Justiça: uma análise das questões sociais abordadas na teledramaturgia brasileira


Exibidas pela primeira vez no Brasil durante a década 1950, as telenovelas foram criadas como formas de entreter o público ao mesmo tempo em que preenchiam lacunas na grade diária das emissoras que começavam a surgir no país. A partir da década de 1960, essas produções romperam com o “estilo sentimental” -dramas feitos para comover e “fazer chorar”- que dominava a produção anterior, propondo uma alternativa “realista” e crítica (MACHADO, 2011; LOPES e MUNGIOLI, 2013 KESKE e SCHERER, 2013,). Deste momento em diante, foi iniciada a produção de narrativas que possuem como pano de fundo histórias e personagens brasileiros, com anseios e aspirações característicos do nosso povo. 

Essa mudança de perspectiva apresentada pelas novelas da década de 60 proporcionou uma maior identificação dos telespectadores com o conteúdo assistido, o que Lopes e Mungioli (2013) apontam como fator culminante para a consolidação da telenovela como o gênero mais popular e lucrativo da televisão. Lopes (2009) também destaca a função pedagógica desse produto, que detém o poder de formar opiniões, gerar padrões de consumo e trazer à tona os mais diversos temas.

A qualidade de representar a cultura nacional e estabelecer uma maior integração social - que Lopes e Mungioli (2013) denominam como “narrativa da nação”-reforçam a relevância dos temas abordados nas telenovelas, que se tornam pautas sociais durante o período de exibição das mesmas. Nesse contexto, narrativas como a minissérie Justiça, exibida pela Rede Globo em 2016, apresentam-se de forma bastante relevante, uma vez que trazem à tona a reflexão acerca de diversos problemas-chave da sociedade brasileira contemporânea.

Justiça narra a história de quatro pessoas que supostamente cometeram algum crime, foram presas no mesmo dia e acabaram sendo libertadas da prisão simultaneamente, com diferentes perspectivas para o futuro. O fio condutor da narrativa está sempre vinculado a alguma questão social vivenciada por parcelas da população brasileira. A identificação com os diversos temas abordados pela história aliada a uma produção de qualidade fez com que Justiça se tornasse uma das atrações mais comentadas do ano, tanto pelos telespectadores quanto pela crítica. Nesse contexto, iremos refletir sobre algumas das diversas questões sociais e culturais abordadas pela minissérie.

Feminicídio

A primeira reflexão proposta por Justiça é evidenciada logo no primeiro episódio. Nele, o telespectador é apresentado a Vicente (Jesuíta Barbosa), um jovem de classe média apaixonado -e possessivo- por sua noiva Isabela (Marina Ruy Barbosa). Após um desentendimento com o ex-namorado de sua parceira, algumas crises de ciúmes e a declaração de falência da empresa de seu pai, Vicente flagra Isabela e seu ex-namorado mantendo relações sexuais na casa da jovem. Alcoolizado, fora de si e certo de que a atitude de sua noiva não merecia perdão, ele atira, friamente, em Isabela, que morre na hora. 

A cena em que Elisa (Debora Bloch) segura o corpo de sua já falecida filha em meio a um “mar de sangue” se tornou uma das mais marcantes da série.


O comportamento machista, abusivo e criminoso do personagem Vicente (Jesuíta Barbosa) é, infelizmente, um reflexo da personalidade de pessoas reais, que acreditam que mulheres devam ser subordinadas a seus maridos/namorados e não podem, ao menos, manter relações de amizade com outros homens. Em vista disso, a cena se tornou tão memorável pelo fato de conseguir traduzir, em uma imagem, a realidade de milhares de mulheres brasileiras violentadas e mortas por seus parceiros diariamente no Brasil.

Incriminação de pessoas inocentes

Na ficção, Fátima (Adriana Esteves) é apenas uma humilde empregada doméstica e mãe de dois filhos. Entretanto, o que fez a personagem se destacar durante toda a exibição da série é o fato de representar diversas pessoas reais que passam pela mesma situação (como, por exemplo, o caso que recentemente gerou mais repercussão nacional, do jovem Rafael Braga). Ela e sua família veem suas vidas ameaçadas quando um policial se muda para a casa ao lado. Após ter sua residência invadida diversas vezes pelo cão feroz do vizinho, Fátima decide tomar uma medida drástica, que o deixa completamente furioso. Como retaliação, o vizinho Douglas (Enrique Diaz), abusando de sua influência como policial, planta uma caixa contendo drogas no quintal da doméstica, que acaba sendo presa sob a acusação de tráfico de drogas, um crime que nunca cometeu. 

A exibição desse episódio e o destaque para situações de abuso de poder e corrupção policial gerou uma reação por parte da Polícia Militar do Rio de Janeiro, que sugeriu boicote à Rede Globo pela seleção do policial como um dos vilões da trama.

Racismo institucional e privilégio branco

A personagem Rose (Jéssica Ellen) é mais uma vítima do racismo institucional e do privilégio branco tão característicos de nossa sociedade. Assim como Fátima, apesar de ser uma personagem fictícia, existem milhares de “Roses” passando pelas mesmas situações vividas pela jovem. No dia do seu aniversário, ela tem algo a mais a comemorar, sua aprovação no vestibular. A fim de celebrar esses momentos especiais ao lado de seus amigos, Rose decide convidá-los para um luau na praia. Ao chegar no local, diversos colegas pedem para que a jovem vá até a barraca de Celso (Vladimir Brichta) comprar drogas. De volta à festa, diversos policiais aparecem e decidem revistar algumas das pessoas presentes. Apesar de todos utilizarem entorpecentes, a polícia liberou os indivíduos brancos e “selecionou” os jovens negros para serem revistados; dentre eles, Rose. Dessa maneira, a jovem foi presa (e, consequentemente, perdeu sua vaga na faculdade). Simultaneamente, seus amigos e o fornecedor das drogas (pessoas brancas) iam para suas casas tranquilamente, sem nenhum tipo de assédio e violência policial.



Eutanásia

Justiça também aborda um tabu ainda pouquíssimo discutido pelos brasileiros, a eutanásia. Após ser atropelada ao final de uma apresentação, a dançarina Beatriz (Marjorie Estiano) fica paraplégica e, incapaz de fazer o que mais amava na vida -dançar-, decidiu que não desejava passar por toda a dor e sofrimento que essa condição a levaria. Portanto, em seu último pedido, a jovem suplica para que seu esposo, Maurício (Cauã Reymond), pratique a eutanásia e alivie sua insatisfação com a vida que levaria daquele momento em diante. Apesar do pedido inesperado, o jovem compreende o argumento de Beatriz, que afirmava ter morrido no momento em que o carro a atropelou, e percebe que a mulher não conseguiria viver feliz após o acidente. Sabendo que sofreria as consequências desse ato, que é considerado crime no Brasil, ele atende ao desejo de sua mulher. 



O tema da morte, ou da “boa morte” –significado da palavra eutanásia-, apesar de ser relativo à saúde pública, ainda é negligenciado por autoridades brasileiras. Não existe diálogo a respeito dessa questão, e as poucas tentativas de reflexão acerca desse tema (como um Projeto de Lei de 1996 que “autoriza a prática da morte sem dor em casos específicos”) são barradas pelo poder Legislativo. 

Justiça com as próprias mãos

A resistência em relação à justiça brasileira é a crítica mais contundente realizada por Justiça. Um dos fios condutores da narrativa consiste na negligência do sistema judiciário e na busca por justiça de uma maneira “alternativa”, com as próprias mãos. Diversos são os diálogos em que personagens divagam sobre a demora, falha e injustiças cometidas pela justiça brasileira. Como consequência desse sistema cheio de lacunas, alguns personagens tomam para si a responsabilidade de mudar uma situação que deveria ser responsabilidade desse poder. 

Referências:

KESKE, Humberto Ivan Grazzi; SCHERER, Maria Margarete. A telenovela brasileira e a cultura de massa: uma relação muito além do zapping. In Questões Contemporâneas, v.12, n.2, 2013, Online. Disponível em: <http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/polemica/article/view/6424/4853>. Acesso em: 15 dez. 2017.

LOPES, Maria Immacolata Vassallo de; MUNGIOLI, Maria Cristina Palma. Qualidade da Ficção Televisiva no Brasil: elementos teóricos para a construção de um modelo de análise. In XXII Encontro Anual da Compós, Universidade Federal da Bahia, Anais...2013. Disponível em: <http://compos.org.br/data/biblioteca_2078.pdf>. Acesso em: 15 dez. 2017.

MACHADO, Arlindo. Modos de pensar a televisão. Revista Cult, Online, 2011. Disponível em: <https://revistacult.uol.com.br/home/modos-de-pensar-a-televisao/>. Acesso em: 15 dez. 2017.


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