Considerado um dos gêneros de maior sucesso na TV estadunidense o reality show implodiu as fronteiras entre os diversos formatos, na medida em que é simultaneamente, jogo, documentário e dramaturgia (CANNITO, 2010). Esse formato, que já nasceu como gênero multiplataforma, como afirma Cannito (2010), continua se expandindo através da implementação de recursos tecnológicos e de engajamento que instituem um novo modelo de se produzir televisão. A internet foi peça fundamental para a expansão do formato e para a difusão do gênero multiplataforma, integrando as pessoas que somente assistem casualmente, com aquelas que consomem um produto assiduamente, interagindo com o mesmo de forma corriqueira e por vezes visceral.
Lançado em 26 de abril de 2011 pela rede de televisão estadunidense NBC, o The Voice foi a tentativa bem sucedida de trazer um formato lançado pela Holanda em 2010 para o mainstream. O rápido sucesso da primeira temporada, muito se deu por duas causas, a primeira, pela a inserção de um formato de talent show diferenciado, em que os candidatos deveriam fazer audições às cegas, ou blind auditions. Os jurados ficariam de costas para os candidatos, e somente ouviriam suas vozes, e essa ideia foi vendida como um chamariz que diferencia o programa dos demais talent shows, a voz é o que nos importa. O segundo ponto foi a venda da marca The Voice por grandes estrelas da música. Isso foi o suficiente para atrair uma grande parcela do público, que estava curiosa para ver a atuação de nomes como Adam Levine, Blake Shelton, Cee Lo Green e Christina Aguilera. Essas grandes personalidades da mídia já possuem fandoms ativos, o que fornece para o programa uma base do público que irá consumir o produto devido a participação de seu ídolo.
Essa pode ser encarada como uma das estratégias de engajamento do The Voice, utilizar de um grande público já existente para criar a primeira parcela ativa de telespectadores, que muito provavelmente irá torcer para o seu mentor favorito devido a sua predisposição de já gostar dele fora do programa.
O engajamento se encontra em vários âmbitos da produção do programa, como podemos observar. Como, por exemplo, aquele que é criado pela edição, e que talvez seja a mais comum em meio aos realitys. A edição do programa escolhe como vai ser mostrada uma blind audition, sendo tudo muito bem colocado na tela para o público. The Voice, durante a primeira fase de audições, funciona como uma porta para os candidatos se apresentarem unicamente para nós, já que os jurados não conhecerão previamente a história por trás daquele candidato. Sendo assim, nós criamos uma primeira identificação por aquele candidato através de sua história. Na audição da candidata de dezessete anos, Wé McDonald, da décima primeira temporada em 2016, a edição apresentou além da história mais uma das estratégias de engajamento para cativar o público a torcer por essa candidata. Em uma montagem que surpreendeu o telespectador por sua poderosa voz cantada, e surpreendeu os jurados por sua voz falada tão diferente, o programa trabalhou aqui esse elemento e destacou a candidata mediante as outras audições, que apresentaram somente o engajamento via testemunho biográfico, que ocorre ao início de cada audição. A candidata acabou ganhando apelo ao público por ter se destacado nas suas audições, e conseguiu manter o nível de entusiasmo criado em sua audição até a final do programa, em que ela acabou terminando na terceira colocação.
O momento das primeiras audições é aquele de instauração da expectativa sobre os candidatos, dos quais ainda se sabe pouco. Eles são apresentados por meio de vídeos curtos, em forma de testemunhos biográficos cobertos por cenas de seu cotidiano, que narram brevemente suas vidas e justificam sua presença no palco do programa. Esse é o momento encenado de um talento apenas suposto que, por sua vez, ganha proeminência e permite ao público processo de identificação com a imagem dos futuros artistas. Trata-se de uma cadeia de pessoas que supostamente se apresentam como elas mesmas e reiteram elementos agregados ao reality, compondo uma miríade que responde não apenas ao individual, mas também ao coletivo, aos gêneros musicais, às distinções de profissões, etnias, gerações, entre outras. A presença variada dos candidatos também surge como efeito de hibridismos visíveis (SOARES; LIMBERTO, 2017, p. 15-16)
Por toda o engajamento e identificação para com o público, os realitys acabam por promover um dos conceitos do meio de convergência que mais traduzem a resposta do público para o produto, a cultura participativa. A cultura participativa é o rompimento das barreiras entre produtores e consumidores, que permite que o público participe ativamente na criação e ressignificação dos produtos. Ela liga-se com o avanço da tecnologia nos meios de comunicação no cenário da cultura de convergência, que reconfiguraram as formas de se produzir conteúdo, dando a possibilidade para os consumidores terem a experimentação e a possibilidade opinativa de criar e ressignificar um produto consumido. “[…] todos são participantes – embora os participantes possam ter diferentes graus de status e influência” (JENKINS, 2008, p. 189).
Uma das atividades mais proeminentes é a formação de fandoms e fã clubes para os mais variados produtos. Nos realitys, com o passar das rodadas e a aproximação dos candidatos com o público, é corriqueiro o surgimento de fã clubes para promover aquele candidato. Essa atividade é mais comum no Twitter, em que podemos encontrar uma quantidade grande de “FC’s” para os candidatos do The Voice. A presença de fã clubes brasileiros também é interessante de se destacar, pois mostra que a internacionalização dos conteúdos está ainda mais presente e palpável para todos nós, destacando-se assim o gênero multiplataforma e a integração do público graças aos avanços tecnológicos nos meios de comunicação.
Durante as fases ao vivo, os fan clubes tornam-se mais ativos, pois o programa solicita ativamente a participação do público nas votações de eliminação. Sendo assim, os fandoms se organizam para fazer com que o seu candidato, ou em alguns casos, o seu coach avance na competição. Um dos casos mais emblemáticos foi o da candidata Alisan Porter e sua mentora Christina Aguilera, que participaram da décima temporada do programa em 2016. A comoção para fazer de Christina Aguilera a primeira jurada mulher a ganhar o programa foi grande, e junto a isso, Alisan Porter entrou para o time da artista, criando para alguns a dupla perfeita entre candidato e jurado. Durante as fases ao vivo, os fandoms da cantora Christina Aguilera começaram a se unir para fazer com que Alisan se salva-se semana após semana, até que a candidata conseguiu chegar a final do programa. Na final, o grupo brasileiro Christina Aguilera, do Facebook, realizou um grande mutirão para acumular votos para Alisan vencer. O mutirão conseguiu reunir uma grande quantidade de votos brasileiros, ultrapassando a casa dos 100 mil votos, e o post do mutirão do grupo passou dos mil comentários. Ao final de tudo, Alisan Porter acabou vencendo a décima temporada e Christina Aguilera se tornou a primeira jurada mulher a vencer o programa.
Por fim, o programa adaptou seu formato a cultura digital ao inserir uma forma de votação para salvar os candidatos que ficaram por último na votação da semana durante as rodadas ao vivo. Essa votação se chama Instant Save, e é utilizada através de hashtags no Twitter, em que o candidato que obtiver o maior número de hashtags ,como por exemplo #VoiceSaveNoah é salvo. O período de votação dura cinco minutos, e a movimentação no Twitter durante esse período de votação é intensa. Nesses momentos há a convergência entre os fandoms e os votantes casuais, em que ambos se unem para salvar o seu candidato preferido. Constantemente o público se revolta com o resultado, e acusa o programa de manipulação. Eles usam como prova dessa manipulação a quantidade de retweets na hashtag oficial publicada pelo perfil do programa, bem como a presença da hashtag de um candidato nos trendings e do outro candidato, que acabou sendo salvo, não constando nos trendings.
O The Voice se consolidou como um reality multiplataforma, e hoje é atualmente o programa de maior sucesso e audiência entre os talent shows. A inovação e a capacidade do programa em se adaptar a cultura de convergência, as novas mídias e demandas fazem deste produto um dos maiores exemplos de como a atenção ao público é importante para o crescimento e sustentação de uma marca no mercado televisivo.
Referências
CANNITO, N. A Televisão na Era Digital. São Paulo: Summus, 2010.
JENKINS, H. Cultura da Convergência. São Paulo: Aleph, 2008.
SOARES, R. L; LIMBERTO, A. Hibridismo como forma televisiva impura: vozes dissonantes em The Voice Brasil. Novos Olhares, v. 6, n. 2, p. 7-21, 2017. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/novosolhares/article/view/140389. Acesso em: 8 set. 2020.
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