O skate, a ficção e a representação feminina: as obras de Crystal Moselle

A relação do skate com o audiovisual sempre foi de complementação. O esporte se tornou reconhecido formalmente como tal há pouco tempo, mas como contracultura desempenhou um papel essencial na criação de uma nova modalidade audiovisual. 

O skate se consolidou na década de 1970, na Califórnia, mas foi somentente durante as décadas seguintes que se popularizou mundialmente. Após anos de competições e o surgimento de marcas direcionadas para o público skatista, os praticantes do skateboard sentiram necessidade de expandir aquele universo de outras formas, o que deu início aos tão populares vídeos de skate. Em 1984 a Powell Peralta - marca co-fundada pelo skatista e cineasta Stacy Peralta - produziu o vídeo que seria o pioneiro do formato, o The Bones Brigade Video Show. Esse foi o primeiro de um modelo que seria reproduzido por décadas. 

Não havia tantas informações e possibilidades midiáticas para a veiculação de conteúdo. Também não existiam câmeras magníficas para proporcionar uma altíssima qualidade de vídeo, o que se tinha era uma grande vontade de expor uma nova cena cultural que estava se consolidando na costa californiana. (VALDUGA, 2016, p. 25)

Porém, o caminho do skate na ficção, apesar de ter se iniciado antes, foi mais lento e menos progressivo. Enquanto os vídeos de skate são feitos de e para os skatistas e admiradores, a representação no cinema envolve, geralmente, drama e comédia a fim de conquistar outros públicos.

A maior dificuldade em fazer um filme sobre skate de qualidade é o fato de manter o filme verdadeiro - que retrata o universo do skate de forma real e com skatistas de verdade - e ainda ter uma história que valha a pena ser assistida. O primeiro filme de ficção que se tornou popular foi Skateboard (1978), seguido por Trashin’ (1986) e Gleaming the Cube (1989). Esses, junto a Lords of Dogtown (2005), de Stacy Peralta, se tornaram ícones da ficção sobre skate, por serem fiéis à vida real - principalmente, por serem feitos por skatistas - e por, mesmo assim, terem uma trama interessante. 

Atualmente, o filme mais aclamado pela crítica é Mid90’s (2018), do Jonah Hill. Diferente dos outros, Mid90’s é um coming of age sobre um menino de 13 anos que começa a conhecer o universo do skate e tenta fazer novos amigos. Uma das características principais filme é a estética. Assim como os vídeos de skate dos anos 80 e 90, o filme é gravado em 4:3 e 16mm, ou seja, a tela “mais quadrada” das câmeras de vídeo antigas. 


As mulheres no skate

O que os filmes citados têm em comum? Todos retratam skatistas homens. 

A representação feminina no skate sempre foi precária. E não somente no audiovisual. Desde as competições, que prometiam prêmios inferiores às mulheres e não apresentavam mais de uma categoria, até as revistas. 

No Brasil, dentre as centenas de edições publicadas ao longo dos anos pelos diferentes títulos, em apenas poucas ocasiões as mulheres apareceram na capa sendo que, em algumas delas, o que era valorizado não era a habilidade com o skate, mas a sensualidade e os atributos físicos. Nas principais revistas em circulação no país, cada uma reserva apenas pequenos espaços ao skate feminino. Fora dos mesmos, dificilmente há fotos de mulheres em ação. (MACHADO, 2013, p. 3)

Ainda de acordo com Machado (2013), as mulheres não obtiam espaço na mídia pois nas pistas os homens ainda dominavam, ocupando os espaços centrais e mostrando a relação de poder na prática do skate. 

O skate, concomitante a outros esportes, é visto pelo senso comum como sendo perigoso, por envolver riscos físicos (como constantes lesões) e também, por exigir demasiado esforço e resistência, características que comumente não são associadas às mulheres. No contexto histórico em que está fundamentado, a masculinidade sempre foi tida como referência, com os homens representados na condição de sujeitos. Isto pode ser comprovado por meio das representações e dos discursos que foram e estão sendo construídos desigualmente. (MACHADO, 2013. p. 2 )

Foi somente em 2008, por as mulheres não se acomodarem com essa posição de inferioridade, que a X-Games começou a premiar ambos os gêneros igualmente. Com isso, posteriormente as mulheres ganharam espaço nas competições. Em 2020 aconteceria pela primeira vez a modalidade de skate - finalmente reconhecido como esporte - nas Olimpíadas, tanto para homens quanto para mulheres.


Representação no audiovisual

Mesmo após conquistarem as competições, as mulheres ainda não eram representadas na mídia, principalmente fora do público skatista. Dentro os filmes já citados, poucos possuem personagens femininas que são de fato skatistas. A representação, normalmente, fica entre documentários e, no máximo, papéis secundários. No Oscar de 2020, o documentário curta-metragem “Aprendendo a Andar de Skate em Zona de Guerra (Se Você É Uma Garota)” (2019), de Carol Dysinger, levou o prêmio da categoria. O curta é sobre o projeto Skateistan, uma organização sem fins lucrativos no Afeganistão que ensina e estimula meninas a andarem de skate, além de ler e escrever. Já no Brasil, o Canal OFF produziu algumas séries documentais com a temática meninas skatistas, como #respeitaasmina (2020) e Partiu, Skate! (2016). Ambas acompanham o dia a dia de meninas de todas as idades em capitais brasileiras, mostrando como o skate feminino está crescendo, e principalmente, apresentam a representatividade que incentiva outras meninas a começarem a andar.

“Tudo tende a crescer, né? É uma tendência até midiática. As meninas estão vendo isso na mídia e estão se sentindo representadas e ‘tão’ se animando mais pra ‘tá’ ali também, sabe?” (Vitória Bortolo, #respeitasmina, 2020)

“Dez anos atrás você só via homens em vídeos e revistas de skate, não tinha garotas. As meninas não viam isso com frequência, por isso nunca achavam que poderiam fazer também.” (Rachelle Vinberg, Betty: Meet The Betties | Part 2, 2020) 

Na ficção, a mudança tem sido gradual. Desde Rocket Power (1999) - primeira animação/ficção seriada com protagonista skatista feminina - a lista não cresceu muito, tanto no exterior quanto no Brasil. Em 2020, o primeiro longa-metragem brasileiro com protagonismo feminino em ficção sobre skate, Meu Nome é Bagdá, de Caru Alves, foi premiado no Festival de Berlim. Apesar do filme ser muito recente e não ter sido amplamente divulgado, também foi uma produção aclamada pela crítica. 


As obras de Crystal Moselle

Em 2016, a cineasta Crystal Moselle produziu o curta-metragem que seria o pontapé inicial de uma nova geração de mulheres skatistas nas telas de cinema e televisão. That One Day foi gravado em parceria com a marca Miu Miu e inspirou o longa-metragem Skate Kitchen, que foi lançado dois anos depois. Com o sucesso do filme, a HBO encomendou uma temporada de seis episódios de uma série inédita baseada nas duas obras anteriores. 

Apesar das três produções serem paralelas, todas seguem a mesma premissa: um grupo de meninas skatistas em Nova Iorque, achando seu lugar na pista e aprendendo a conviver entre si. Também contam com o mesmo elenco, skatistas de verdade que foram encontradas por acaso por Moselle, em um metrô também em Nova Iorque.

Além do skate, a série da HBO se tornou muito importante para o público jovem feminino em diversos aspectos. De acordo com Castellano e Meimaridis (2017), a representação feminina na ficção seriada quando foge do padrão de feminilidade é associada a características masculinas. 

Aparentemente, a “complexidade” das protagonistas femininas se dá pela adoção de símbolos e sentidos tradicionalmente associados ao universo masculino. Embora reconheçamos que tais elementos são socialmente construídos (e, portanto, mutáveis) é no mínimo problemático estabelecer que, para parecerem fortes, profundas e multifacetadas, as mulheres precisem exibir comportamentos decodificados pelo público como masculinos. (CASTELLANO; MEIMARIDIS, 2017, p. 12)

Em Betty (2020), as protagonistas não só quebram os estereótipos resignados ao gênero feminino como reforçam constantemente uma ruptura atual da relação de poder com o masculino. Deve-se lembrar que a série retrata um grupo de amigas que estão passando pela adolescência, logo, os clichês e os desentendimentos partem de uma lógica alheia ao gênero. Ainda assim, a série se mantém fiel a questões sociais além do machismo, como racismo, masculinidade tóxica e sexualidade. 


A forma como o skate é retratado na série e no filme, além de ser fiel e manter uma narrativa que desperta interesse no público alvo, aborda a relação das mulheres com o skate que vai além da afirmação de desigualdade de gênero. Moselle insere essa questão com naturalidade, trazendo o foco à paixão das protagonistas pelo skate e à união que as meninas tentam criar entre todas as skatistas.

As produções se mantém real, desde o figurino até a personalidade e as situações vivenciadas pelas personagens. Dessa forma, a série e o filme se tornam um espelho da realidade daquele grupo de pessoas, transmitindo uma ideia de possibilidade para espectadoras que ainda não haviam visto um retrato justo da mulher no skate na ficção. 

O Skate Kitchen - o grupo formado pelas meninas do filme - se tornou uma página do Instagram que divulga diversas meninas skatistas, de todas as idades e localidades. Assim como as produções de Moselle, o perfil se tornou uma forma de disseminar o empoderamento entre jovens que possam se interessar naquele conteúdo. 

É fato que o meio do skate parece estar cada vez mais inserido no processo de convergência midiática. Novos vídeos surgem todos os dias nos mais variados aplicativos e plataformas. O público tem acesso às mais variadas informações sobre o meio em tempo integral, além de que o consumidor está se inserindo no processo de produção de conteúdo, conferindo um cenário em que o público está cada vez mais participativo, produzindo e interagindo cada vez mais com seus atletas e marcas favoritas. (VALDUGA, 2016, p. 30)


A representatividade nas obras de Crystal Moselle, portanto, vai além do universo do skate. Um elenco principal majoritariamente preto, somente com meninas adolescentes e que estimula o público feminino a acessar áreas que antes pareciam inacessíveis ou, muitas vezes, hostis. A diretora, skatista na década de 1980, mistura elementos atuais e da época em que praticava o esporte para compor uma trama que mistura drama e comédia e incentiva todo público recente e antigo no mundo das quatro rodinhas.

Referências

A Cena do Skate Feminino (Temporada 1, ep. 1). #RespeitaAsMina [Série Documental]. Direção: Roberto T. Oliveira. Produção: Camila Villas Boas. Canal OFF; Globosat, 2020. (26min.)

CASTELLANO, M.; MEIMARIDIS, M. “MULHERES DIFÍCEIS”: A anti-heroína na ficção seriada televisiva americana. Revista FAMECOS, v. 25, n. 1, p. ID27007, 2 jan. 2018.

HBO. Betty: Meet The Betties | Part 2. 2020. (1m07s). Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=ZdZ5M1nte88>. Acesso em: 20 set. 2020.

MACHADO, G. M. C. As mulheres e o “carrinho”: gênero e corporalidade entre os skatistas. In: Seminário Internacional Fazendo Gênero 10 (Anais Eletrônicos), Florianópolis, 2013. Disponível em: <http://www.fg2013.wwc2017.eventos.dype.com.br/resources/anais/20/1373171573_ARQUIVO_GiancarloM.C.Machado_Asmulhereseocarrinho_generoecorporalidadeentreasskatistas.pdf>. Acesso em: 20 set. 2020

VALDUGA, J. A. H. O processo de convergência e seu impacto nas mídias audiovisuais de skate: estudo de caso da revista Thrasher. Ijuí, 2016. Dissertação de Mestrado - Departamento de Ciências Administrativas, Contábeis, Econômicas e da Comunicação (DACEC), UNIJUÍ.

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