As linhas tensas da construção feminina na série A amiga genial

A Nápoles dos cenários coloridos, praias brilhantes e sorvetes em casquinha ficará para trás no imaginário daqueles que se aventurarem na série “A amiga genial” (My Brilliant Friend, HBO, 2018 - atual). Ambientada na Itália pós Segunda Guerra, a história de Lila e Lenu se desenvolve em uma sociedade amargurada pela escassez e violência, onde os atos da geração passada parecem guiar o destino de todos.

A série é uma produção da HBO em parceria com a RAI e TIMvision, e tem como base a tetralogia homônima de Helena Ferrante. Até o momento, “A amiga genial” é composta por duas temporadas, de oito episódios, que acompanham dois livros iniciais da trama. A terceira temporada já está sendo gravada em Nápoles e ainda não tem data de lançamento.

A série se constrói em torno da amizade de Elena Greco, a Lenu, interpretada por Margherita Mazzucco e Rafaella Cerullo, a Lila, interpretada por Gaia Girace. Ambas nasceram em um bairro pobre de Nápoles, de famílias que também lá se formaram com perspectivas que não vão muito além dos limites daquele lugar. Mas é na quebra desses limites, tanto geográficos, quanto invisíveis, que as duas se conectam. As atitudes ousadas de Lila inspiram Lenu a transpor muros que a classe e o gênero impuseram. Busca esta que a guiará pelo resto da vida.

A partir daí se inicia a saga da amizade que acompanhará as duas até a velhice. Helena é a narradora, e nos mostra sua visão dos fatos ao longo da infância e juventude das meninas. A relação, permeada por altos e baixos é como um fio, que mesmo tensionado nunca se rompe. Na visão parcial dos fatos que Lenu nos apresenta, nunca fica claro o quão cruel ou o quão brilhante é essa amizade, o fato é que ela nos parece real e profunda, capaz de imprimir também em nós a sua marca.


Amizade narrada como ela é

A amizade na série está longe de ser uma relação banal, ela é apresentada em sua versão mais real, com infinitas nuances e explorando a profundidade das personagens que as afastam de diversos estereótipos. Como a história é ambientada nos anos 1950, o papel assumido pelas personagens vai de acordo ao usualmente retratado nas produções dessa época. Em que as mulheres eram “[...] definidas por seus relacionamentos familiares (esposa, mulher, filha), ou por profissões ou ocupações femininas, como a busca de um marido” (DOW, 2005, p. 379 (tradução nossa).

Lila e Lenu estão imersas em uma cultura onde, não somente a sociedade espera que elas se encaixem nesse padrão, como também elas acreditam ser esse o único caminho a seguir. Apesar de ambas apresentarem desde início, uma inteligência e esperteza que as tiram do lugar comum, as pressões sociais essencialmente machistas asfixiam suas possibilidades de ascensão.

Ao longo da trama, no entanto, Lenu usa de seus estudos como uma ferramenta que a afasta, em certa medida, dessa subordinação à figura masculina. Já Lila, em outro contexto, precisa zelar pelo bem estar da família desde muito cedo e sacrifica sua liberdade em razão disso. Porém, mesmo com realidades que se afastam ao longo da série da HBO, Lenu nunca consegue se livrar da sensação de ser menos do que Lila - menos bonita, menos interessante, menos inteligente. Esse sentimento de falta é o principal combustível que move Lenu a extrapolar seus limites, tentando estar sempre ao mesmo nível da melhor amiga.



A amizade entre duas mulheres é retratada em “A amiga genial” com uma profundidade que é rara no audiovisual (PRESS, 2018) O relacionamento de Lila e Lenu trilha nos limites entre a sororidade e a competitividade, a parceria não se coloca em uma visão utópica da aliança entre duas mulheres, mas sim com todos os percalços e intrigas que uma amizade pode gerar.

A construção de personagens femininos complexos é um fenômeno ainda novo, a chamada “era de ouro da televisão” das últimas décadas foi moldada, em sua maioria, por protagonistas masculinos (LOTZ, 2006). Como o mafioso Tony Soprano, em uma lista que figuram ainda Walter White de “Breaking bad” e Don Draper de “Mad men”. Como Martin (2013) os define, os “homens difíceis” da ação, isto é, humanos, mas capazes de atos atrozes, que precisavam lidar com o próprio mal que colocavam no mundo.

De acordo com Lotz (2006) historicamente há uma escassez de dramas centrados na mulher. “Antes do final da década de 1990, a televisão dos Estados Unidos havia confinado principalmente representantes de mulher a comédias, (I Love Lucy, That Girl, The Mary Tyler Moore Show, Roseanne, Murphy Brown), e a personagens individuais colocadas em cenários dominados por homens (Capitã Janeway em Star Trek: Voyager, por exemplo)” (LOTZ, 2006, p. 2).²

O cenário hoje é diferente, com o público feminino sendo um alvo lucrativo para diversos canais, as narrativas focadas em mulheres têm crescido exponencialmente, o que colabora para o surgimento de personagens mais complexas.


Lila como a anti-heroína da saga?

Por mais que os fatos nos sejam apresentados sob a ótica de Lenu, na primeira cena nos deparamos com o comportamento conflituoso de Lila. Já idosa, a mulher parece apagar todo o seu vestígio no mundo, nenhuma roupa, nenhum documento, até as fotos em que aparecia foram recortadas. Lila some sem dar satisfações e deixando para trás o filho adulto, Rino. “Como sempre, Lila exagerou”, é o que diz Lenu diante desse acontecimento.

Teria sido o seu misterioso desaparecimento o ápice de uma trajetória conturbada? Ao longo da narrativa, a personagem assume certos posicionamentos que nos permite questionar o seu enquadramento na categoria dos anti-heróis, ou melhor, na categoria de anti-heroína. De acordo com Smith  (1995)  o anti-herói é um personagem com o qual o espectador possui um tipo específico de alinhamento: ao conhecer suas motivações, suas ações e comportamentos o levam a firmar o que chama de “aliança moral ambígua”. 

Quem assistiu ou leu os livros de “A amiga genial” pode afirmar que o sentimento que ronda Lila é, no mínimo, intenso. Ao sermos guiados pela narrativa de Lenu, nos aproximamos de seus pensamentos mais íntimos e podemos ver ela mesma lidando com essa “moralidade ambígua” de Lila, e certamente formando uma aliança com a mesma.



Smith (1995,1999), Vaage (2010), Vermeule (2010), Mittell (2015) e Castellano e Meimaridis (ANO?) destacam quatro características recorrentes nos anti-heróis. São elas: inteligência maquiavélica, protagonistas carismáticos, moralidade relativa e aliança ambígua. A inteligência maquiavélica é a primeira que, de cara, já podemos associar a Lila. No primário era o destaque da turma, aprendeu a ler antes de todos sem nenhuma ajuda, teve destreza para vencer competições até com alunos mais velhos. Características de uma criança prodígio, que Lila muitas vezes desprezava, como se a escola e os estudos não fossem coisas reais o suficiente para impactar seu mundo.

O conceito de inteligência maquiavélica é originalmente criado na ciência cognitiva (BRYNE; WHITEN, 1988; 1997) e aplicado aos anti-heróis por Vermeule (2010). O autor afirma que os espectadores de narrativas ficcionais se interessam por tentar ler a mente de personagens maquiavélicos, para, assim, desenvolver suas próprias habilidades sociais. Na trama, podemos ver Lenu assumindo esse comportamento em relação a Lila, tentando desvendar seu modo de pensar e agir, e imprimir tais características em si mesma.

Isso fica claro na primeira temporada, quando Lenu é assediada por garotos na escola e, em reação, age da forma como Lila teria agido. “Naquele momento me dei conta que Lila agia sobre mim como um fantasma exigente. Em sua ausência, me pus no lugar dela. Ou melhor, abri espaço para ela em mim” (S01E03 “The Metamorphoses”).

Outro traço relacionado aos anti-heróis é o carisma que, de acordo com Mittell (2015), pode vir da performance do ator ou por “deixas narrativas”. Ao falarmos de Lila, carisma não é a primeira palavra que vem à mente. Por termos contato com a perspectiva de Lenu, nos tornamos muito mais próximos desta personagem, inclusive tomando suas dores em sua relação com Lila. Porém, é pelas “deixas narrativas” que o carisma da personagem pode ser notado.


Mittel (2015) afirma que nas “deixas narrativas”, nota-se que a forma como o anti-herói é tratado por outros personagens na série e proporciona ao espectador pistas de como o protagonista deve ser encarado. Enquanto Lenu é vista pelos moradores do bairro como uma pessoa distante, “melhor” do que eles por seus estudos, Lila muitas vezes é tida como uma representante dos anseios do bairro, corajosa e leal aos que lá moram. Sua personalidade a faz ser respeitada e invejada pelos demais personagens, o que imprime ao espectador, e a Lenu, a sensação de que Lila é, de fato, uma pessoa que merece o destaque.

No entanto, os mesmos ideais que a personagem tanto preza vão sendo sufocados. Seus esforços para não cometer os erros do passado, o desprezo pelo dinheiro sujo que move a economia local, e o pequeno poder das famílias que acham que o “bairro é o mundo e o mundo é o bairro”, vão se diluindo, sendo quebrados por incidentes que parecem pôr em prova todas suas convicções.

A “moralidade relativa” da personagem fica mais clara na segunda temporada da série, em seu comportamento, principalmente perante Lenu. Nuances que já davam as caras na infância, como o episódio em que Lila joga a boneca favorita da amiga em um porão escuro, calham em atitudes concretas no qual Lila parece agir exclusivamente para prejudicar a amiga. Podemos chamar de traição, inveja ou competitividade, o certo é que em muitos pontos chegamos a duvidar da sinceridade dos sentimentos de Lila por Lenu. E, claro, sentir raiva de Lenu por ser tão passiva e benevolente diante tais incidentes. Essa passividade, durante as primeiras temporadas, dá ainda mais força a dualidade entre as amigas, reforçando a dicotomia entre o “bem” e o “mal”, assumida inclusive pelas personagens no momento em que Lila admite que Lenu é sempre boa, enquanto ela, é má.


No entanto, não é possível considerar Lila apenas a vilã da série ou a pedra no sapato na vida de Lenu. Com suas limitações, a personagem conquista a simpatia do público e o perdão contínuo da amiga. Para compreender como os personagens conquistam a “simpatia” dos espectadores Smith (1995) propôs um sistema de engajamento denominado “Estrutura da Simpatia”. Tal estrutura se divide em três níveis: reconhecimento, alinhamento e aliança.

A construção da narrativa vai nos apresentando a realidade de Lila e ,com isso chegamos a conclusão de que ela, de fato, é uma mulher genial, presa na única vida que foi capaz de ter. Sem o peso da narrativa de Lenu, podemos ver que seus sonhos e ideais asfixiados, resultaram na amargura, e a levaram a buscar incessantemente janelas de fuga para a realidade cruel na qual se encontrava. Ao vermos a personagem tomando decisões erradas e lidando com as consequências, cria-se uma atmosfera de empatia, afinal, nada mais humano que cometer erros e lidar com eles. É na construção dessa humanidade que se forma uma aliança.

Como duas faces da mesma moeda, Lila e Lenu são as melhores, e as vezes piores amigas. Ambas brilhantes, geniais a sua maneira, Lenu centrada, metódica, já Lila autodidata e anárquica. A relação intensa e verdadeira entre essas duas mulheres mostra uma outra face retratada no audiovisual que se afasta da mera competitividade ou do pacto utópico e idealizado que se pode ter em uma amizade.

A construção da anti-heroína apresenta aspectos complexos, principalmente se levarmos em conta a narrativa de Lenu em primeira pessoa. Pois, assim como Bentinho narra Capitu, na obra de Machado de Assis, Lila também se encontra encoberta por um véu de idealização da amiga. Suas atitudes, como um todo, podem sim ser julgadas como moralmente ambíguas, porém em um contexto no qual a própria moralidade é posta em cheque a todo momento. O universo criado por Ferrante nos entrega a profundidade em relações cotidianas, sem uma proposta revolucionária, da simples, ou não tão simples, amizade entre duas mulheres, a série explora os aspectos mais intensos que uma relação pode tomar.



¹Entre os anos 1950 e 1960, as personagens femininas eram “definidas por seus relacionamentos familiares (esposa, mulher, filha), por profissões ‘femininas’ e/ou preocupações ‘femininas’ (como a busca por um marido)” (Dow, 2005, p. 379, tradução nossa)

²Prior to the late 1990s, U.S. network television primarily had confined complex representations of women to situation comedies (I Love Lucy, That Girl, The Mary Tyler Moore Show, Roseanne, Murphy Brown) and to individual characters placed in male-dominated dramatic settings (Captain Janeway in Star Trek: Voyager, for example) (LOTZ, 2006, p. 2) 

Referências:

Castellano, Mayka e Meimaridis, Melina. “MULHERES DIFÍCEIS”: A anti-heroína na ficção seriada televisiva americana. Famecos, 2018. Disponível em: file:///C:/Users/User/Downloads/A%20anti-hero%C3%ADna%20na%20fic%C3%A7%C3%A3o%20seriada%20televisiva%20americana%20(2).pdf

DOW, B. J. Hegemony, feminist criticism and the Mary Tyler Moore show. Critical Studies in Media Communication, v. 7, n. 3, p. 261-274, 1990.

D. Lotz, Amanda. Redesigning Women. University of Illinois Press, EUA, 2006.

MARTIN, B. Difficult men: behind the scenes of a creative revolution: from The Sopranos and The Wire to Mad Men and Breaking Bad. Penguin, 2013.

MITTELL, J. Narrative complexity in contemporary American television. Velvet Light Trap, v. 58, p. 29-40, 2006.

______, J. Television and American Culture. Oxford University Press, USA, 2009.

______, J. Lengthy Interactions with Hideous Men: Walter White and the Serial Poetics of Television Anti-Heroes. In: Storytelling in the Media Convergence Age. Palgrave Macmillan UK, 2015a, p. 74-92.

______, J. AnTENNA, UnREAL: Anti-Heroes, Genre and Legitimation. Antenna. 2015b. Disponível em: < http://migre.me/w1Ilj>. Acesso em: 30 mar. 2017.

SMITH, M. Engaging characters: Fiction, emotion, and the cinema. Oxford: Clarendon Press, 1995.


______, M. Gangsters, cannibals, aesthetes, or apparently perverse allegiances. Passionate views: Film, cognition, and emotion, 1999, p. 217-38.

VAAGE, M. B. Blinded by Familiarity: Partiality, Morality and Engagement in Television Series. In NANNICELLI, T.; TABERHAM, P. (Eds.) Cognitive Media Theory, New York, Routledge, 2014, p. 268–284.

VERMEULE, B. Why do we care about literary characters? JHU Press, 2010.



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