O cinema musical morreu? La La Land, uma homenagem aos clássicos


Os filmes musicais tiveram grande importância na história do cinema mundial. Várias das obras produzidas na era de ouro dos musicais em Hollywood (1929 a 1960) são hoje consideradas clássicos do cinema e frequentemente aparecem em listas de melhores filmes da história, além de serem inspirações para muitas obras atuais. Apesar disso, esse gênero vem sendo ignorado e até desprezado por profissionais do cinema e por pesquisadores (MAIA; RAVAZZANO. 2014). Esse tratamento dispensado ao cinema musical parece estar atrelado ao espírito escapista dessas obras. A extravagância, o entretenimento, a fuga à realidade e o forte caráter comercial de muitos musicais os colocaram na linha de fogo das críticas feitas pelos amantes do cinema de autor e do “cinema de arte”. Como disse Godard, “o musical é um gênero morto”. Diante dessa afirmação, que coincide com um declínio do sucesso dos musicais em Hollywood (1961), poderíamos nos perguntar: será que o gênero musical de fato morreu? Teria o público se saturado do formato clássico dos musicais, que fez tanto sucesso outrora? O musical deixou de funcionar nos tempos atuais?

Aparato histórico


Ao contrário do que muitos pensam, o som no cinema não foi apenas uma adição oportunista a um monte de imagens em movimento. A união do cinema com o som foi pensada desde seu primórdio. Como relembram Guilherme Maia e Lucas Ravazzano (2014), existem registros de aparelhos de captação de som testados por Thomas Edison já em 1895 (considerado como o ano da invenção do cinema). No entanto, foi apenas em 1927, com o lançamento de The Jazz Singer (1927), considerado o primeiro longa-metragem falado da história e também o primeiro musical, que o som se estabeleceu de fato. 

O grande sucesso comercial de The Jazz Singer colocou a companhia Warner Bros. no posto de líder do mercado por algum tempo e marcou o declínio do cinema silencioso. A partir daí, os musicais foram fundamentais para o desenvolvimento de hollywood e das major companies. Foi nesse gênero que muitas outras empresas encontraram uma grande fonte de lucro e de crescimento, se tornando o gênero mais popular e rentável do período clássico hollywoodiano (entre os anos de 1929 e 1960). 

A partir da década de 1960, os musicais entraram em grande declínio de vendas e lançamentos, sendo considerado por diversos cineastas como um gênero morto. No entanto, somente no século XXI, entre 200 e 2014, foram produzidas 351 musicais nos Estados Unidos - dos mais diversos subgêneros (MAIA; RAVAZZANO, 2014). O musical se tornou um produto de nicho específico, na contra-mão da popularidade e aceitação que o gênero possuía na era clássica hollywoodiana.

No tempo atual, os filmes musicais são muitas vezes desprezados ao se falar da história e da estrutura do cinema, graças à influência de muitos cineastas não tão adeptos ao gênero, como Godard e Truffaut. Uma grande parte dos cursos de cinema sequer citam a existência e importância do gênero musical na história. Muito se é falado das formas de montagem de Eisenstein e dos filmes de Polanski, mas pouco se fala que os filmes mais populares do cinema russo, entre 1930 e 1940, também foram os musicais de Grigori Aleksandrov.

Estrutura de um musical clássico


O musical clássico de Hollywood, assim como outros filmes comerciais, possui estratégias dramatúrgicas que o ajudaram a prosperar: linguagens, estruturas e padrões que se repetem nos mais diversos filmes. No entanto, esses padrões são diferentes dos filmes não-musicais e a principal diferença está na narrativa de duplo foco (ALTMAN, 1987) em que os filmes musicais se baseiam. De acordo com Altman (1987) uma narrativa de duplo foco é aquela baseada em alternâncias e contraposições mais do que em causalidades. Ou seja, para esses tipos de filme, expor o contraste entre um personagem e outro, por exemplo, é mais interessante do que um encadeamento de ações com relação de causalidade.

Por isso, na dramaturgia musical clássica de Hollywood, as tramas são centradas em um casal de protagonistas que possuem diferenças relacionadas ao universo “padrão” de cada sexo. Isso não significa que os personagens precisam se envolver amorosamente. Como reforçam Maia e Ravazzano (2014, p. 4) , “o foco e o conflito da trama [...] não seria o casal se apaixonar, nem casar, mas a resolução de suas diferenças.” Em outras palavras, a narrativa de duplo foco, pode ser percebida na oposição da postura e do sexo dos personagens. Por isso, o musical necessitava de dois protagonistas, um homem e uma mulher.

[...] Do mesmo modo, quando esses filmes são estrelados por uma dupla de adultos e que resultam em um envolvimento romântico, este depende do entendimento e resolução das diferenças entre o casal, como vemos em The sound of music (A Noviça Rebelde. Robert Wise, 1965). No filme, a personalidade espontânea da noviça, interpretada por Julie Andrews, tem de conviver com o rígido patriarca dos Von Trapp, vivido por Christopher Plummer. Ao final, ela aprende a importância da disciplina e ele a ser mais descontraído. (MAIA; RAVAZZANO, 2014, p. 6)

La La Land, uma homenagem aos clássicos

As tramas centradas em casais estão presente em grande musicais de sucesso no século XXI. Alguns deles são: La La Land (2016), que acompanha a personagem atriz Mia e o músico Sebastian, A Star is Born (2018), que narra a história dos cantores Ally e Jackson, e também em The Greatest Showman (2017) e na franquia High School Musical (2006-2008). É difícil conhecer um musical em que não há um casal cisgênero e heterossexual cantando um saboroso dueto em algum momento da trama, certo?

Portanto, no longa La La Land, que é uma homenagem aos musicais clássicos, os elementos essenciais descritos por Altman (1987) estão presentes no filme e, em alguns momentos, são subvertidos de forma proposital com o intuito de quebrar a expectativa do público acostumado com as narrativas passadas.

As diferenças entre os protagonistas, Mia, interpretada por Emma Stone, e Sebastian, interpretado por Ryan Gosling, se encontra no caminho em que eles seguem profissionalmente. Ambos vivem um conflito hollywoodiano bastante comum dos clássicos, o conflito do artista (artist’s struggle). E esse conflito individual interfere na vida e em todo o destino do casal. No entanto, ao contrário do que aconteceria em alguns clássicos, as diferenças entre eles se tornam cada vez mais evidentes e, propositalmente, seus conflitos não são solucionados como os dos casais de The sound of music ou Singing in the rain. No final de La la land, o casal se separa, quebrando a expectativa em relação aos clássicos.

Além disso, a característica da narrativa de duplo foco pode ser percebida em falas, letras de músicas e planos de câmera do filme. Os primeiros 15 minutos introduzem a personagem Mia e somente depois somos introduzidos a vida de Sebastian, contrastando o universo do casal. A oposição dos dois no início do filme, por exemplo, pode ser notada no interesse de Mia, que está apaixonada, e no desânimo de Sebastian, que vem a ser explicado no primeiro dueto dos dois, “A Lovely Night”. Nessa canção, Sebastian canta sobre sua crença de como ele não teria chance com Mia e que os dois não poderiam dar certo juntos. (But there's only you and I / And we've got no shot/ This could never be / You're not the type for me). Enquanto, em suas linhas, Mia canta sobre como está ansiosa para que os dois deem certos juntos e que tomaria as iniciativas necessárias. (You say there's nothing here?/ Well, let's make something clear / I think I'll be the one to make that call). 

Em resumo, ao mesmo tempo que La La Land utiliza a estrutura dos musicais clássicos para realizar uma homenagem, o filme também é usado como forma de provocação e subversão de uma suposta “fórmula exata dos musicais”.

O musical está morto?: A performance de La La Land 


Ainda no século XXI, mesmo após o “declínio dos musicais”, o nicho consumidor não se mostra totalmente abatido. Na contemporaneidade, existem filmes desse gênero que se tornaram grandes sucessos de bilheteria e de críticas especializadas.

Podemos medir o sucesso de La La Land, por exemplo, observando alguns fatores: o musical marcou uma forte presença nas premiações de cinema, como Oscar, Globo de Ouro, BAFTA, SAG, DGA, entre outros; os 30 milhões de dólares gastos renderam uma bilheteria de quase 450 milhões de dólares; e as notas dadas pelo público em plataforma como IMDb e Rotten Tomatoes estão acima da média. 

Além de La La Land, outras obras do gênero também vêm fazendo sucesso. As músicas do filme The Greatest Showman (2017) foram parar no YouTube, na forma de empolgantes “lyric videos”, com cenas do filme, acumulando centenas de milhões de visualizações. O álbum musical de A Star is Born (2018), além de virar videoclipes na plataforma, figurou em primeiro lugar na Billboard 200 e já ultrapassou as 100 semanas que está na lista. E se voltarmos ao início do milênio, tivemos fenômenos de bilheteria, como Mamma Mia (2006), que arrecadou mais de 600 milhões de dólares, e Chicago (2002), que além dos 300 milhões de bilheteria recebeu 13 indicações ao Oscar, ganhando 6 delas (incluindo a de melhor filme).

Com esses dados, é possível perceber que, se o gênero musical não cresceu, ao menos continua bastante vivo. De acordo com Diana Sandars (2006), a prosperidade do musical de Hollywood após os anos 1980, se deve à capacidade que o gênero teve de evoluir e se adaptar, sem perder a essência e alguns de seus elementos clássicos. É notório que o sucesso dos videoclipes enquanto produtos desenhados para vender as músicas, bem como o crescimento da emissora de televisão MTV, foram elementos bem aproveitados pela indústria de filmes musicais de Hollywood, e contribuíram para a manutenção do seu sucesso. Não é coincidência que a maioria dos musicais de Hollywood da década de 1980 foi lançada em 1984, três anos após o lançamento da MTV, como conta Sandars, e muitos desses filmes foram os primeiros longas de diretores de videoclipes.

Decerto, o cinema musical vem passando por adaptações e instabilidades em relação à grande massa, mas ele vem se mostrando um gênero vivo e de enorme potencial em relação à qualidade e à aceitação do público e da crítica. No entanto, ainda é preciso que a indústria encontre e construa um terreno mais estável para os filmes musicais ao invés de simplesmente abandonar o gênero.

Referências

ALTMAN, Rick. (org.). Sound theory, sound practice. Nova Iorque: Routledge, 1992. 

ALTMAN, Rick. The American film musical. Indianapolis: Indiana University Press, 1987.

MAIA, Guilherme; RAVAZZANO, Lucas. As narrativas de duplo foco na dramaturgia do musical clássico de Hollywood. Salvador: Repertório, 2014.

SANDARS, Diana. What a feeling!: the evolution of the Hollywood musical 1983-2000. Tese de Doutorado, The University of Melbourne, 2006.


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