Uma série original Tinder? O Match das narrativas complexas e as estratégias de engajamento no ambiente transmídia


O Tinder é um aplicativo multiplataforma online de localização de pessoas e relacionamentos que surgiu em 2012 e foi conquistando cada vez mais popularidade, sendo atualmente o aplicativo de relacionamentos mais baixado. Ele se popularizou, além de sua funcionalidade de identificar o interesse mútuo entre duas pessoas, pelo seu formato e arquitetura operacional de “deslizar” as fotos dos usuários. Para a combinação dos usuários é utilizado a função de deslizar as fotos de outras pessoas integrantes da rede social, sendo esquerda para “nope” e direita para “like”. A combinação é feita quando os usuários, mutuamente, dão like um ao outro. Os interesses são comparados pelos próprios integrantes através de informações como fotos, minibiografias e mais recentemente interesses e músicas em comum.

Imagem 1: Foto oficial do evento narrativo Swipe Night.

No ano passado a empresa anunciou uma série original interativa em primeira pessoa integrada ao aplicativo na qual as escolhas durante o percurso da narrativa afetam o destino do personagem e promete influenciar no match entre os usuários. O evento, chamado Swipe Night prometia ser ao vivo e temporário, ficando disponível para acesso apenas durante três finais de semanas consecutivos nos quais os episódios eram lançados. O evento teve sua estreia nos Estados Unidos no mês de outubro de 2019, enquanto em outros países, como Brasil e Austrália, o evento foi adiado para o mês se setembro de 2020 devido a pandemia da COVID-19.

A narrativa é toda em tela vertical e possui a mesma ferramenta de deslize para a escolha dos destinos na narrativa. Na primeira cena, simulando uma TV entrando em sintonia, é anunciado através de um jornal que um grande meteoro passará próximo à Terra, com apenas 160.000 km separando a humanidade de seu fim.

Swipe Night é um evento interativo em primeira pessoa onde os membros do Tinder vão “deslizar” em momentos chaves de suas experiências para seguir em frente na história e ver o que acontecerá. Suas escolhas vão ditar mais do que apenas a narrativa: elas também vão impactar em quem vão dar match e o que eles poderão conversar sobre, após o final da jornada épica” (Tinder, online). (Tradução nossa) [1] ¹.

Imagem 2: cena em 16:9 do episódio 2 de Swipe Night

A história é acompanhada em primeira pessoa, com a chegada do personagem protagonista (que simula a imersão do integrante da rede social na narrativa) em uma festa que comemora o “fim do mundo”. Porém, o rumo da noite muda completamente quando o meteoro entra na atmosfera e o todos são atingidos pelo risco iminente. Enquanto todas as opções oferecem destinos diferentes e são permanentes, os quatro amigos (incluindo o integrante) precisam ficar juntos e decidir o que vão fazer para sobreviver ao fim do mundo.


Sistemas de narrativas interativas não são ferramentas inéditas, sendo comum em gamebooks desde o final da década de 1990, mais recentemente nos videogames e até mesmo em produções audiovisuais da Netflix, como o filme Black Mirror: Bandersnatch e o episódio especial de Unbreakable Kimmy Schmidt: Kimmy x Reverendo. Entretanto, a convergência das narrativas complexas e as estratégias de engajamento no ambiente transmídia se tornam cada vez mais evidentes ao ocuparem espaços “não convencionais” e hibridizar formatos, funcionalidades e gêneros.

As narrativas complexas partem do desenvolvimento tecnológico, social e criativo, estimulando as capacidades cognitivas do público (JOHNSON, 2012; MITTELL, 2012) . Contudo, no ambiente da convergência, os formatos de produção e de consumo se tornam cada vez mais imbricados, onde o “ver” não se reduz apenas ao consumo da TV nem mesmo de outra tela qualquer: “[…] inclui práticas como navegar na web, fazer download de capítulos de forma ilegal, consumir vídeos no YouTube ou discutir sobre o programa em uma rede social ou fórum” (SCOLARI, 2011, p. 128).

Mittel (2012) identifica quatro características que compõe a complexidade narrativa. São elas: a fruição entre a demanda seriada e a episódica, determinada pelos arcos seriados quanto pelos arcos episódios, fora as múltiplas narrativas; a intertextualidade, que são as referências externas àquele universo e na maioria das vezes não possuem setas chamativas para a compreensão desses elementos; os efeitos especiais narrativos, variam entre os temas propostos e as normas, e requerem que os espectadores aceitem as novas regras desse universo para compor suas significações e construções – isto é, as normas narrativas convencionais do meio é confrontada através de novos recursos; os roteiristas nos fazem reconsiderar o modo que as engrenagens funcionam no universo; e os recursos de storytelling, se tornam mais regras do que exceção: extrapola a forma de se narrar uma história, seja através da estética televisiva ou cinematográfica, sendo, portanto, uma expansão da linguagem do meio através das experimentações de recursos como jogos com as múltiplas perspectivas, linearidades, entre outros. Esses recursos são usados sem a preocupação de confundir temporariamente o espectador, criando a demanda de que o espectador se engaje ativamente na compreensão da narrativa (MITTEL, 2012, p. 47). 

Percebemos que a complexificação tem como consequência o aprofundamento de camadas narrativas, e que o aprofundamento tecnológico – através da expansão de novas possibilidades – e sociais – principalmente por demandas, seja na forma de se ler e interpretar o texto, ou ao subverter as formas e meios de consumo.

A proposta acerca da contextualização da complexidade narrativa (MITTEL, 2012) é voltada para o consumo e produção audiovisual seriada televisiva. Contudo, os impactos dessa onda de narrativas complexas também abrangem uma ação determinante para e com as novas formas de consumo que vão para além da TV. Isso porque os formatos, hábitos e busca social ocupam uma demanda cognitiva ainda mais complexa através da hibridização e convergências dos meios, formatos, conteúdos e gêneros.

A cultura da convergência também tem um papel fundamental ao tornar o ambiente digital e virtual um meio “[…] onde velhas e novas mídias colidem, onde a mídia corporativa e a mídia alternativa se cruzam, onde o poder produtor de mídia e o poder do consumidor interagem de maneiras imprevisíveis (JENKINS, 2009, p. 27). Ao denotar novas formas de produção, recepção e consumo dos conteúdos – na qual uma está intrinsecamente ligada às outra – percebe-se que “[…] a convergência vai muito além de um processo que une múltiplas funções dentro dos mesmos aparelhos” (CASTILHO, 2019, p. 78). Isso porque “[…] o público é incentivado a procurar novas informações e unir conteúdos midiáticos dispersos” (CASTILHO, 2019, p. 78), corroborando, portanto, o ambiente transmidiático.

O ambiente de convergência aponta, também, a emergência de formas de compartilhamento através das inteligências coletivas e da cultura participativa. Nesse sentido, reflete-se também sobre os processos interativos nos meios. Vale problematizar no entanto que para Lévy (2000, p. 71) desde que esteja morto, um receptor de informação nunca é passivo, ainda que “sentado em frente a uma televisão sem telecomando, o destinatário decodifica, interpreta, participa e mobiliza o seu sistema nervoso de cem maneiras e sempre diferentes das do seu vizinho”.

Contudo, no futuro das narrativas destaca-se três características no desenvolvimento eletrônico delas: a imersão, o sentido de agenciamento e a transformação (MURRAY, 1997 apud CASTILHO, 2019, p. 81). Dessa forma, a autora compreende o ambiente virtual como um meio de satisfazer as experiências ao simular uma realidade ficcional fantasiada por meio na imersão e da simulação. A perspectiva de Murray (1997) corrobora com a discussão sobre os meios convergentes através de conteúdos híbridos que possam fornecer experiências novas e chamativas ao consumidor. Deste modo, refletimos sobre o “[…] impacto direto das tecnologias digitais nas novas formas de materialização das narrativas […] (CASTILHO, 2019, p. 82).

Esses ambientes, demandas e propostas de transmidiação, no entanto evidencia uma intenção comercial na prática através da construção de novos produtos e formação de redes de engajamentos. Nesse sentido, as discussões se tornam ainda mais complexas, afinal, no mundo do marketing “[…] os produtos e os discursos que o sustentam devem ser renovados permanentemente” (SCOLARI, 2011, p. 128), enquanto as discussões teóricas não são capazes de acompanhar o ritmo de transformações da demanda mercadológica.

Dado o contexto teórico e cenário convergente, compreendemos as motivações do Tinder de produzir um conteúdo audiovisual para a imersão de seus integrantes. Além de proporcionar uma experiência narrativa capaz de complementar a proposta do aplicativo, o evento também forma uma rede de engajamentos e impulsionamentos que coloca a marca em evidência.

Atualmente, a maioria dos integrantes do aplicativo Tinder se configuram na faixa etária entre os 18 aos 25 anos, determinado pelo próprio site como a Geração Z. Todos os elementos narrativos presentes em Swipe Night foram pensados na forma de tornar a experiência autêntica e imersiva para o público enquanto engaja e repercute o conteúdo na própria plataforma, entre os integrantes combinados ou em ambientes externos. A direção fica por conta de Karena Evans (23 anos), diretora recorrente dos clipes de Drake; os roteiros são de Nicole Delaney (Big Mouth, Netflix) e Brandon Zuck (Five Points, Facebook Watch). Toda a bagagem dos profissionais envolvidos aponta uma produção específica para a identificação da última geração (Tinder, online).

Imagem 3: imagens de ilustração com cenas da narrativa audiovisual Swipe Night.

A série-evento do Tinder, Swipe Night, se formam nesse cenário ao hibridizar o formato narrativo seriado, trazendo elementos cinematográficos, televisuais e ainda resgatando características do videoclipe. Além do conteúdo audiovisual, a experiência é mais imersiva em sua construção e formato: tela vertical em primeira pessoa, presença de mensagens e notificações que são fundamentais a narrativa e, principalmente, a marca do Tinder já preanunciada no título: o deslize (swipe) para as decisões do destino na história. A transmidiação de ambientes (das séries, do ambiente do celular e da plataforma) constroem a complexidade narrativa que o ambiente convergente propicia à experiência.

Mittel (2012) enfatiza que as características dialogam com o ato de narrar e em como as narrativas seriadas contemporâneas reforçam a complexidade através desses recursos que envolvem diversas esferas do narrar: a temática, o conteúdo, as escolhas estéticas, etc. Na análise faremos uma ponte percebendo as funções estéticas como também um meio de suporte da complexidade do objeto.

A fruição entre a demanda seriada e episódica está presente na construção ao longo dos quatro episódios semanais. Existe a presença dos arcos que se fecham no mesmo episódio, os arcos que perduram toda a narrativa e arcos que se influenciam a partir de decisões feitas anteriormente. A existência da interatividade, que muito se aproxima a jogabilidade dos videogames implica ainda nas multilinearidades que contribuem em experiências cada vez mais “únicas” a cada integrante: cada episódio só pode ser assistido/jogado uma vez. No entanto, as opções resultam em destinos diferentes, logo, resultando em múltiplas versões.

Ainda sobre a interatividade, Murray (2003, p. 43) define como história multiforme uma história “[…] escrita ou dramatizada que apresenta uma única situação ou enredo em múltiplas versões - versões estas que seriam mutuamente excludentes em nossa experiência cotidiana.” Ao oferecer múltiplos mundos suas camadas de complexidades se tornam ainda mais profundas e complexas, no entanto, nos limitaremos, nessa análise, às possibilidades de múltiplas narrativas.

A intertextualidade está presente em duas classificações diferentes: o conteúdo e o formato. As referências no conteúdo englobam os acontecimentos na narrativa, como por exemplo, a trilha sonora e participação da cantora estadunidense, Rico Nasty – que pode ter mais protagonismo dependendo das escolhas do integrante –, além do merchandising da marca Cheetos, referências ao seriado Riverdale (CW, 2017), ao próprio Black Mirror: Bandersnatch (2018, Netflix) e a clichês recorrentes em narrativas apocalípticas. Quanto ao formato encontramos a arquitetura informacional do celular: tanto a visão em primeira pessoa, a tela vertical, as notificações de sistema e de mensagens entre os personagens e a própria ferramenta de deslizar.

A intertextualidade do formato também nos auxilia na imersão da história, uma vez que ela nos ajuda a imergir, “[...] deixamos de ter consciência do meio e não enxergamos mais a impressão ou o filme, mas apenas o poder da própria história” (MURRAY, 2003, p. 39).

Os efeitos especiais narrativos em Swipe Night deixam de ser um “capricho estético” e passa a ter a funcionalidade de imersão e criação de sentidos, ambientações e até mesmo intertextualidades na história. A sensação de “câmera na mão” nos permite viver a pele do personagem – que não possui nem nome nem gênero citado durante a história, deixando evidente que o protagonismo é o do usuário. Os estilos de movimentação, iluminação e misancene dos personagens também se aproxima do videoclipe e outras narrativas provavelmente reconhecidas pela “geração z”, como por exemplo o uso excessivo de neon que nos remete a série Euphoria (HBO, 2019), produzida por Drake. A hibridização dos formatos e o surgimento gradual de novas operações na narrativa – como por exemplo os novos sentidos que as notificações e mensagens atribuem à história –, os roteiristas nos fazem reconsiderar as normas de como o “jogo” funciona. As séries de escolhas interativas permanentes na história, baseadas na ética e moral do espectador, criam camadas interpretativas e dimensionam as proporções das consequências e também nos fazem repensar as engrenagens da narrativa, seja através de momentos de clímax ou reviravoltas.

Como recurso de storytelling, a série original Tinder apresenta tanto a interatividade quanto a hibridação de outros formatos audiovisuais. Essa característica é apontada desde os nomes presentes na produção, até outros exemplos já categorizados anteriormente, como a câmera em primeira pessoa e o uso de informações extratextuais para complementar a narrativa e experiência. Apesar do piloto apresentar o universo narrativo e seu funcionamento, ao passar das decisões feitas pelo usuário e dos episódios, Swipe Night tende a explorar e aprofundar seus recursos narrativos e visuais – seja através do movimento de câmera, resgate de flashbacks ou outras perspectivas proporcionadas ao telespectador – como o jornal do primeiro episódio. O uso desses recursos combinados a um formato e plataforma não convencional do consumo de narrativas podem implicar na desorientação temporária do espectador. Segundo Mittel (2012, p. 47) “[…] falta de indicações e sinalizações explícitas sobre a forma de contar gera momentos de desorientação, implicando que os espectadores tenham que se engajar mais ativamente na compreensão da história”.

Swipe Night não é a primeira narrativa a apontar a convergência de mídias, tão pouco a hibridização dos espaços e imersões interativas, contudo é um exemplo de como a convergência dos meios está cada vez mais evidentes, além das demandas de novos modos de consumo. 

A tendência das produções são de explorarem e transgredirem as barreiras, se não pelos produtores, pelos próprios consumidores ativos na cultura da participação: os prosumers. Compreendendo a dimensão no ver, assistir, ler, jogar, e etc, refletimos além das diversas estimulações cognitivas, nossa capacidade de desenvolver raciocínios, novas leituras e competências através da literacia midiática no ambiente digital, virtual e transmídia.

Nota de rotapé:

[1] Texto original: “Swipe Night is a first-person, interactive event where Tinder members can swipe at key points in the experience to move the story forward and see where it takes them. Their choices dictate more than just the story; they also impact who they match with and what they might chat about once the epic journey ends.” (Tinder, online).


Referências:

CASTILHO, Fernanda. Teletube: TV transmídia, ficção e fãs online. Curitiba: Appris, 2019.

JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2009.

JOHNSON, S. Tudo que é ruim é bom para você: como os games e a TV nos tornam mais inteligentes. Rio de Janeiro: Zahar, 2012

MITTELL, J. Complexidade narrativa na televisão americana contemporânea. Matrizes, v. 5, n.2, p. 29-52, 2012. Disponível em: < https://cutt.ly/kfBm32H>. Acesso em: 24 set. 2020

MITTELL, Jason. Complex TV: The poetics of contemporary television storytelling. New York: NYU Press, 2015.

MURRAY, Janet. Hamlet no Holodeck: o futuro da narrativa no ciberespaço. São Paulo: UNESP/Itaú Cultural, 2003.

SCOLARI, Carlos Alberto. A construção de mundos possíveis se tornou um processo coletivo. Matrizes, v.4, n. 2, p. 127-136, 2011.


0 Comentários