Quebrando a quarta parede com Fleabag e High Fidelity

Ei, você! É você mesmo que está lendo este texto. Sabe aquele momento em que o personagem para de realizar a ação na cena e dirige a atenção diretamente para você, indagando ou explicando alguma situação, fazendo de tudo para chamar a sua atenção? Sim, ele está falando com você, espectador. E esse recurso é conhecido como a quebra da quarta parede.

Atualmente muitas produções audiovisuais estão apostando nesta técnica de storytelling para construir uma narrativa diferenciada e o resultado, na maioria das vezes, atrai a atenção do público e fideliza o comprometimento deste com a complexidade da trama. Como é o caso das séries House of Cards (2013 - 2018, Netflix), Fleabag (2016 - 2019, BBC/Amazon), High Fidelity (2020, Hulu) e I May Destroy You (2020, HBO/BBC).

Neste texto você irá entender o que é a quarta parede, por que quebrá-la e, claro, qual o motivo de tanto sucesso.


Do teatro ao cinema ninguém vê a quarta parede!

O termo ”quarta parede” surgiu no teatro com a ideia de criar uma realidade paralela. Isto é, consideraram que o palco possuía quatro dimensões, as três paredes sólidas representadas pelas laterais e o fundo do cenário e, uma quarta parede invisível que seria justamente essa divisão entre o público e os atores. Em um primeiro momento, a regra era ignorar essa parede invisível para reforçar a existência desse outro universo, no qual não existia contato entre os personagens e os espectadores. Em seguida essa técnica foi aplicada na literatura, no cinema e na ficção seriada. De acordo com Metz (1985), a quarta parede no cinema também deve ser ignorada para obter a separação desses dois mundos, o personagem deve construir a ideia da sua existência antes e para além da narrativa, criando assim a sensação de que o telespectador está vivenciando a situação.

O cinema dá a impressão de que é a própria vida que vemos na tela, brigas verdadeiras, amores verdadeiros. Mesmo quando se trata de algo que sabemos não ser verdade, como o Pica-pau Amarelo ou O Mágico de Oz, ou um filme de ficção científica como 2001 ou Contatos Imediatos do Terceiro Grau, a imagem cinematográfica permite-nos assistir a essas fantasias como se fossem verdadeiras; ela confere realidade a essas fantasias. [grifos do autor] (BERNARDET, 2001, p.12 apud PICCININ; STEINDORFF, 2017)

A principal intenção ao invisibilizar a quarta parede é promover a identificação do público com os personagens e os acontecimentos da narrativa, como se fosse ele que estivesse passando por aqueles dilemas apresentados na tela. No momento em que o telespectador é movido para dentro do universo ficcional, se colocando no lugar do personagem - compreendendo os seus sentimentos e pensamentos -, acredita-se não ser necessário verbalizar essas informações na cena, já que o narratário é conduzido a sentir o que o personagem sente.

Mas afinal, por que quebrar a quarta parede?

Se distanciar das produções convencionais inovando na forma de contar histórias é um dos motivos que levam ao rompimento da quarta parede. Segundo Mittell (2012), às narrativas complexas geralmente rompem com a quarta parede, seja ela representada visualmente ou em uma referência direta (Malcolm in the Middle, The Bernie Mac Show) ou de maneira mais ambígua com voz over obscurecendo a separação entre o diegético e não-diegético (Scrubs, Arrested Development), colocando em destaque a própria quebra de convenções que promove.

As narrativas que utilizam esse recurso de storytelling tem em si mesma o seu referente, seja quando o personagem fala sobre suas questões psicológicas ou quando a voz over relata a cena. A quebra da quarta parede pode produzir diversos sentidos, o recurso pode ser usado para explorar o humor, dar um valor dramático ou irônico à ficção, humanizar o personagem, entre outras.

Além disso, a ausência de setas chamativas é um recurso utilizado na quebra da quarta parede para que o público produza sentido em cima do que está sendo exposto apenas para ele, completando assim a história. No momento em que o diálogo entre o narrador e o telespectador é estimulado, a série deixa um espaço intencionalmente não preenchido, ao mesmo tempo em que proporciona informações necessárias para que o próprio telespectador desenvolva diversas interpretações do conteúdo e preencha essa lacuna.

“A seta chamativa é uma paródia, claro, mas é simplesmente uma versão exagerada de um artifício que histórias populares usam o tempo todo. É uma espécie de cartaz narrativo, disposto convenientemente para ajudar o público a entender o que está acontecendo. Quando o vilão aparece pela primeira vez em um filme, surgindo das sombras com uma música atonal sinistra ao fundo – isso é uma seta chamativa que diz: “Bandido.” Quando um roteiro de ficção científica faz alguém que não é cientista entrar em um laboratório avançado e ficar perguntando aos cientistas o que é que eles estão fazendo com aquele acelerador de partículas – isso é uma seta chamativa que dá ao público justamente a informação necessária para entender a sequência do enredo. (“Aconteça o que acontecer, não derrame água nisso, ou você vai provocar uma explosão imensa!”) “ (JOHNSON, 2005, p. 34)

As setas chamativas servem como um guia narrativo, em sua ausência o espectador é incentivado a interpretar os sinais, abrindo espaço para ambiguidade, mistério e criatividade. Dessa maneira, as narrativas complexas se pautam no esforço analítico necessário para o entendimento da história e nesse quesito a quebra da quarta parede se posiciona muito bem.

Em House of Cards¹ a ausência desse recurso pode ser observada na construção do personagem anti-herói Frank Underwood. Frank usa do rompimento da quarta parede para se tornar cúmplice do público, por meio de confissões sobre seus medos, comentários com seu verdadeiro ponto de vista sobre as situações e os demais personagens. Além do artifício de confiar no telespectador informações que não seriam bem vistas caso ele contasse para os outros personagens. Essa personalidade do narrador promove diferentes interpretações por parte do público, alguns questionam sua ética e outros admiram seu comportamento.


De acordo com Steindorff (2015), o narrador promove diversas interações com o seu público, chamado de espectador ideal - aquele que compreende as informações destinadas exclusivamente a ele e utiliza disso para produção de sentido -, tais interações podem ser de forma diegética confessional e gestual.

“A categoria diegética trata-se de antecipações e lembranças de acontecimentos da diegese. Já a categoria confessional trata de emoções, segredos e juízos do narrador que são revelados somente ao espectador/ narratário. A categoria gestual, é aquela em que o narrador intradiegético utiliza apenas expressões faciais e gestos para comunicar alguma coisa ao espectador/narratário.” (PICCININ; STEINDORFF, 2017, p.7)

Em relação a postura do espectador, notamos que essa se diferencia de apenas telespectador da narrativa, sem ser estimulado diretamente pela produção, para um participante ativo, que alcança um controle mais significativo da interpretação da história justamente por ter informações exclusivas que os próprios arcos narrativos não possuem. Dessa maneira, o telespectador passa a fazer parte da narrativa, sendo confidente do personagem e criando uma intimidade entre o narrador e o narratário.

Os acontecimentos da trama são conduzidos ao espectador de forma direta por meio do narrador. Nesse sentido, o narrador interrompe com frequência a história para falar com seu público, independente da presença de outros personagens, muitas vezes com comentários sobre suas impressões a respeito daqueles personagens. O narrador parece saber bem o que o telespectador está pensando, além de mostrar o seu ponto de vista sem cortes, demonstrando que ele está no controle da narrativa.

A criação de um mundo paralelo, no qual o narrador e o espectador dividem informações que somente eles têm acesso transformou a forma de produzir as narrativas. Ao longo das temporadas da série, o telespectador consegue captar rapidamente (e até antecipar) quando o personagem irá fazer um comentário para a câmera e obter uma melhor compreensão dos gestos que foram emitidos em determinado momento.

Quebrando a quarta parede com Fleabag e High Fidelity

Caro leitor, se você acha que o uso deste recurso nas ficções seriadas televisivas estadunidenses é algo recente, terei que refrescar sua memória. “Now this is a story all about how my life got flipped, turned upside down and I'd like to take a minute, just sit right there. I'll tell you how I became the prince of a town called Bel-Air...”, a letra icônica do seriado Um Maluco no Pedaço (1990 - 1996/ NBC) nos transporta para uma outra época, na qual nós telespectadores tínhamos uma relação de cumplicidade com o protagonista Will, interpretado por Will Smith, que contava as suas experiências na mansão em que morava com seus parentes, como se estivesse conversando com um amigo. O rompimento da quarta parede é usado em alguns momentos específicos para focar nas reações de Will e gerar uma situação cômica.

Outras produções que marcaram décadas usando o recurso foram The Office (2005 - 2013, NBC) e Mr. Robot (2015 - 2019, USA Network). A primeira constrói grande parte da sua narrativa usando o rompimento da quarta parede, por ser um mocumentário que acompanha o dia a dia dos funcionários da Dunder Mifflin, olhar para câmera se tornou um meio dos personagens demonstrarem desconforto com determinada situação. Dessa forma, em The Office todos os personagens trocam olhares com a câmera ou até mesmo falam com ela, isso acontece nas cenas das entrevistas com cada personagem para discutir os temas abordados no episódio. Já em Mr. Robot a quebra da quarta parede está relacionada com o plot twist da série. No começo da história o telespectador tem acesso a visão do protagonista e ao que este relata para seu público, no entanto, em um determinado momento descobrimos que todo enredo compartilhado até então era uma ilusão criada pelo Elliot (Rami Malek), como a relação do personagem com o telespectador sempre foi de confissão, ambos descobrem a verdade juntos.

Nos últimos anos, a quebra da quarta parede foi usada em diversas produções com protagonismo feminino. Neste texto vamos analisar a produção de sentido proposta pelo uso dessa técnica em duas séries que se enquadram em diferentes gêneros, com certeza você já assistiu ou ouviu falar de alguma!

“He's a bit annoying , actually”, Fleabag


Estava aqui pensando em como descreveria Fleabag para você, leitor que não assistiu a série, acho que as palavras original, carismática e sincera seriam bons adjetivos. O primeiro episódio foi ao ar no dia 21 de julho de 2016 e o último em 8 de abril de 2019, deixando alguns fãs satisfeitos com o momento em que o fim chegou, enquanto outros não se conformaram tão facilmente com o final do seriado. A história se desenvolve nos dilemas da protagonista que recebe o mesmo nome que a série Fleabag - cujo significado remete a algo negativo, em tradução livre “saco de pulgas”, que pode ser entendido por uma pessoa desagradavel - , lidar com o luto, solidão, expectativas do futuro, noção de sucesso e relacionamentos amorosos são algumas das temáticas trabalhadas na obra.

A narrativa nos transporta para dentro da mente de uma mulher inteligente, sexual, inquieta, engraçada, entre várias outras definições, que enfrenta diferentes obstáculos nos seus relacionamentos familiares, amorosos e nas amizades, desmistificando o papel da mulher na ficção seriada. Com autoria e atuação de Phoebe Waller Bridge, a série produzida para a BBC ganhou 6 Emmys - incluindo o de melhor série de comédia, melhor atriz e melhor roteiro de comédia - , no Brasil a trama pode ser assistida pelo streaming Amazon Prime Video.


A quebra da quarta parede é o grande destaque da série, pois ela promove o ritmo da história. Usada constantemente para transmitir os pensamentos e impressões da protagonista sobre os personagens e as situações, e também ajudando o telespectador a completar lacunas que ficam propositalmente soltas durante os episódios, como comentários nas cenas de flashbacks do que aconteceu com sua melhor amiga e sócia na cafeteria. O olhar de Fleabag para a câmera se tornou algo marcante, por meio dele a personagem transmite um sentimento ao mesmo tempo em que apenas com um olhar ela se comunica com o público e incentiva camadas interpretativas.

A produção de sentidos varia entre o humor irônico e o drama, muito drama. As rápidas interações ocorrem de forma natural como, por exemplo, em uma conversa com a sua irmã a protagonista antecipa o que Claire irá dizer e, logo após confirma que estava certa. A produção se sustenta com muito diálogos e todos rápidos, precisos, intensos e cômicos. A personagem relata seu dia a dia se tornando cúmplice do telespectador que a esta altura já se identificou diversas vezes com ela e com as situações.

Novamente inovando, a 2° temporada de Fleabag adiciona uma nova camada ao rompimento da quarta parede, o personagem conhecido como “o padre” percebe que a protagonista está conversando com a câmera e tenta entrar no universo de intimidade dela com o telespectador, buscando entender o motivo dessa ação.

Fleabag conecta o personagem ao telespectador, como se fossem duas pessoas reais conversando. Promovendo diálogos que geram discussões e reflexões sobre questões de valores e ideologias importantes na sociedade, como o feminismo, religião e como lidar com o luto. O seriado cumpre uma função relevante na dramaturgia.

“Making a playlist is a delicate art. You get to use someone else's poetry to express how you feel”, High Fidelity


A primeira cena de High Fidelity já nos mostra duas coisas que podemos esperar da série, o diálogo da protagonista diretamente com o público e a partir deste primeiro contato descobrimos também a temática a ser explorada: a lista com os términos mais memoráveis - em ordem cronológica - de Rob (Zoë Kravitz). Com uma trilha sonora impecável, a série, baseada no livro homônimo de Nick Hornby, conta a história de Rob, dona de uma loja de discos de vinil no Brooklyn e apaixonada pelo universo musical. Ao longo dos 10 episódios conhecemos mais sobre o seu cotidiano, o qual ela mesma vai contando enquanto a acompanhamos no trabalho, saindo com os amigos e, claro, indo a encontros amorosos.

A comédia romântica estreou em 2020, na plataforma Hulu nos Estados Unidos com distribuição no Brasil pelo serviço de streaming StarzPlay. Acompanhamos o amadurecimento dessa personagem feminina complexa, compartilhando de suas confusões, inseguranças, momentos de fragilidades, da forma mais sincera possível, ao mesmo tempo em que a vemos feliz com a sua carreira, com um bom gosto artístico, entre outras conquistas. A dramédia se sustenta com o apoio dos amigos de Rob, Cherise (Da'Vine Joy Randolph) e Simon (David H. Holmes), que divertem o público.


O rompimento da quarta parede ocorre desde o primeiro frame, com o seu 5° término, até o último, finalizando a temporada com Rob expressando seu sentimento a respeito do fim de seu 6° relacionamento. A narrativa usa o recurso para criar uma identificação do público com a personagem, o telespectador entra na mente da protagonista e compreende seus sentimentos e os motivos que a levaram a agir de uma determinada maneira.

Dessa forma, mergulhamos no top 5 das suas decepções amorosas, descobrindo como ela conheceu as pessoas, entendendo o tipo de relação que tinham até o rompimento e focando, principalmente, em como lidar com esse término. A conversa de Robyn com a câmera é o que mantém o telespectador atento e curioso para descobrir o desenrolar das histórias. Já deu para perceber que é uma trama sobre relacionamentos, né? A música e seu relacionamento com ela, eu diria, é como se fosse um personagem. Presente em todos os momentos, tristes, alegres, reflexivos, literalmente todos. Ouvir música, pensar nas letras e criar playlists são uma forma que a personagem encontra de conseguir expressar seus sentimentos.

Bom, leitor, o texto vai chegando ao fim. Espero que você tenha se interessado por alguma das séries ou entendido um pouco sobre as funções da quebra da quarta parede, ou, ainda melhor, ambas as alternativas. Eu vou ficando por aqui e aguardo ansiosamente as próximas produções que seguirão com este formato e adicionarão novas camadas a esta técnica.

¹ House of Cards é uma série estadunidense baseada no livro homônimo do escritor e político britânico Michael Dobbs. Frank Underwood é um político que deseja se tornar o Presidente dos Estados Unidos e para isso não mede esforços, passando por cima diversas vezes da ética.

Referências:

JOHNSON, S. Tudo que é ruim é bom para você: como os games e a TV nos tornam mais inteligentes. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

PICCININ, F; STEINDORFF, G. O narratário como confidente: metaficção e a quebra da quarta parede em House of Cards. Linguagens, v. 11, n. 1, p. 148-160, 2017. Disponível em: <https://www.researchgate.net/publication/317994737>.

MITTELL, J. Narrative Complexity in Contemporary American Television. The Velvet Light Trap, n. 58, p. 29-40, 2006. Disponível em: <https://muse.jhu.edu/article/204769>

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