Law & Order SVU e a representação de problemas raciais e sociais contemporâneos


Que os mais diversos produtos audiovisuais são utilizados para retratar problemas sociais, isso não é nenhuma novidade. Do antigo teatro, perpassando pelo rádio, televisão, cinema e serviço de streaming, sempre seremos confrontados por uma história que traz certa similaridade com a realidade e que nos leva a refletir sobre o mundo. As perguntas que ficam são: até onde essa história e a discussão que ela suscita podem trazer mudanças sociais ou de pensamento em seus telespectadores? Será que problemas sociais relevantes sendo abordados por um produto audiovisual despertam o intelecto daqueles que o assistem? Os fazem raciocinar acerca da realidade que estão inseridos? E mais do que isso, fazem o ser humano desejar mudança?

Quando falamos em séries policiais, em especial Law & Order: SVU, que aqui será abordada mais pela sua longevidade do que por minha preferência, problemas sociais tais como o racismo, violência policial, imigração, grupos extremistas, preconceito religioso, machismo, homofobia, têm sido exibidos com frequência. Todos esses problemas que, em épocas não muito distantes, eram pouco discutidos nas grandes redes encontraram lugar cativo no mainstream das séries policiais.


A representação da realidade em Law & Order SVU

A série Law & Order SVU faz parte do chamado “Universo de séries Dick Wolf”, o aclamado produtor de séries estadunidense é responsável por mais de 30 séries, como Law & Order (1990 - Presente), Law & Order SVU (1999 – presente), Miami Vice (1984 - 1989), Chicago PD (2014 – presente) e Chicago Fire (2012 – presente). O produtor sempre busca em suas séries uma representação da realidade, apesar de no início de todos os episódios da franquia Law & Order um aviso piscar na tela dizendo: “The following story is fictional and does not depict an actual person or event.” (A história a seguir é ficcional e não retrata pessoas ou eventos reais.), em entrevista¹ dada ao jornalista Michael Rosen (Março & Abril, 2003), Dick Wolf admite que a “bíblia” que utilizara para os episódios era a primeira página do jornal Washington Post. Ou seja, mesmo não tendo nomes ou eventos reais na íntegra, toda a produção é baseada em eventos reais, porém, com alguns toques ficcionais.


E nesse momento você leitor que já assistiu algumas vezes Law & Order com toda certeza parou para pensar naquele crime que você já ouviu falar, leu sobre ou até viveu e acabou vendo uma representação dele na TV. Talvez um crime comum como o assassinato de alguém que anda a noite por um local deserto ou algo mais especifico como no 16º episódio da 14ª temporada intitulado Funny Valentine (2013, Universal Television) em que um Rapper famoso agride sua namorada diversas vezes e a mesma se recusa a denunciar (qualquer alusão ao caso de Rihanna e Chris Brown não é mera coincidência). De fato, nos vermos representados na televisão traz um reconhecimento por meio daquela narrativa ou personagem, o que leva o espectador a um interesse muito maior, como bem explica Bulhões (2009, p.114),
Não são poucas as narrativas midiáticas que favorecem o reconhecimento. Quando os personagens representam dramas bastante críveis, vivem conflitos e situações plausíveis, nos reconhecemos como seres ficcionais cuja estampa é de “gente como a gente”. Seus dramas e alegrias são admissíveis, pois parecem fazer parte de um padrão perfeitamente verificável na nossa vida ou naquelas pessoas que conhecemos. [...] Muitas narrativas de televisão exemplificam bem essa atitude.
Sobre as narrativas policiais Brudy (2006) destaca o amor que os estadunidenses têm pelo tribunal, as séries policiais já em 2006 dominavam o horário nobre, sendo que a “court TV” (algo similar a nossa TV justiça), é um sucesso e transmite julgamentos dia e noite, todos os dias na semana. A autora explica ainda que John Grisham, famoso romancista, escrevera quinze livros policiais que figuraram entre os Best Sellers pelo New York Times e sete ainda viraram filmes. Acontece que todo esse amor que os estadunidenses nutrem pelos tribunais, romances e séries policiais, não se refletiu em números ou nas políticas penais do país em si. Segundo a revista Superinteressante (2019) metade dos estadunidenses têm um familiar próximo que foi preso e eles são o país com a maior população carcerária do mundo, o que mostra que a criminalidade não é baixa nos EUA.

Provavelmente você está se perguntando como um seriado policial que trata de problemas penais pode fazer algum mal? Trazer uma alusão qualquer que vá contra o direito ou a justiça? Talvez não seja o seriado em si, mas como aquele que o assiste recepciona o conteúdo. Observem que quando estamos em frente à TV assistindo nossa série favorita conjecturar sobre “quem é o assassino? ” Ou “quem matou a Fulana? ” é um exercício de diversão, um entretenimento que nos deleita e, diga-se de passagem, acho muito divertido. Contudo frente a um caso concreto aquela pessoa que tem “cara de assassino”, “com certeza é culpado” ou “está gaguejando muito na frente do Juiz” não necessariamente é o culpado, o produto televisivo que você assiste pode lhe dar um falso herói ou um falso vilão, observem que toda uma geração cresceu admirando um anti-herói, o Capitão Nascimento (Tropa de Elite, 2007) que retratava a figura fictícia de um policial torturador que fazia justiça com as próprias mãos, de acordo com a lei policiais só podem atacar outras pessoas quando estiverem em risco, ou seja, em legítima defesa.


Conforme Brudy (2006, p.18) pontua, as pessoas internalizam as crenças apresentadas pelos dramas policiais que assistem na televisão. A professora da Universidade do Colorado Edie Greene (1990) no início da década de noventa estudando o efeito da mídia nos Júris, já afirmara em suas pesquisas que pessoas que tinham como sua única fonte de informação a televisão expressavam uma maior crença no uso da força policial, pena de morte e em uma prisão menos reabilitadora. Tais informações são necessárias para entendermos que se trata de uma via de duas mãos, os mesmos produtos midiáticos que podem denunciar problemas sociais e relatar injustiças, podem em seu escopo trazer uma abordagem que afirme atitudes nocivas à sociedade, é necessário a sabedoria daquele que assiste para interpretar a mensagem passada e refletir sobre a situação, a qual, estamos vivendo como seres humanos.

Law & Order: SVU em dois episódios

A partir deste contexto, iremos analisar dois episódios do já referido seriado Law & Order: SVU, com o intuito de extrair sentidos e significados que podem ser depreendidos deles, além de levar o leitor a uma reflexão acerca dos temas abordados. Ambos os episódios tratam em épocas diferentes as nuances da violência policial. O primeiro retrata um jovem negro brutalmente assassinado pela polícia em 2015 e o segundo retrata um jovem negro preso injustamente pela polícia em 2020. Lembrando que apesar de se tratarem de histórias fictícias guardam suas similaridades com casos reais.
        
                         

O primeiro deles é o 5º episódio da 17ª temporada, exibido em 14 de outubro de 2015, com o nome de Community Policing, no episódio um jovem negro que é confundido com um suspeito de estupro em um bairro periférico, corre dos policiais e tenta ingressar em casa, ao se virar é alvejado por disparos mesmo sem portar arma de fogo. Os policiais que o perseguiam alegam que atiraram em legitima defesa, mas nenhuma arma é encontrada com o jovem negro que foi atingido por 9 das mais de 30 balas disparadas. Para demonstrar ainda mais o corporativismo e a quão caótica pode ser uma investigação o detetive Carisi (Peter Scanavino) adentra sem mandado judicial na casa do jovem e só encontra uma pequena quantidade de drogas. Além de tudo o suspeito do estupro tem cabelo longo e o jovem tinha cabelo curto. Olivia Benson (Mariska Hargitay) que chefia as investigações e é uma policial exemplar acredita que os policiais envolvidos são inocentes. O promotor Rafael Barba (Raúl Esparza) pressionado por seus superiores e pelo prefeito, discorda de Olivia e denuncia os policiais, o que gera uma crise dos policiais entre eles e da polícia com a promotoria.

No referido episódio algumas cenas merecem destaque, como em frente ao tribunal o movimento “Black Lives Matter” fazendo uma manifestação, o chefe de polícia ser um homem negro, mas mesmo diante de um vídeo mostrando o suspeito sendo alvejado sem portar arma, continuar defendendo os policiais, um dos policiais continuar defendendo seus parceiros mesmo ele tendo disparado somente 3 vezes enquanto seus parceiros esvaziaram os pentes das respectivas armas. Fato importante é que mesmo com todo o ocorrido os policiais são denunciados por descuido e negligência (crimes leves), mas o Júri (população comum) opta por denunciar os policiais por um crime mais grave, homicídio culposo (sem a intenção de matar) e o policial que atirou 3 vezes por descuido irresponsável (delito da legislação americana menos grave). Ao final do episódio, quando parece que teremos uma crítica pura à atuação das forças policiais, um jovem policial de 24 anos é assassinado em uma abordagem simples de trânsito, dando a entender que o mesmo ficou com medo de exagerar devido a comoção que se instalou na cidade e acabou sendo assassinado.


O segundo episódio se trata do 1º episódio da 22ª temporada nomeado “Guardians and Gladiators”, que é de novembro de 2020, tal episódio já vem ao ar dentro de uma realidade diferente, em meio aos protestos pelo assassinato de George Floyd. Vários grupos de direitos civis estão criticando a atuação policial não só nos EUA mas em vários países do mundo, inclusive no Brasil.

Nesse episódio que o drama inicial foi retirado de uma matéria real publicada em outubro no Washington Post² (lembram da bíblia de Dick Wolf?), uma mulher branca liga para a polícia dizendo que um homem negro de nome Jayvon Brown (Blake Morris) está ameaçando ela e seu filho, sendo que Jayvon simplesmente caminha pelo parque depois que saiu do trabalho, a polícia chega rapidamente. Dentro da trama do episódio, o filho da mulher vai pegar uma bola em meio à confusão e acaba avistando um homem desmaiado. A mulher acusa Jayvon dizendo que deve ter sido ele quem atacou o homem que se encontrava desmaiado, a agora Capitã, Olivia Benson da ordem para levar o homem pois ele tem uma intimação pendente por protesto, esse vídeo da prisão de um homem negro sem mais provas acaba por viralizar na internet. No decorrer das investigações a polícia descobre que o homem caído no parque tinha sido estuprado e que na verdade Jayvon não estava lá na hora do crime. Quem acompanhava o homem que foi abusado era um homem branco que inclusive filmou a prisão de Jayvon e ainda postou na internet criticando a polícia (como eu adoro os Plot twists dessa série!).


Durante a trama Jayvon processa a polícia e a Capitã Benson tem que responder a um processo na corregedoria, inclusive é um episódio marcado por conversas fortes na corregedoria, o nome de George Floyd é mencionado mais de uma vez, uma membra negra da corregedoria diz que Olivia talvez seja racista e não saiba, pois muitos o são e que é necessária uma reflexão sobre isso, o que estarrece a Capitã Benson (uma reflexão válida a todos não só sobre o racismo, mas também sobre o sexismo, homofobia e outras formas de preconceito).

A polícia tem provas contundentes que o homem, o qual, foi visto com a vítima é realmente o culpado do estupro, mas no julgamento o Júri começa a desacreditar os policiais e a promotoria, uma vez que, eles já erraram no mesmo caso prendendo Jayvon Brown que era inocente, o júri inclusive acredita que eles só prenderam Jayvon Brown pelo fato de ele ser negro e também que a polícia está mentindo com relação ao verdadeiro culpado, sendo que o verdadeiro culpado do crime testemunha se dizendo uma vítima das mentiras policiais e se comparando a Javyon Brown. Ao fim o verdadeiro culpado é absolvido, o que mostra o descrédito da população com a polícia frente aos acontecimentos atuais.


Ao analisar os dois casos em tela que foram ao ar em Law & Order: SVU, não venho até aqui trazer uma solução mágica, ou dizer que a série em análise é boa ou ruim, tão pouco que defende o lado A ou o lado B, isso eu deixo para a sua reflexão. Podemos extrair diferentes conclusões, inclusive conflitantes e que estariam igualmente corretas. De fato, não podemos negar que o preconceito racial, o abuso policial e o corporativismo acontecem todos os dias nos mais diferentes lugares, é importante a discussão desse tema. Não podemos negar também que o abismo de descrédito em que instituições legais como a polícia mergulharam é prejudicial para a sociedade como um todo.

Em ambos os episódios vimos situações cruéis que jovens negros e suas famílias foram submetidos, vimos igualmente o sistema penal americano, que guarda suas particularidades, mas também suas similaridades com o sistema brasileiro, tratar os casos com desdém. Casos que são manchete tanto no Brasil como nos EUA todos os dias, foram retratados e reforçam que precisamos de uma mudança na maneira como pensamos. Será que basta que eles sejam mostrados na mídia? Minha resposta é NÃO! Precisamos de muito mais para que um efeito social surja por parte da população e das autoridades.

Assistir aos episódios de Law & Order: SVU que nos trazem questões tão complexas sobre problemas sociais nos quais estamos inseridos, nos revela que precisamos cada dia mais de uma educação midiática. Como pontua Santos Neto (2020), se trata de entender os produtos comunicacionais aos quais estamos submetidos, se trata de receber os produtos de maneira coerente, devemos ter consciência crítica de quais problemas eles estão abordando e como esses problemas devem ser discutidos dentro de nossas realidades, precisamos nos capacitar para um posicionamento como cidadãos dentro do audiovisual. O audiovisual, que por sua vez, a cada dia que passa deixa mais de ser um mero instrumento de entretenimento e vem se transformando em um instrumento de mudança social.

Realizar críticas rasas e vazias perante assuntos tão complexos como racismo, preconceito, violência policial... é desprezar as infinitas nuances que existem dentro de assuntos da mais alta complexidade e igualmente desprezar o tanto de vidas que são perdidas diariamente para essa realidade. É de suma importância que todos aqueles que recebem um produto comunicacional tenham a capacidade de discuti-lo socialmente, buscando um bem maior e não somente um “é bom” ou “é ruim”. Não basta assistir, não basta observar, não bastar dar uma opinião sobre o produto, é necessário refletir e agir sobre aquilo que somos provocados.

NOTAS



REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Ana. Law & Order SVU: a cor do problema. Valkirias, Online, 2021. Disponível em: https://valkirias.com.br/law-order-svu-a-cor-do-problema/ . Acesso em: 25 jun. 2021.


BATTAGLIA, Rafael. Quase metade dos americanos tem um familiar próximo que já foi preso. Superinteressante. São Paulo: Abril, mar. 2019. Disponível em: https://super.abril.com.br/sociedade/quase-metade-dos-americanos-tem-um-familiar-proximo-que-ja-foi-preso/ . Acesso em: 25 jun. 2021.


BRUDY, Kristin K. The Drama of the Courtroom: Media Effects on America Culture and Law. Dissertação (Psychology Honor Thesis). Georgetown University, Georgetown, 2006. Disponível em: https://repository.library.georgetown.edu/handle/10822/551693 Acesso em: 25 jun. 2021.


BULHÕES, Marcelo M. A ficção nas mídias: um curso sobre a narrativa nos meios audiovisuais. São Paulo: Ática, 2009.


GREENE, Edith. Media Effects on Jurors. Law and Human Behavior, v.. 14, n. 5. p. 439 – 450, out. 1990. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/226752055_Media_effects_on_jurors. Acesso em 07 Jun. 2021.


SANTOS NETO, José Leite dos. O que é educação midiática? Um campo de interação entre cinema e educação. Revista Educação, Pesquisa e Inclusão, v. 1, p. 156-168, 2020. Disponível em: http://dx.doi.org/10.18227/2675-3294repi.v1i0.6528 . Acesso em 08 Jun. 2021.


0 Comentários