Euphoria (HBO, 2019-atual) ultrapassou os limites de qualquer predecessora. A primeira temporada do drama adolescente, exibida entre junho e agosto de 2019, discutiu questões importantes para jovens millenials. Os temas são velhos conhecidos da juventude: depressão e transtornos de ansiedade; abuso de drogas; relacionamentos problemáticos e/ou abusivos; autoestima (e autoconsciência, é claro). Mas o modo de retratar se reconstrói a cada episódio.
A trama central se desenvolve em torno de Rue Bennet (Zendaya). Logo no primeiro episódio, a personagem descreve os sentimentos de angústia dos quais se livra no instante em que usa algum entorpecente. E nesse mesmo episódio somos apresentados Jules Vaughn (Hunter Schafer), uma garota transgênero que se tornaria melhor amiga e – posteriormente – namorada de Rue. Os laços entre elas se estreitam quando Nate Jacobs (Jacob Elordi) ataca Jules em uma festa e a jovem se defende ameaçando com uma faca. É nesse trio que pretendemos focar.
Masculinidade tóxica
Cada episódio do seriado é focado em um personagem específico. O segundo é dedicado a contar a história de Nate. Nascido em um ambiente autoritário e problemático, o jovem quarterback performa sua masculinidade de um modo bastante discutível. Ainda criança, ele tem contato com vídeos pornográficos caseiros feitos por seu, Cal Jacobs (Eric Dane), em encontros com garotas transsexuais. Cal não lida com esse espectro de sua sexualidade: esconde da família e da sociedade seus desejos, mas os registra.
A fetichização de mulheres transexuais, entendidas como objetos, é clara nas ações do personagem. Conforme aponta Freud (1996, p. 96) “O significado do fetiche não é conhecido por outras pessoas, de modo que não é retirado do fetichista; é facilmente acessível e pode prontamente conseguir a satisfação sexual ligada a ele”. O comportamento de caçada desenvolvido por Cal despersonifica as mulheres com as quais ele se relaciona. Como explica Tompkins (2014, p. 767), “[ele] se interessa, especificamente, pela transexualidade enquanto qualidade ao invés de considerar pessoas trans como indivíduos dinâmicos” [tradução livre] [1].
Além das questões relacionadas aos espectros de sexualidade, a personalidade de Cal exige do jovem Nate performances que o façam se enquadrar no modelo tradicional de masculinidade. Como ressalta Fejes (2000, p. 113), “Todos os humanos que tem pênis são [tidos como] masculinos. No entanto, existem diferentes tipos de masculinidade variando do conceito hegemônico tradicional do homem como agressivo reprodutor até a estigmatizada masculinidade homossexual” [tradução livre] [2].
Nesse aspecto, Nate age de forma agressiva em diversos sentidos. As cenas que envolvem relações sexuais com sua namorada Maddy Perez (Alexa Demie) são extremamente violentas e, também, ignoram a parceira como indivíduo. Em outro ponto, a agressividade é direcionada especificamente à Jules, por seu repúdio a expressão de gênero e sexual da personagem. Além das violências diversas praticadas contra as personagens femininas da série, Nate também ataca outros homens com o intuito de reforçar e legitimar sua própria masculinidade: ele espanca o universitário Tyler Clarkson (Lukas Gage) sob o pretexto de proteger sua (com amplo destaque ao caráter possesivo do pronome) namorada.
Kupers (2005, p. 714) destaca que “masculinidade tóxica é a constelação de características sociais regressivas de homens que servem para alimentar a dominação, desvalorização de mulheres, homofobia e violência gratuita” [tradução livre] [3]. O autor desenvolve a tese de que este é um dos principais fatores para que homens não se sintam capazes de buscar ajuda e/ou tratamento psicológico. Nesse sentido, podemos perceber a recorrente fuga de Nate de lidar com transtornos relacionados à raiva e a expressões agressivas como um reflexo direto de uma construção social e psicológica complexa.
LGBT+ além do G
Euphoria se localiza em um contexto social bastante fértil no que diz respeito a representação LGBT+ na ficção seriada estadunidense. No último relatório We Are On TV, desenvolvido a cada temporada televisiva pela GLAAD (Gay & Lesbian Alliance Against Defamation), entre 2018-2019, cerca de nove por cento dos personagens TV estadunidense eram LGBT+. Cerca de três por cento eram transgênero, contabilizando 17 mulheres, cinco homens e quatro não-binários. É importante destacar que o relatório a englobar a primeira temporada da série não foi publicado até o fechamento deste texto.
Na onda de bons exemplos do primetime como, por exemplo, POSE (FX, 2018-atual), Euphoria evita simplificar situações complexas. Pelo contrário, todos os personagens centrais do seriado são explorados em múltiplas camadas psicológicas e de significação. Nesse ponto, tanto a identidade e expressão de gênero assim como a sexualidade de Jules são amplamente exploradas, mas evitando representações simplórias.
No primeiro episódio, a única indicação da identidade de gênero da personagem é revelada apenas ao final com um frame que apresenta Jules e Rue vistas de cima, deitadas na cama. Como destaca Butler (2010, p. 155), as concepções sociais tendem a não considerar o “que se passa com um sujeito, mas, em vez disso, que osujeito, o “eu” falante, é formado em virtude de ter passado por esse processo”. E nesse ponto há efeito narrativo direto a partir da escolha do posicionamento de tal revelação dentro do contexto pois, desloca-se a personagem de um espaço pré-discursivo, realocando-a no centro do discurso (ou enquanto sujeito que vai além de determinada condição).
Em outra instância, a solidão relacionada a mulheres e homens trans também é explorada. Jules é, inclusive, vítima do fetichismo do pai de Nate e continua a se aventurar em relações sexuais vazias através de uma alocação social que a ignora enquanto indivíduo. Bento (2008, p. 22-23) destaca que “Afirmar que a transexualidade (sic) é uma experiência identitária [...] não significa esquecer a dor daqueles que sentem e desejam viver experiências que lhes são interditas por não terem comportamentos considerados apropriados para seus sexos”. Nesse sentido, o seriado explora outros aspectos das narrativas de pessoas transgênero que vão além da busca por aceitação.
Se por um lado personagem sofre com a despersonificação, retratada através da busca recorrente por encontros sexuais em aplicativos destinados a isso, por outro a construção dos arcos narrativos que a envolvem se desenrolam em busca de compartilhar esferas diversas de seus aspectos psicossociais enquanto indivíduo.
Ao se mudar para uma nova cidade, Jules começa a se relacionar com Rue a partir de um sentimento mútuo de inadequação social. Os sentimentos de angústia e não-pertencimento acometem as duas por razões diversas, mas que confluem no estreitamento de laços. Rue tem dificuldades de relacionar-se com o mundo por diversos transtornos de ansiedade que à acometem, Jules é frequentemente rejeitada e apagada por sua identidade de gênero. E a partir da amizade, as duas começam a se relacionar romanticamente.
O casal Rules é problemático por natureza: ambas se encontram em momentos complexos da formação de sua própria personalidade. Rue sofre com dependência química e constrói, também, dependência emocional em relação a Jules, entendendo sua relação com ela como a solução de todos os seus problemas. Outro importante efeito narrativo do roteiro do seriado diz respeito à quebra de expectativa quando Jules não corresponde ao estado afetivo de Rue e precisa se afastar da namorada. Segundo Bento (2008, p. 23), “As narrativas das pessoas transexuais (sic) nos remetem para um mundo de dúvidas, angústias, solidão e um medo constantes de serem rejeitados”, mas em Euphoria a subjetividade de Jules se sobrepõe sob o receio da abjeção.
Considerações finais
Euphoria perpassa por diversas situações recorrentes ao universo dos jovens e adolescentes, mas consegue avançar na representação de maneira significativa. A dialética entre a heteronormatividade e quaisquer expressões sexuais e de gênero divergentes é frequentemente abordada sob uma nova ótica que a cada episódio reconfigura regras sociais (e, também, narrativas). Conforme aponta Fuss (1991, p. 1-2) “as estruturas de alienação, cisão e identificação juntas produzem um eu e um outro, um sujeito e um objeto, um inconsciente e um consciente, uma interioridade e uma exterioridade”, mas há determinantes fatores complexos que integram o entremeio entre o normativo e o dissidentes. É sob tais aspectos (psicossociais, relacionais e transicionais) em que a narrativa se apoia e é, a partir deles, que começam a se delinear representações realmente humanizadas de indivíduos LGTB+.
Notas
[1] “who is interested in trans people’s transness, specifically, instead of trans people as dynamic individuals”.
[2] “All humans who have penises are masculine. However there are different types of masculinities, ranging from the hegemonic traditional concepts of man as aggressive breeder to the stigmatized masculinity of homosexuals.”
[3] “Toxic masculinity is the constellation of socially regressive male traits that serve to foster domination, the devaluation of women, homophobia, and wanton violence.
Referências
BENTO, B. O que é transexualidade. São Paulo: Brasiliense, 2008.
BUTLER, J. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do sexo. ILOURO, G.(Org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2010, p.151-172.
FEJES, F. Making a gay masculinity. Critical Studies in Media Communication, v. 17, n. 1, p. 113-116, 2000. Disponível em <https://goo.gl/62kgUV>. Acessoem: 29 set. 2019.
FUSS, D. Inside/Out: Lesbian Theories, Gay Theories. Routledge: New York, 1991.
FREUD, S. Obras Completas, vol. 21 (1927-1931). Rio de Janeiro: Imago, 1996.
KUPERS, T. A. Toxic masculinity as a barrier to mental health treatment inprison. Journal of Clinical Psychology, v. 61, n. 6, p. 713-724, 2005.
TOMPKINS, A. B. “There’s No Chasing Involved”: Cis/Trans Relationships, “Tranny Chasers,” and the Future of a Sex-Positive Trans Politics Journal of Homosexuality, v. 61, n. 5, p. 766–780, 2014. Disponível <https://bit.ly/3334NWp>. Acesso em: 03 out. 2019.
1 Comentários
Que serie ruim
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