Irmão do Jorel e a influência do desenho animado na educação infantil

Muitas crianças passam grande parte da infância assistindo a séries animadas, até mesmo antes de começarem a falar e andar. Por isso, é importante que o conteúdo televisivo esteja de acordo com a faixa etária de quem o consome. Além disso, alguns desenhos voltados para o público infantil muitas vezes trazem referências e easter eggs que atraem pessoas mais velhas, estendendo ainda mais a possibilidade de diferentes espectadores.

Esse é o caso de Irmão do Jorel (Cartoon Network, 2014 - atual). Vencedora do Prêmio Quirino 2019 como melhor animação ibero-americana e indicada ao Emmy Kids Internacional 2019, a série criada por Juliano Enrico aborda conteúdo infantil - contando a história de Irmão do Jorel e sua família - e conquista adolescentes e adultos com elementos nostálgicos, metáforas e referências a cultura pop. Na prática social, o desenho se encarrega de quebrar estereótipos, expor falhas do sistema e questionar, através do olhar do personagem principal, questões como gênero, consumo e manipulação midiática, conduzindo tais temas com uma linguagem cômica e acessível para o público infantojuvenil. 


O desenho animado como educação infantil

Para tornar possível a identificação do conteúdo educativo em Irmão do Jorel, é preciso, primeiramente, estabelecer uma relação do universo imaginário retratado na televisão infantil com a influência dos programas televisivos na formação da identidade da criança. Segundo Durand (1983), a função da imaginação das histórias e nas vidas humanas é motivada não pelas coisas em si, mas por uma maneira de carregá-las com sentido, por isso, a função fantástica modula a ação estética e social. Se aplicado esse pensamento à ideia concebida por Silva e Gomes (2009, p. 38) de que ao falarmos de imagem em movimento conceituamos uma infinidade de possibilidades e formação de novas ideologias e que “essas ideologias geralmente já estão presentes na sociedade, transmitidas como forma de desvelamento ao sujeito”, pode-se afirmar que o desenho animado infantil influencia diretamente a imaginação e o caráter social do indivíduo em fase de formação. “Os desenhos estão presentes na infância de todas as crianças, não se pode separar o crescimento e desenvolvimento da criança da presença unânime da televisão nessa formação” (KOHN, 2007, p. 4).

Com esse peso do papel do desenho animado no desdobramento cognitivo e social da criança, torna-se difícil identificar quais são os programas que transmitem mensagens positivas. De acordo com Mesquita e Soares (2008), a televisão é mais presente na vida das crianças que na dos adultos, atuando, muitas vezes, como “babá eletrônica”. Portanto, acompanhar tudo que a criança assiste seria uma tarefa que consumiria muito tempo do responsável pela criança em questão. Isso divide críticos e educadores em relação aos benefícios dos desenhos animados. Kohn (2007) explica que o desenho animado pode ser uma ferramenta educacional excelente se utilizada corretamente, pois funciona como um treino social por meio de representação da realidade.

Assim, cabe adentrar no universo fictício de Juliano Enrico - o desenho animado Irmão do Jorel. Inspirada na vida pessoal do criador, a série incentiva a educação e retrata a vida de um menino que constantemente questiona aquilo que acontece ao seu redor. Apesar de ser consumido principalmente por crianças em fase de formação, o desenho contém diversos elementos que exigem um grau de maturidade e vivência maior para que seja totalmente compreendido. É possível notar que mesmo as histórias construídas com base em um contexto estético e narrativo infantilizado - em diversos momentos piadas, situações e até mesmo personagens são inseridos para que haja um choque de realidade no telespectador, despertando um lado mais crítico do programa, ainda que passe despercebido pelo público infantojuvenil.


Apropriando-se das memórias nacionais, Irmão do Jorel explora o imaginário esquecido dos adultos e desperta o lado crítico das crianças. Caracterizar temáticas relevantes para a formação do indivíduo - como respeito a todos os gêneros e etnias, igualdade social, liberdade de expressão, ética - de forma humorística e descontraída é o motivo do desenho ter sido alvo de tantas críticas positivas por fãs e estudiosos de todas as idades. 

O Brasil tem dois recordes internacionais negativos: é o país que tem uma das polícias mais assassinas do mundo e é o campeão de assassinatos de homossexuais. "Irmão do Jorel", ao abordar esses temas, pode facilitar a conversa de crianças com pais, professores e colegas sobre a ditadura militar e a herança deixada por esse doloroso processo (como a PM); e sobre preconceito, ódio e bullying que vêm da homofobia tão presente em nossa cultura. (MERCY ZIDANE, 2016)

A importância da animação brasileira

É importante ressaltar que, mesmo no Brasil, a maior quantidade de mídias consumidas pelo público infantil é de origem estadunidense. Segundo Gatti, Gonçalves e Barbosa (2014) conforme dito pela TV Brasil (2011), a indústria brasileira de animação está atravessando um momento singular em sua trajetória, tanto pela quantidade quanto pela qualidade das produções, porém, ainda sofre muito com a concorrência da produção internacional.

A educação infantil no Brasil atualmente passa por um momento crítico, visto que a situação política do país condena a discussão ideológica dentro das escolas nacionais - com o projeto Escola Sem Partido. Com isso, é importante que novos meios de educação que não sejam conservadores e ultrapassados sejam intensificados e popularizados.

É visível que a educação necessita de novos meios para garantir a interação e a formação de identidade do cidadão na sociedade. Enfim, ideologias contidas em desenhos animados e suas representações sócio-artísticas e culturais são relativamente relevantes para o desenvolvimento infantil. [...] ressalta-se o grande potencial dos desenhos animados como forma de aprimorar o desvelamento e a representação para a inclusão do indivíduo na sociedade e na formação de sua identidade. (SILVA; GOMES, 2009, p. 5)

Irmão do Jorel, a representação de autoridades e a Ditadura Militar

Uma das questões mais discutidas pelos fãs do desenho é o uso de referências à época da Ditadura Militar no Brasil. A principal pode ser identificada em Seu Edson, pai do Irmão do Jorel, que militava contra as autoridades durante sua juventude. Seu Edson está sempre ensinando seus filhos a lutarem pelo que acreditam. Segundo Cruz (2018, p. 64), ele “assume atitudes de enfrentamento e de desconfiança com uma nostalgia quase palpável”, inspirando o personagem Irmão do Jorel com histórias sobre seu passado revolucionário.

Ao pensar que a série retrata o cotidiano de uma família brasileira entre os anos 1980 e 1990, período em que o Brasil estava saindo de uma ditadura militar e tinha seu contexto político bastante instável por conta do estabelecimento da democracia, não é surpreendente pensar que a dominante postural presente em Irmão do Jorel também esteja presente no contexto histórico-social da época que retrata. (CRUZ, 2018, p. 69)


O principal motivo que sustenta a ligação de Seu Edson com a Ditadura Militar está presente nos episódios Profissão: Palhaço e Gangorras da Revolução: o policial Rambozo - que também é um palhaço, além de seu nome ser uma junção de “Rambo” com “Bozo”, duas figuras conhecidas na cultura popular. Em “Profissão: Palhaço” Irmão do Jorel é mandado para uma escola de palhaços, que faz alusão ao colégio militar. Quando Seu Edson aparece no episódio, é para expressar seu desgosto pelos “palhaços”, que completa com: “Quando eles estavam no poder, eu lutei contra”.


Em “Gangorras da Revolução” Seu Edson menciona que lutava contra o regime político durante sua juventude através da arte. Nesse episódio, Irmão do Jorel - influenciado por seu pai - inicia uma revolução na escola, enfrentando a diretora ao fim do intervalo. Quando interrompido pelo policial Rambozo e pelo repórter local, Irmão do Jorel se mostra triste com o fim de sua causa e seu pai o diz que alguém sempre arruma um jeito de se aproveitar e lucrar em cima da revolução. Por isso, fica claro que sátira presente na série é uma forma de criticar o regime autoritário e o sistema capitalista.

Irmão do Jorel e a questão de gênero 

Além de fatos históricos brasileiros, o desenho também se compromete com temas que são mais atuais nos conteúdos infantis, como gênero e feminismo. Lara, melhor amiga do Irmão do Jorel, é a responsável pela quebra de paradigmas e conceitos ultrapassados sobre o que é ser menina e o que são coisas de meninas.

Em Fúria e poder sobre rodas essa questão é abordada de maneira simples e direta. Durante o episódio, são apresentadas simbologias normativas que ajudam o espectador a identificar e questionar os papéis sociais dos gêneros feminino e masculino na sociedade. Logo no início pode-se perceber uma quebra sutil dos padrões, quando Lara conduz sua bicicleta de maneira rápida e feroz, levando o Irmão do Jorel em sua garupa. Lara propõe que os dois tentem alcançar o arco-íris e quando Irmão do Jorel não aceita e diz querer ir embora - com medo de realmente alcançá-lo -, Lara o chama de “frangote”. Irmão do Jorel então questiona se com isso ela quer dizer que ele é “uma mulherzinha” e Lara rebate dizendo que mulherzinha, na realidade, é quando uma pessoa é incrível. 


A partir disso, desencadeia-se uma discussão entre os dois sobre o que é coisa de menino e coisa de menina. Enquanto Irmão do Jorel afirma que coisas de meninas são brincadeiras mais sensíveis e passíveis como ‘brincar com um pônei cor-de-rosa em miniatura” e que de menino são brincadeiras mais táteis e de força como “jogar futebol”, Lara argumenta que é uma menina que não brinca com pôneis e que adora jogar futebol, enquanto o próprio Irmão do Jorel não gosta do esporte. 

Ao longo do episódio, diversas questões são levantadas por Irmão do Jorel sobre o que ele pode e não pode fazer por ser menino, principalmente quando descobre o esporte mais perigoso do mundo, o Roller-Derby. O esporte de patinação em quadra é muito violento, mas só pode ser praticado por meninas. Chateado, Irmão do Jorel lamenta com sua mãe não poder jogar e ela conta a ele que já foi campeã, assim como a mãe dela. Essa conversa o faz se vestir de menina para poder participar do time e o episódio termina mostrando que meninos podem fazer coisa de menina e vice-versa.


Além dos episódios citados, Irmão do Jorel traz críticas à marginalização da arte de rua e exaltação da arte institucional contemporânea; à forma como a mídia influencia as pessoas e omite problemas reais; ao capitalismo e monopólio de grandes empresas e muitos outros temas que não aparecem com frequência em conteúdos animados infantis, principalmente brasileiros. A forma como a série insere essas reflexões sem deixar de ser um desenho infantil de comédia é o motivo de Irmão do Jorel ter conquistado seu lugar entre as obras audiovisuais nacionais mais relevantes dos últimos tempos, atraindo fãs do mundo inteiro.

Referências

CRUZ, T. Irmão do Jorel como expressão do imaginário. Porto Alegre, 2018.

DURAND, G. Mito e Sociedade. A Mitanálise e a Sociologia das Profundezas. Lisboa: Editora Regras do Jogo. 1983.

GATTI JUNIOR, W.; GONÇALVES, M. A.; BARBOSA, A. P. F. P. L. Um estudo exploratório sobre a indústria brasileira de animação para TV. In: Rev. eletrôn. adm. Porto Alegre, v. 20, n. 2, Aug. 2014.

KOHN, K. Desenho animado: um brinquedo ou uma arma na formação da criança? In: Revista Anagrama. v. 1, n. 1, p. 1-5, 2007. http://www.revistas.usp.br/anagrama/article/view/35298

MERCY ZIDANE. Irmão do Jorel, ditadura militar e heteronormatividade. Online. 2016. Disponível em: <http://www.mercyzidane.org/2016/04/irmao-do-jorel-ditadura-militar-e.html>. Acesso em: 28 jun. 2020.

MESQUITA, N. A. da S.; SOARES, M. H. F. B. Visões da ciência em desenhos animados: uma alternativa para o debate sobre a construção do conhecimento científico em sala de aula. In: Ciência e Educação (Bauru), v. 14, n. 3, p. 417-429, 2008. https://doi.org/10.1590/S1516-73132008000300004.

SILVA, T. C.; GOMES, A. C. F. A Importância dos desenhos animados como representação ideológica: formação da identidade infantil. In: Iniciação Científica CESUMAR. v. 11, n. 1, p. 37-43, 2009. http://periodicos.unicesumar.edu.br/index.php/iccesumar/article/view/664.


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