Little Fires Everywhere e The Morning Show: a importância da representação feminina na ficção seriada

Por muitos anos as personagens femininas foram construídas de forma linear e marcadas por estereótipos. No entanto, devido às mudanças sociais, políticas e culturais diversas séries ampliaram a representação feminina abordando temáticas como questões no âmbito profissional (Grey's Anatomy), debates sobre as diversas formas de sexualidade (The L Word), novos modelos de família (Modern Family) e tramas evidenciando a amizade feminina (Dead to Me). Dessa forma, as narrativas com protagonistas femininas complexas estão cada vez mais ganhando destaque na televisão estadunidense.

Nesse sentido, Little Fires Everywhere (Hulu, 2020) e The Morning Show (AppleTV+, 2019-atual) são séries atuais que possuem universos ficcionais femininos complexos e abordam discussões importantes em relação à figura da mulher.

Little Fires Everywhere e a relação com a maternidade


A série começa com uma casa em chamas acompanhada do mistério: quem provocou o incêndio? No entanto, esse não é o foco da história, o principal arco narrativo está na relação entre as famílias de Mia Warren (Kerry Washington), uma artista e mãe solo de uma adolescente, e Elena Richardson (Reese Witherspoon), uma jornalista, casada e mãe de quatro filhos. A história se passa em 1997 na pequena cidade de Shaker Heights, Ohio, onde tudo é fiscalizado para ficar em perfeito estado, até o tamanho da grama. 

No decorrer da trama acompanhamos diferentes abordagens sobre os dilemas da vida dessas personagens complexas, principalmente, em relação a maternidade. A série apresenta ressentimentos entre mãe e filha, frustrações, dificuldades em conciliar a carreira com a maternidade e desmistifica o conceito de ser uma “boa mãe”, imposto muitas vezes pela sociedade. Por meio de flashbacks conhecemos o passado de Elena e Mia e entendemos os motivos das suas decisões na criação dos filhos. As protagonistas com personalidades opostas possuem um mesmo objetivo: educar da melhor maneira seus filhos, mesmo que isso inclua esconder alguns segredos, o que provoca uma disputa entre elas. 


Entretanto, as personagens possuem realidades diferentes e isso reflete na criação dos seus filhos. Elena é uma mulher branca e rica que leva uma vida cercada de privilégios, porém não os reconhece, ela educa os adolescentes de forma rígida com várias regras, impondo padrões e exigindo uma perfeição ilusória. Já Mia é uma mulher negra e pobre, que cria sua filha com mais liberdade, mas enfrenta dificuldades para se estabilizar em um só lugar, o que provoca alguns conflitos na relação entre a mãe e a filha. Além disso, a série utiliza a interação entre as duas famílias completamente diferentes para explorar temas como racismo, privilégios, diferença de classe, feminismo e sexualidade. 

A trama também mostra o ponto de vista dos filhos em relação a postura das mães. Pearl (Lexi Underwood), filha de Mia, se sente insatisfeita com a vida simples que levava com a mãe, elas mudavam constantemente de cidade e a adolescente não concordava mais com isso. Já Izzy (Megan Stott), filha de Elena, possui uma relação complicada com sua mãe por terem pensamentos totalmente diferentes.


Além das personagens principais serem mulheres, a equipe por trás das câmeras é predominantemente feminina. As protagonistas Reese e Kerry também são produtoras da trama, que contou com a direção de Lynn Shelton e com a showrunner Liz Tigelaar. Little Fires Everywhere conquista o público através do aprofundamento dos personagens, causando uma maior identificação e provocando reflexões.

A disputa de poder em The Morning Show


Em um primeiro momento The Morning Show aparenta ser apenas uma trama ambientada na redação do programa de notícias mais assistido dos EUA apresentado por Alex Levy (Jennifer Aniston) e Mitch Kessler (Steve Carell). No entanto, a série não se aprofunda nas questões associadas ao jornalismo, o enredo foca nos bastidores do show a partir do momento em que Mitch Kessler é demitido por uma denúncia de assédio sexual e se inicia uma investigação a respeito da cultura do silêncio presente na emissora. 

Ao longo da história Alex fica com medo de perder seu emprego já que o motivo do sucesso do programa era a parceria da dupla, além de se sentir ameaçada com a chegada da nova âncora, a jovem jornalista Bradley Jackson, interpretada por Reese Witherspoon, que questiona o ambiente competitivo nos bastidores e investiga o envolvimento dos colegas de trabalho em relação a má conduta sexual de Mitch e, principalmente, os chefes executivos do canal. Nesse sentido, a narrativa utiliza do movimento #metoo para discutir sobre a estrutura corporativa dentro do jornalismo e no entretenimento, envolvendo temas como a disputa de poder no trabalho movida por um ambiente machista.

A premiada série foi a primeira produção do serviço de streaming Apple TV+, e contou com as protagonistas e produtoras Jennifer Aniston e Reese Witherspoon, que retrataram inúmeras questões do cotidiano de duas mulheres independentes, mas com personalidades opostas, enquanto uma busca manter seu emprego consolidado, a outra luta com sua carreira instável. A relação das jornalistas é conflituosa pelo fato de Alex ver Bradley como concorrente, a qual a acusa de saber o que estava acontecendo e não expor nada, mas em alguns momentos elas se apoiam.


Além disso, a trama também explora a vida pessoal das protagonistas, no caso de Alex Levy seu casamento chega ao fim, com isso, ela desenvolve uma relação complicada com sua filha, que a acusa de colocar o trabalho em prioridade e ser a culpada pelo fim do casamento. Já Bradley Jackson se sente insegura por agir com impulsividade e lida com os problemas de sua família desestruturada. Dessa maneira, é visível que as protagonistas de The Morning Show são complexas, as personagens são fortes, mas sem deixar de lado os momentos de incerteza e fragilidade, além de serem profissionais dedicadas e ao mesmo tempo se preocuparem com a família.


A evolução da representação feminina na ficção seriada

Apesar dessas narrativas fazerem sucesso com o público, nem sempre as mulheres tiveram espaço para atuar e criar relações aprofundadas, pelo contrário a representação feminina foi limitada em diversas fases. Entre os anos 1950 e 1960, o papel da mulher nas tramas era definido pelos seus relacionamentos familiares, em sua grande maioria era reconhecida como esposa, mãe ou filha. (LOTZ, 2006) Além disso, as características tradicionalmente denominadas como femininas, ou seja, frágil, sentimental e intuitiva definia a personagem que geralmente era retratada na série pela sua busca por um “homem ideal”. As suas funções na narrativa reforçam a submissão feminina e o fato de poucas séries serem protagonizadas por mulheres era outra problemática dessa época. Isso se deve, em grande medida, ao fato de os executivos dos canais — grupo formado, até hoje, predominantemente por homens brancos — acreditarem que programas estrelados por mulheres não atrairiam o público masculino, que, embora não fosse tão significativo quanto o feminino, era muito desejado (LOTZ, 2006).

“Embora as mulheres sempre tenham sido o foco das emissoras, graças a seu papel na economia doméstica, a ideia de veicular novas representações femininas na produção televisiva respondeu mais a anseios financeiros por parte das empresas do que a uma vontade mais “genuína” de contemplar formas mais plurais de dramatização do universo feminino (RABINOVITZ, 1989; ATKIN, 1991 apud CASTELLANO; MEIMARIDIS, 2017).”

Na década de 70, novas representações femininas surgiram na ficção seriada televisiva, dentre elas a série The Mary Tyler Moore Show (CBS, 1970-1977) se destacou apresentando uma narrativa diferenciada por se tratar da vida de uma mulher solteira, sem filhos, preocupada com a sua carreira. Já em 1980, a série Cagney e Lacey (1981-1988, CBS), revolucionou o papel das mulheres nas séries americanas, o enredo era focado na história de duas detetives que solucionam crimes e lidam com problemas em suas vidas particulares. A trama proporcionou debates sobre sororidade, além de ter contratado dezenas de escritoras e diretoras para produzir o programa.

As séries começaram a se aproximar lentamente do formato atual em 1990 e 2000, podemos citar como exemplo Gilmore Girls (TW, 2000 – 2007), a história gira em torno de Lorelai Gilmore (Lauren Graham) e sua filha Rory Gilmore (Alexis Bledel), rompendo com o estereótipo da figura materna pelo fato de Lorelai ser independente economicamente e emocionalmente, ter sido mãe aos 16 anos, se esforçar para criar Rory e ao mesmo tempo se dedicar a sua carreira, além de ser uma personagem inteligente e com um ótimo humor.

Reiteração de estereótipos e elementos do universo masculino na construção da personagem

Ao longo das mudanças da figura feminina na televisão ocorreram em diversos momentos a repetição de antigos estereótipos, como narrativas pautadas na rivalidade feminina, descontrole emocional, exploração da beleza, culto ao corpo, coisificação da mulher e constantemente papéis dependentes da figura masculina (ROVIROSA, 2014). Além disso, a adoção de símbolos tradicionalmente ligados ao universo masculino reforça outro padrão na construção das personagens, principalmente nas anti-heroínas. Dessa maneira, é evidente que na tentativa de afastar as personagens de alguns desses estereótipos citados, muitas produções acabam promovendo um ideal de mulheres fortes, guiadas pela razão e não pela emoção, que precisam abandonar a sua feminilidade para se aproximar desse modelo.

A ocupação das mulheres nos cargos por trás das câmeras possibilitou significativas mudanças na representação feminina na televisão, devido a isso atualmente as narrativas femininas se aproximam da realidade de várias mulheres, com universos ficcionais que retratam o cotidiano de personagens profundas e multifacetadas, o que proporciona uma maior identificação e desperta o interesse do público. Dessa forma, podemos citar Fleabag (Amazon Video, 2016-2019), The Marvelous Mrs Maisel (Amazon Video, 2017-atual), Insecure (HBO, 2016-atual), Big Little Lies (HBO, 2017-atual), Queen Sugar (Oprah Winfrey Network, 2016-atual), Grace and Frankie (Netflix, 2015-atual), como exemplos de produções que aprofundam debates sobre o universo feminino e foram criadas e protagonizadas por mulheres.

Entretanto, apesar dessa onda de programas televisivos escritos, produzidos e estrelados por mulheres, a indústria continua sendo dominada por homens. Além da presença feminina nesses cargos ser escassa, as showrunners ganham menos do que os homens. 

“De acordo com um relatório do Centro de Estudos da Mulher na Televisão e no Cinema, de todas as séries veiculadas na temporada 2016/17, apenas uma em cada cinco criadoras de TV aberta era do sexo feminino. É apenas um pouco melhor nos canais de TV a cabo e de streaming supostamente mais aventureiros, nos quais 26% dos criadores são mulheres. O relatório aponta outra coisa, porém: que os shows com pelo menos uma criadora contrataram mais mulheres escritoras e escalaram mais mulheres para papéis principais. É um círculo em constante expansão, no qual as poderosas showrunners podem permitir que outras criem imagens e narrativas culturais que inspiram a próxima geração de mulheres poderosas”. (PRESS, 2018, p.11) (tradução nossa)

O papel das mulheres nas narrativas ficcionais passou por muitas transformações ao longo dos anos e está em constante mudança, por isso, é evidente a importância e a necessidade de ter mais mulheres a frente da criação e produção desses conteúdos, para assim dar voz a diversas histórias, afastando os estereótipos e, cada vez mais, se aproximando de uma representação mais realista acerca da pluralidade do universo feminino.

Referências

CASTELLANO, M; MEIMARIDIS, M. “Mulheres Difíceis”: A anti-heroína na ficção seriada televisiva americana. Famecos, v. 25, n. 1,p.1-23,2018. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/view/27007>. 

LOTZ, A. D. Redesigning Women: Television after the Network Era.Illinois : University of Illinois Press, 2006.

PRESS, Joy. Stealing the show: How women are revolutionizing television. Nova York: Atria Books, 2018. 

ROVIROSA, A. O tratamento da mulher nas séries televisivas norte-americanas. Contemporânea, v. 12, n.1, p. 234-260, 2014. Disponível em: <https://portalseer.ufba.br/index.php/contemporaneaposcom/article/view/8963

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