A amizade feminina está sendo televisionada

Se você viveu os anos 2000 é bem provável que consiga listar inúmeros filmes e séries que a rivalidade feminina é o conflito principal. Mulheres que se odeiam, que competem entre si e que passam filmes ou temporadas inteiras disputando um cara é um estereótipo de representação feminina bem comum na cultura pop. Entretanto, nos últimos anos temos acompanhado figuras femininas que vem mudando o cenário e investindo em um novo (e revolucionário) modelo de histórias de amor: a amizade feminina. 


Durante muitos anos a amizade feminina foi retrata de maneira distorcida. De Repente 30 (2004, Gary Winick) nos ensinou que não há espaço suficiente para duas mulheres inteligentes no mesmo ambiente de trabalho, já Noivas em Guerra (2009, Gary Winick) trouxe em cena duas melhores amigas brigando – fisicamente - por um casamento e no clássico teen Gossip Girl (Warner Channel, 2007-2012) acompanhamos anos de disputa entre Blair (Leighton Meester) e Serena (Blake Lively). A questão é que mulheres são ensinadas a acreditarem que não tem motivos para se unir ou que isso é impossível, afinal apenas homens são capazes de ter laços verdadeiros e intocáveis. (SOUZA, 2016)

Todas essas relações entre mulheres, pensei, recordando rapidamente a esplêndida galeria de personagens femininas, são simples demais. Muita coisa foi deixada de fora, sem ser experimentada. E tentei recordar-me de algum caso, no curso de minha leitura, em que duas mulheres fossem representadas como amigas. [...] Vez por outra, são mães e filhas. Mas, quase sem exceção, elas são mostradas em suas relações com os homens.” (WOOLF, 1929)

Quando Sex And The City surgiu na HBO foi uma revolução na TV. Até aquele momento não era comum assistir quatro melhores amigas falando abertamente sobre sexo, carreira e autonomia feminina. As relações tridimensionais, densas e aprofundadas eram resguardadas ou para os casais (heteronormativos) ou para os homens, assim a mulher permaneceu como figura secundária. (PRESS, 2018, p. 76). Por isso, Sex and The City mudou paradigmas ao trazer protagonismo e cumplicidade feminina para as telas. Porém, nem tudo são flores, ainda mais no início dos anos 2000, e a série tem suas problemáticas: o elenco predominante branco, a representação estereotipada de pessoas LGBTQI+ e o tom elitista da obra. Além disso, os principais conflitos das personagens ainda envolviam a busca do homem ideal. 

Entretanto , de uns tempos para cá estamos acompanhando uma nova era de representação feminina, especialmente na televisão: mulheres assumindo o comando de suas próprias histórias e assim dirigindo, roteirizando e protagonizando. Por esse motivo, a amizade feminina se tornou eixo central de diversas séries atuais como The Marvelous Mrs Maisel (Amazon Video, 2017-atual), Insecure (HBO, 2016-atual) e Dead to Me (Netflix, 2019-atual). 

Mulheres unidas pela comédia em Marvelous Mrs Maisel 

Em uma atmosfera cinquentista, The Marvelous Mrs Maisel traça a jornada de duas amigas com personalidades opostas, mas com um propósito em comum: a comédia. Inicialmente a relação da dupla se dá no âmbito profissional: Midge (Rachel Brosnahan) nos microfones e Susie (Susie Myerson) como sua agente. Porém, com o desenvolver da narrativa, a dupla tem que enfrentar juntas o machismo da época, os perrengues da vida de stand-up e os conflitos pessoais que as atravessam. Assim, a dupla constrói uma relação de amizade, onde se apoiam mutuamente, amadurecem e enfrentam seus conflitos juntas.


Amizade, romance e inseguranças em Insecure


Insecure acompanha o cotidiano de Issa (Issa Rae), uma mulher negra em Los Angeles tentando buscar seu próprio caminho. E isso envolve: muitas inseguranças, idas e vindas de amores, mas também um relacionamento complexo e essencial na trama: sua amizade com Molly (Yvonne Orji), sua melhor amiga. A relação de ambas é construída a partir de aspectos pessoais, familiares e especificidades que mulheres negras vivenciam. Em Insecure, a amizade feminina negra é central na vida das protagonistas, é um meio de apoio e identificação. 

“Em um mundo que nem sempre nos valoriza, respeita e entende, precisamos uma do outra para sermos inteiras. Precisamos de um espaço em que não tenhamos que nos preocupar em ser rotuladas. Precisamos de um espaço onde nossos interesses, questões, medos e vidas estejam sempre no centro. Mais importante ainda, precisamos de um espaço em que somos suficientes. E como Insecure nos lembra, esses espaços são os que criamos com o outro” (Kelee Terrell – Vogue)

Amigas, mistérios e relacionamento abusivos em Dead To Me

Em meio a acidentes, mistérios e muita risada, Judy (Linda Cardellini) e Jen (Christina Applegate) constroem uma relação de cumplicidade. A base da amizade das duas não é por identificação, mas um episódio traumático para ambas que as ligam intimamente. Judy e Jen tem parceiros amorosos abusivos que as fazem infelizes e inseguras, mas é através do apoio mútuo que elas conseguem romper suas respectivas relações tóxicas e construir uma amizade sólida e madura. 


Essas três obras, criadas por mulheres, sintetizam um novo caminho da amizade feminina no audiovisual: relacionamentos complexos, diversos e centrais na vida da mulher moderna. A união feminina pode representar em uma história um arco de empoderamento (The Marvelous Mrs Maisel), de amadurecimento (Insecure) e de emancipação (Dead To Me). Além disso, pode ser uma fonte inesgotável de conflitos durante a narrativa, já que a amizade assim, como qualquer relação, envolve brigas e até términos (às vezes mais doloridos do que um fim de um namoro). Por isso, é essencial que a amizade feminina seja representada através de diferentes perspectivas e olhares para seguir revolucionando a televisão e nós mesmas. 

Referências

PRESS, Joy. Stealing the show: How women are revolutionizing television. Nova York: Atria Books, 2018.

SOUZA, Babi. Vamos Juntas?: O guia da sororidade para todas. Rio de Janeiro: Galera, 2016. 

WOOLF, Virgínia. Um Teto Todo Seu. Nova Fronteira: Tordesilhas, 2014.


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