Como a produção da Netflix influenciou o formato documental de “Tiger King”


A Netflix, necessidade ‘fundamental’ da quarentena, já ocupa um espaço relevante no cenário atual do audiovisual e na distribuição desses conteúdos (BARKER; WIATROWSKI, 2017). A plataforma de streaming foi uma inovação comercial e tecnológica que alterou a forma como o público se relaciona com o audiovisual e a sua própria produção. A empresa foi criada no final dos anos 1990 como uma locadora virtual que teve a ideia de oferecer todo o seu catálogo por uma mensalidade relativamente baixa. Logo depois, a Netflix começou a crescer exponencialmente a cada ano e, posteriormente, passou a produzir conteúdos originais para o seu catálogo. A partir dessa evolução, a Netflix passou a alterar a forma tradicional (principalmente no desenvolvimento cliffhanger) de produzir séries e filmes para construir suas próprias narrativas e alcançar seus objetivos comerciais (BARKER; WIATROWSKI, 2017). . 

Segundo Jason Mittell (2012 apud LIMA et al, 2015), as mudanças sociais e tecnológicas contribuíram para uma nova forma de produzir narrativas, com novas estratégias criativas e mais complexas. Assim, a Netflix busca um padrão de qualidade que surgiu ao mesmo tempo que sua plataforma de distribuição de audiovisual (o streaming) e deseja disponibilizar em seu catálogo variados tipos de narrativas e conteúdos que seguem a tendência de se expandirem para além do produto audiovisual em si.

Observando especificamente a produção televisiva estadunidense, Jason Mittell considera que as transformações na indústria midiática, nas tecnologias e no comportamento do público, embora não tenham sido a razão principal de tal mudança, coincidiram com o surgimento da complexidade narrativa de que o autor fala e possibilitaram o florescimento dessas novas estratégias criativas: “observamos tanto como essas transformações impactaram as práticas criativas e como os aspectos formais sempre se expandem para além das fronteiras textuais (LIMA et al, 2015, p. 248 )

A Netflix não deseja reproduzir o formato tradicional da TV, mas sim reinventá-lo ao misturar e usar de formatos audiovisuais já existentes para atingir um padrão de qualidade e criar diferentes conteúdos para seu público, que configuram uma alternativa a narrativa televisiva tradicional. Deseja também alcançar diferentes nichos, similarmente à HBO que há anos já aposta em construções narrativas mais complexas com superproduções e temas ousados que destoam da maioria das séries presentes na televisão. Além disso, a Netflix têm a proposta de distribuir suas séries uma temporada por vez, o que diferencia essa plataforma da produção da série ficcional na TV, que normalmente libera um episódio por semana. A empresa, mensalmente lança novos conteúdos de diferentes formatos na sua plataforma. Com isso, ela investe no alcance desses diferentes nichos de público que ela deseja, de uma só vez. Essa tática possibilita o binge watching (maratonar), o que no fundo é um dos objetivos da empresa, criar produtos audiovisuais que o assinante possa assistir rapidamente, compartilhar e consumir outros títulos de seu catálogo em seguida (BARKER; WIATROWSKI, 2017).

Foi a partir de 2013 que a empresa começou a apostar alto nesse filão,disponibilizando sucessivos títulos exclusivamente. De acordo com o diretor de conteúdo da empresa, Ted Sarandos, a Netflix quer se “tornar HBO antes que a HBO se torne Netflix” (Sarandos apud Condliffe, 2013, informação eletrônica). Essa citação demonstra que o canal fechado estadunidense é tido como uma referência, um padrão de qualidade no que diz respeito à ficção televisiva para audiências de nicho, ao qual a Netflix deseja se equiparar. (LIMA et al, 2015,p. 249)

As séries documentais da Netflix

Como citado anteriormente a Netflix produz conteúdo para muitos nichos afim de conquistar múltiplas audiências. Um desses nichos são as séries documentais originais, que tratam dos temas mais bizarros e extremos presentes na mídia e jornalismo. Como “Wild Wild Country” que conta a saga do controverso guru indiano, cheio de assassinato, drogas e religião ou então a série “Don`t f*** with cats”, que se trata uma caçada humana que rolou online em 2019. A última dessas séries que estreou e desbancou todas as outras, fazendo a Netflix lucrar mais de us$ 34,6 bilhões em quatro dias se chama “Tiger king: Murder, Mayhem and Madness” e conta com grandes felinos em extinção, dinheiro, drogas, poligamia, assassinatos, suicídio, crime e casamento gay. Porém, quais os possíveis motivos que podem ter contribuído para o sucesso da série? 


A verdade é que todas as histórias tratadas nesses documentários, são verídicas e extremamente curiosas, mas tradicionalmente não fazem tanto sucesso, pois seu objetivo e visão é focada em um “storytelling” sóbrio e em registrar, sensibilizar ou informar o público sobre um determinado tema ou personagem. O ativismo é uma promessa da série “Tiger King”, que inicialmente busca expor e encontrar mais informações sobre o abuso dos animais exóticos no Estados Unidos e a grande quantidade de tigres em cativeiro nesse país. Mas essas promessas são deixadas de lado pelos diretores, que com o desenrolar da série, abandonam o intuito informativo e os animais e passam a focar nas grandes personalidades e na vida pessoal daqueles envolvidos na posse e lucro através da exploração dos tigres. Dessa maneira, com o andamento da série ela se torna um circo de horrores exibindo pessoas egocêntricas, suas rivalidades, julgamento moral e principalmente: a vida de Joe Exotic. E é justamente essa parte que se atribui o choque e fama de “A Máfia dos Tigres


A divulgação da série é baseada na infâmia, polêmica e excentricidade do submundo estadunidense dos colecionadores de grandes felinos, utilizando-se de frases de efeito como: "A única coisa mais perigosa que um grande felino é o seu dono". "A história mais louca que você nunca vai acreditar." A grande questão envolvendo essa série, a produção e divulgação da Netflix é que: Isso é um documentário proposto a lutar pelos direitos dos animais e informar o público ou é apenas entretenimento? A série carrega promessas e com isso, responsabilidades sobre a veracidade das informações sobre questão ambiental envolvendo os tigres. E além de deixar essa questão de lado, ela traz informações errôneas e distorcidas sobre a preservação destes e cria uma narrativa imparcial em que uma das “personagens”, cujo nome é Carole Baskin, dona de um santuário de grandes felinos é tão culpada quanto os donos de zoológicos que procriam esses animais em cativeiro ilegalmente, permitem contato entre filhotes e visitantes e os matam quando ficam velhos demais para ter contato com o público de forma segura. Além disso, os criminosos donos dos zoológicos são extremamente misóginos com Carole e ficaram populares entre o público devido a essa construção narrativa que deteriora a imagem da mulher. Como um dos diretores da série, Eric Goode, dono de uma reserva de tartarugas, empreendedor e cineasta, disse para Vanity Fair:

A Netflix é muito hábil em fazer televisão digna de maratonar", disse ele. Tiger King deveria ser Blackfish para grandes felinos. Goode disse a seus entrevistados que estava fazendo um filme focado em problemas ambientais. Ele acabou com algo que pode realmente ser um passo atrás para a conservação de tigres nos Estados Unidos.”


Apesar das críticas negativas que a série recebeu e a construção narrativa problemática dos diretores, o objetivo de sua produtora foi cumprido. Independentemente do papel social e falta de responsabilidade presentes nesse conteúdo, a Netflix lucrou milhões de dólares e fez com que um número maior ainda de pessoas ficassem “viciadas” em sua série. Logo é possível dizer que a atração tenha os aspectos necessários para ser um programa de sucesso em uma plataforma de streaming, que preocupantemente, pode fazer com que essa forma de produção sensacionalista se torne cada vez mais popular, mesmo que seu conteúdo seja considerado uma regressão na causa dos tigres, segundo a crítica. A série também trouxe polêmica para além dos seus espectadores , o presidente Trump, em uma coletiva de imprensa, afirmou pensar no caso de conceder um perdão a Joe exotic pelos seus crimes cometidos. Mais tarde o político disse na sua conta do Twitter que estava apenas brincando.

(Alerta de spoiler)


“A Máfia dos Tigres” acaba com a perda judicial e a prisão de Joe Exotic, seu zoológico passa para os cuidados do seu sócio e assim seria o final dessa história. Porém, o desfecho dessas narrativa ainda tem tido seu desenvolvimento fora das telas e o último passo trama aconteceu no dia 1º de junho em que um tribunal de justiça de Oklahoma City decidiu que o antigo zoológico de Joe deve ser transferido como propriedade para as Mãos de Carole Baskin, porém o zoológico não conta com a posse privada dos animais que ali residem. Está aí um plot twist dos bons, não é mesmo, Senhora Netflix? Com o sucesso estrondoso da série na plataforma e seu atual desenrolar é possível que uma nova temporada seja gravada, mas de qualquer maneira já existem duas produções em andamento nos Estados Unidos que contam a história de Joe, contando com atores premiados como Nicholas Cage e Kate Mckinnon, que vão atuar como Exotic e Baskin, respectivamente.

Referências

BARKER, C.; WIATROWSKI, M. (eds.). The Age of Netflix. Jefferson: McFarland, 2017. 

LIMA et al. Netflix e a manutenção de gêneros televisivos fora do fluxo. Matrizes, v.9, n.2, p. 237-256, 2015. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/matrizes/article/view/111727>. Acesso em: 18 jun. 2020.


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