurismo e fetichismo, que são operações masculinas e porque o seu desejo detém o poder/ação enquanto, nesse papel, a mulher não. “ Kaplan' ( 1995, p. 52). Assim foi-se criando personagens cativantes e fascinantes para o público e que capturavam justamente essa forte mitologia que influenciava a forma como nossa sociedade enxergava o corpo feminino, era explorado nessas representações o mistério, medo, desejo e o controle sobre elas.

Como principal exemplo prático dessa forma de produção, o star system é o que dá início a espetacularização da imagem feminina, gerando um fascínio nos espectadores. As estrelas surgem como reflexo da sociedade capitalista que industrializa os mitos e fabrica as deusas conforme os arquétipos do imaginário (LAZZARI,2019). Com o sucesso publicitário que as estrelas se tornaram, foi-se criando um molde no qual as atrizes marcavam o público com sua personalidade, que seguia os mitos de mulher ingênua ou perversa. Essas características influenciam o cinema como um todo e são criadas a partir de seu contexto cultural e mercadológico, representando diferentes “formatos” desse arquétipos já conhecidos pelo público.


Com o contexto da Primeira Guerra Mundial (1914-1918) a indústria cinematográfica dos Estados Unidos se tornou um dos maiores fornecedores de filmes do mundo, fortalecendo o star system. A primeira estrela das projeções cinematográficas, segundo Morin (1989, p. 7), foi a atriz canadense Mary Pickford, conhecida como a “queridinha da América”. Com seus cachos loiros, a atriz incorporou o lado angelical e romântico nas telas dos Estados Unidos. No mesmo período e com características opostas, o autor ainda cita a atriz italiana Francesca Bertini, que surge como uma diva dramática, obscura e possessa de amor no cinema da Itália. É válido relacionar essas duas atrizes com a situação das sociedades no período: enquanto a Europa sofria com a Guerra e enaltece a diva sombria, a ascensão dos Estados Unidos vendiam a estrela angelical para o mundo. (LAZZARI, 2019)

Dentro desses arquétipos podemos citar seus desdobramentos, que adaptam-se ao seu contexto cultural e como se encontram as representações sociais baseadas na diferença sexual. Por exemplo a “vamp”, que ficou famosa através da atuação de Theda Bara. Esse arquétipo tinha traços de frieza, imoralidade e erotismo e justamente devido a sua imoralidade ela logo foi apagada do star system, pois uma estrela não poderia ser contra os valores morais americanos. Apesar disso, a Vamp foi quem estreou o primeiro beijo na boca diferente do beijo teatral no cinema! Onde no mesmo ato ela suga a alma de seu amante... Mas Morin afirma que a vamp liberou uma energia erótica que se espalhou por todas as estrelas do cinema. Como a Femme Fatale, que se trata de uma mistura entre as características bem definidas das personalidade polarizadas entre a mulher pura e a vamp. A mulher fatal possui a bondade da virgem e ao mesmo tempo a malvadeza da vamp e irresistivelmente bela, complexificando um pouco mais esses arquétipos simplórios.


Os Novos mitos:

Durante os anos 60, principalmente na França, um movimento de produção de obras cinematográficas chamado Nouvelle Vague passou a explorar temas no cinema que antes eram deixados de lado, como a perspectiva feminina centralizada em um universo fílmico (Hypeness). Justamente nessa época um filme infamo surge: “O vale das Bonecas” de 1967, essa película é uma adaptação do best seller de mesmo nome, cuja autora se chama Jacqueline Susan, esse livro foi o mais vendido de 1966 e o primeiro livro escrito pela autora. Até hoje já foram vendidas mais de 31 milhões de cópias, tornando-o um dos mais vendidos da história. Porém esse sucesso estrondoso não foi o mesmo que aconteceu com o filme.


O livro de Jaqueline explora um tema que ainda era polêmico para a época: O lado obscuro de Hollywood, da fama e das celebridades. A trama conta a história de três mulheres que tentam ganhar a vida em Nova York e Hollywood dos anos 60, mas que ao mesmo tempo que vivem em um ambiente que socialmente é visto de maneira idealizada e cheio de projeções de uma vida capitalista bem sucedida (fama, dinheiro beleza, etc), elas lidam com o lado negativo desse mundo, como a pressão que o reconhecimento artístico traz, relacionamentos, vício em drogas, sexo, machismo, solidão, dinheiro demais ou a falta dele e outros temas.

Esse mundo hollywoodiano é chamado metaforicamente de Vale das Bonecas, e no início do filme temos a seguinte fala que resume muito bem a mensagem do filme:

“Escale o Everest e chegará ao Vale das Bonecas.
É uma ascensão brutal e penosa.
Ao chegar ao alto, espere que a euforia lhe invada, mas não é assim.
Você está só.
E o sentimento de solidão é assombroso.”

Nessa cena vemos três representações de pessoas em um vale, fazendo alusão às três personagens principais do filme: Neely O'Hara - uma estrela em ascenção que quando atinge grande sucesso e fama mundial, está viciada em drogas, se desfez do marido que realmente se importava com ela e tem sua carreira totalmente fora de controle, sempre brigando com outros artistas e pessoas desse meio e por fim se vê frustrada e sem aquilo que a fez ficar famosa - sua essência pura e talentosa; Jennifer North - Interpretada por Sharon Tate, uma jovem atriz que limita sua capacidade e talento aos seus atributos físicos e sensualidade, ela acaba se apaixonando por um cantor que sucumbe a uma doença que o torna senil, assim Jennifer fica sem recursos e precisa atuar em filmes experiementais e eróticos, o que causa forte julgamento e marginalização na sua carreira; Anne Welles - uma jovem garota que deseja viver uma vida mais agitada e sai do interior para ter uma chance na cidade grande, sem muitas expectativas acaba se tornando uma estrela, mas que ao final do filme deseja apenas voltar para sua cidade natal e deixar a fama de lado.

“Bonecas” é uma referência a uma gíria que era usada no show business da época, ela significa remédios prescritos que muitas pessoas usavam naquela época e se viciaram, talvez como uma maneira de cooperar com o ambiente exaustivo e muitas vezes tóxico.


Essas personagens incorporam os arquétipos antigos do cinema, mas repaginados de uma maneira contemporânea. A autora nunca admitiu isso, mas as pessoas por trás do filme afirmam que a história foi fortemente influenciada por estrelas reais antigas, os mecanismos da indústria e o que ela faz com seus artistas. Um fato simbólico sobre esse filme é que foi o último papel que a lendária Judy Garland foi contratada, porém nessa época ela estava extremamente frágil, se encontrava viciada em pílulas e era "impossível" de trabalhar e depois de alguns prejuízos ela foi demitida. Muito similar àquilo que o filme propõe a criticar não é mesmo?


Embora a película tenha gerado muita expectativa no público, se parecia um filme clássico hollywoodiano e muito promissor, não foi como a crítica o recebeu. Tanto o filme quanto o livro foram criticados por seu conteúdo “sujo”, glamouroso demais, diálogos clichês, erros de continuidade e aparente superficialidade nas personagens. Ele se propunha a mostrar a “realidade” das estrelas de Hollywood, mas seus momentos demasiado dramáticos o tiram de sua potência reveladora. Porém o filme foi um sucesso de bilheteria, afinal de contas, esses críticos são em sua maioria homens e talvez isso tenha de certa maneira influenciado como eles absorvem e enxergam uma narrativa escrita por e para mulheres.

Sobre a crítica do filme e do livro Susan afirmou “Existem homens demais escrevendo para a crítica e eu não escrevo para a crítica, eu escrevo para público”. Um desse críticos chamado Gore disse no Tonight Show: “ Ela (Susan) parece um motorista de caminhão em drag”. (VICE)


Talvez a "superficialidade", glamour, feminilidade e os desfechos que o filme traz é a resposta de sua popularidade. Ele é camp sem prometer, o que o torna um filme inesperado e engraçado, além de sua estética querida. Hoje em dia, o filme continua sendo famoso, considerado um Cult Classic e me arrisco a dizer um filme a frente do seu tempo, que de sua maneira aponta as consequências do mundo glamuroso e de ilusões que a fábrica de mitos nos empurra. Porém, como já é de se esperar, as três mulheres independentes e modernas tem destinos clichês. Elas desafiam o patriarcado, fazem o que desejam, são donas de seu corpo e mais bem sucedidas que muitos homens! Mas mesmo assim, ao final do filme todas são obrigadas a abrir mão de seu poder: Jennifer fez filmes com cenas de sexo e nudez e por isso não pode ter uma carreira respeitosa, Neely apesar de seu talento e fama, não conseguiu sobreviver ao ambiente do show business e a sua cobrança sobre o papel feminino. Anne percebe que aquele não é o seu verdadeiro sonho e com isso volta para pequena cidade onde nasceu.


Referências


LAZZARI, Alice. O mito da mulher no cinema: Análise da representação feminina no filme: ‘Tudo Sobre Minha Mãe”. Caxias do Sul, 2019.

GUBERNIKOFF, Giselle. A imagem: representação da mulher no cinema. Conexão - Comunicação e Cultura, v.8, n.15, p. 65-77, 2009. Disponível <http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/conexao/article/view/113/104>. Acesso em: 16 jul. 2021.



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