“Um programa de TV não muda nada” - Relações políticas e sociais no Big Brother Brasil 20


Reality shows são uma das maiores febres contemporâneas. Com inúmeros formatos explorados, muitos deles conquistam audiências gigantes. Os tópicos são os mais diversos: sobrevivência em situações inóspitas em Survivor (Banijay Group, 1997-atual); competições de variedades em Got Talent (Syco Entertainment, 2006-atual) e Idols (Fremantle, 2001-atual); ou o cotidiano das celebridades com Keeping Up with the Kardashians (E!, 2007-atual) e The Real Housewives (Bravo, 2006-atual). Eles podem também buscar atingir um público menos definido ou um nicho como é o caso RuPaul’s Drag Race (VH1, 2009-atual) e Pawn Stars (History, 2009-atual). E, é claro, eles podem surgir como spin-off de grandes sucessos ficcionais como The Glee Project (Oxygen, 2011-2012) ou gerar suas próprias sequências como, por exemplo, os incontáveis programas que exploram o universo dos Kardashian. 

No Brasil, apesar da profusão de conteúdos que se propõe trabalhar a realidade, o Big Brother (Globo, 2002-atual) está entre os produtos culturais de maior impacto. A cada edição, a potencia de trazer à tona diversos assuntos, pautar discussões em vários âmbitos da sociedade assim como reafirmar posicionamentos pode ser observada na mídia e nas redes sociais. Na edição 2020 (BBB20), o programa atingiu a marca recorde 1,5 bilhão de votos do público e, segundo o blog da jornalista Patrícia Kogut, foi mencionado, no Twitter, sete vezes mais que edição anterior ainda um mês antes da final. 

O BBB20 reuniu 20 personagens, trazendo uma série de novidades como a inserção de famosos no jogo. Nesta edição, durante os primeiros dias a casa foi dividida por um muro que separava os nove convidados e os nove inscritos. Em seguida, os dois grupos foram unificados, gerando a tradicional dinâmica de convivência do programa, com essa especificidade das relações dos que já experienciavam a vida pública com os candidatos à celebridade. Os dois últimos participantes ingressaram no programa através de votação do público.



Exibido entre janeiro e abril de 2020, o reality gerou várias discussões nas redes sociais, envolvendo os tradicionais questionamentos narrativos e de formato, mas, também, levantando pautas dos movimentos sociais, relações com o momento histórico, incluindo sobre a política partidária nacional. A final, exibida no dia 27 de abril de 2020, foi composta por três mulheres, dentre elas duas pertenciam ao grupo dos convidados - a influencer Rafa Kalimann e a cantora Manu Gavassi. A ganhadora da edição, a médica Thelma Assis, era a única inscrita restante. O tópico foi repercutido na mídia, inclusive no que se refere ao símbolo político da vitória de uma mulher negra no âmbito televisivo nacional. 

Entre ficção e realidade 

A franquia do Big Brother é sucesso mundial e vem sendo abordada teoricamente desde o princípio. Campanella (2007, p. 2) destaca que os estudos sobre o programa focam em questões sobre conteúdo multiplataforma, interatividade, o conceito de autenticidade, identidades contemporâneas e gêneros narrativos. Partindo deste contexto, o autor busca então compreender a economia política que cerca o reality e suas relações de mercado. 

Na vigésima edição, o a Globo alterou alguns posicionamentos mercadológicos nos aspectos produtivos e comerciais. Pela primeira vez, o valor do pacote da assinatura do pay per view (na TV por assinatura) foi reduzido ao preço pago pelos assinantes do Globoplay. A plataforma de streaming teve peso sensível no BBB20 e no Grupo Globo, fazendo o serviço atingir 4,5 milhões de horas de consumo diárias. O grupo também adotou outra política de vendas de cota publicitárias, integrando as inserções tanto na Web quanto no Multishow, apostando no trânsito do público entre plataformas. Canitto (2010) destaca que o reality show é o mais digital dos formatos e todas essas mudanças estratégicas apontam para esse caminho. 

Contudo, o sucesso de uma edição do Big Brother é bastante variável. O BBB19, exibido entre janeiro e abril de 2019, teve a pior audiência da história do reality no país. Wolton (1996, p. 126) destaca que “o público pode ser seduzido e atingido ao acaso [...] sem que os espectadores e os profissionais o tenham previsto de fato”. O autor aponta que essa é a maior dificuldade da televisão geralista (essa da produção não segmentada voltada para um público de massa) à medida de que precisa conquistar uma audiência que é impossível de ser conhecida. 

Nesse sentido, hipóteses são formuladas para discutir possíveis indicativos das razões pelas quais o programa é bem sucedido ou não. Cannito (2010, p. 202-203) afirma que “[o BBB] colou por ter abordado os mesmos temas da novela brasileira, mas criando uma forma inovadora de representar a sociedade” mais próxima da cultura digital. Segundo o autor, são frequentes temas como “amor e a ascensão social”, tal como na teledramaturgia brasileira. Além do melodrama moderno, com as divisões entre heróis e vilões menos claras, o BBB também concatena game e o documentário em um mesmo formato. Cannito ainda ressalta que o formato constrói um metamelodrama “permanentemente criticado e debatido” em que parte da graça “é decidir se aquilo a que ele assiste é um ‘reality’ ou é um ‘show’”. 

A busca pela suposta autenticidade também é tema recorrente nas narrativas do Big Brother. Campanella (2013, p. 2-6) indica que há uma mudança nos parâmetros sociais durante o percurso histórico que se reflete no BBB e, também, nas demandas dos telespectadores. O autor (2013, p. 2) destaca que a ética da autenticidade, ou seja, a busca por uma moral que é interna e não mais externa, reconfigura os “conceitos de certo e errado [que] estavam vinculados a uma preocupação com recompensas e punições divinas”. Nesse sentido, busca-se no ganhador alguém capaz de poder expressar da maneira mais original possível – ou mais autêntica - sua personalidade. Cannito (2010, 206) observa que o “triunfo do herói”, base das narrativas clássicas, ainda pode ser observado nesse cenário. 

No entanto, é importante ressaltar a complexidade que o formato apresenta. Jost (2004, p. 111-114) discute que o Big Brother articula diversos gêneros televisivos. O autor aponta que o programa é composto de três estratégias complementares: da autenticidade (o fato de ser veiculado 24 horas por dias), da ficção (ao ser editado e sumarizado na exibição na TV aberta) e lúdica (por ser um jogo). Outro ponto refere-se ao contrato simbólico construído entre a televisão, seus personagens e seu público. Nesse sentido, Jost (2004, p. 115) destaca que em relação ao documentário, os reality shows têm um senso mais direto de confissão à medida que os personagens “acordam em dar-se ao espetáculo, seja por reencenar suas vidas, ou por expor-se no estúdio diante das câmeras” (livre tradução do autor) [1]. Cannito associa esse efeito ao cinema verdade, proposto por Rouch, o qual “trabalha com a consciência de que o ‘personagem’ do documentário tem percepção do jogo da representação e também atua para a câmera” (CANNITO, 2010, p. 209). 


A televisão política 

A reality TV integra um cenário que aumenta exponencialmente a percepção da vida real enquanto performance. Isso se deve, em parte, ao jogo encenado que depende da influência do público e, em grande medida, ao laço social que a televisão constitui. Wolton (1996, p. 124-135) aponta que ao assistir ao mesmo conteúdo simultaneamente, o telespectador constrói “uma espécie de common knowledge, um duplo laço e uma antecipação cruzada [...] uma espécie de laço espetacular e silencioso”. Segundo o autor, a televisão geralista tem esse potencial de criar uma unidade nas sociedades “entre indivíduos que tudo separa, salvo a terem visto, ao mesmo tempo, por razões diferentes e de maneiras diferentes, imagens a que aceitaram a assistir” (WOLTON, 1996, p. 127). Nesse sentido, um programa da magnitude de audiência como o Big Brother consegue reunir diversos espectros do público ao redor de um mesmo conteúdo ao ponto que “O laço social significa duas coisas: o laço entre indivíduos e o laço entre as diferentes comunidades constitutivas de uma sociedade” (WOLTON, 1996, p. 135). 

Além disso, Wolton (1996, p. 124) também destaca que a percepção de a que a televisão é um espelho social implica que ela apresenta, portanto, uma representação da sociedade. No sentido estrito, significa que a televisão está inserida em um sistema simbólico, com códigos e linguagens próprios, mas de modo algum dissociado das ideologias contidas na sociedade. Conforme ressalta Bordieu (1989, p. 10), “os símbolos sãos instrumentos por excelência da integração social: enquanto instrumentos de conhecimento e de comunicação, eles tornam possível o consensus acerca do sentido social que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social”. 

Desse modo, é possível notar que toda discussão interior à representação – enquanto modo de apresentar o mundo através da abstração – é, instrisicamente, política. E que, através delas, inexoravelmente discute-se a realidade que se cerca. Hall (1996, p. 68), ao discutir a formação das identidades contemporâneas destaca que “Ao invés de tomar a identidade por um fato que, uma vez consumado, passa, em seguida, a ser representado pelas novas práticas culturais, deveríamos pensá-la, talvez, com uma ‘produção’ que nunca se completa, que está sempre em processo e é sempre constítuida interna e não externamente à representação”. Em conssonância com Bourdieu (1989), o autor afirma que “Se a relação entre significante e seu significado é resultado de um sistema de conveções sociais específico a cada sociedade e a momentos históricos específicos – logo todos os sentidos são produzidos no interior da história e da cultura” (livre tradução do autor) [2] (HALL, 1997, p. 32). 

Reiterando a importância de estudos que direcionem seus olhares, sob uma perspectiva critíca, para as problemáticas internas à representação, hooks (2019, p. 38) argumenta que “Um questionamento crítico implacável às vezes é a única prática capaz de perfurar a barreira da negação que os consumidores de imagens constroem para não ter que encarar o quanto o mundo real da criação de imagens é político – e que a política de dominação influencia a forma como a grande maioria das imagens que consumimos é elaborada e comercializada”. 

Ainda nesse sentido, todo produto cultural contém esse aspecto, mas é na televisão que ele encontra maior potencial de influência mútua. Conforme destaca Wolton (1996, p. 155), a televisão no Brasil é “fator de identidade cultural e de integração social “ assim como é “até hoje, o laço entre as classes sociais”. O autor também aponta que as telenovelas tem um papel importante no cenário nacional, conseguindo transgredir essas barreiras entre diversos indivíduos. Nota que “não é só a realidade que inspira as novelas; são também as novelas que influenciam a realidade por uma espécie de ida e volta entre ficção e realidade” (WOLTON, 1996, p. 163). 

Contudo, talvez seja no espectro da reality TV, e mais especificamente no caso brasileiro, o Big Brother que esses pontos possam encontrar sua potência maior. O programa reúne diversas caraterísticas, conforme já discutido, que o fazem tanto um laço social quanto uma metadiscussão intermitente. Discute-se sobre o BBB, seus arcos narrativos, mas também, sobre o que eles espelham: as identidades culturais e sociais, as visões sociopolíticas e as divergências entre estratos sociais. Nesse sentido, o programa se se situa num espaço privilegiado para sugerir – ainda que indiretamente – discussões de ordem política. 

BBB das políticas (ou políticas do BBB) 

A lógica do Big Brother pressupõe pelo menos três âmbitos distintos e complementares para que a narrativa se desenvolva. São necessárias às ações dos personagens – que com a encenação das suas vidas provém o núcleo da história; da produção – que intervém na criação de provas, na mediação através do apresentador e na edição; e do público – que se dispõe a participar ativamente através da votação. Nesse sentido, as ações tem, de certo modo, influência mútua. Aquilo que fazem os personagens implica no que será editado. Por sua vez, o que é editado tanto forma a visão sumarizada do grande público quanto se altera a partir das observações dos mais atentos e dos que assistem ao pay per view. E, mesmo confinados e sem informações, próprios participantes põem-se a pensar frequentemente sobre como estão sendo editados ou, então, lidos pela audiência. 


No cenário contemporâneo, os espectadores não se limitam ao simples ato de decidir o destino dos personagens através da votação. Sobre isto, Sigiliano e Borges (2017, p. 72) notam que “os comentários, que antes ficavam restritos à sala de estar, ao círculo de amigos, aos familiares e aos colegas de trabalho, são transpostos para as redes sociais e para os aplicativos de segunda tela, possibilitando novas apropriações, subversões e amplificações do watercooler”. Nesse contexto, o BBB20 obteve expressividade notável, com frequentes pautas nos trending topics do Twitter. 

Na vigésima edição, o maior arco narrativo surgiu com pautas feministas após declarações do participante Hadson Néry sobre um “plano” que envolvia tentar seduzir outras participantes que mantinham relacionamentos sérios fora da casa. A comoção interna, das mulheres que participavam da disputa, refletia a indignação do público preocupado com causas sociais. Dois participantes saíram indiciados ou processados por assédio, o segundo caso inclusive tendo o BBB, mencionado pelas vítimas, como uma força propulsora para fazer as denúncias. Além da narrativa das fadas sensatas, como foi denominada diversas vezes pela própria edição, pelos interagentes no Twitter e pela mídia, o Big Brother suscitou discussões acerca da interssecionalidade entre o movimento feminista e o movimento negro. Babu Santana, ator reconhecido nacionalmente pelo papel de Tim Maia, tornou-se peça chave dos questionamentos sobre o lugar que homens negros ocupam na sociedade em relação às mulheres brancas. Por outro lado, Thelma Assis, a ganhador e única mulher negra da casa, participou – mesmo confinada – de um extenso debate sobre as implicações sociais da conjuntura entre raça e gênero e de suas visões em relação às suas pares brancas. Além de todas essas questões, a política partidária, institucionalizada e mais sensível aos olhos, integrou, também o seio discursivo. Não só pela afirmação direita de deputados e senadores em apoio a determinados participantes, mas pelas correlações concebidas pelo público. 

Todas essas questões foram exaustivamente comentadas nas redes sociais. Não há uma única ação, dada a natureza do programa de ser exibido 24 horas por dia, que não seja passível de discussão, ainda que em escalas menores. Nesse estudo, focaremos em uma situação específica: a eliminação do arquiteto Felipe Prior, no dia 31 de março de 2020, que deu ao BBB o recorde mundial de participação do público em um reality show e suas repercussões relacionadas à política partidária nacional no Twitter. 

Estratégia adotada pelas duas torcidas com múltiplas janelas de votação abertas 

A dualidade expressa na nossa sociedade (ou polarização, como denominada em outros âmbitos) esteve intrinsicamente presente na edição 20 do Big Brother. Natural a televisão, que tensiona as relações entre a individualidade e a atomização, entre o particular e o geral, conforme discutido por Wolton (1996), esse aspecto se desenrolou durante toda a exibição. Em um primeiro momento, através do embate entre as pautas feministas e as ideologias dominantes, discutido com afinco por parcelas diferentes do público. Em outros, o racismo foi uma grande pauta que dividiu opiniões inclusive de sujeitos racializados ativamente envolvidos com a luta antirracista. Mas talvez seja no histórico paredão entre a cantora Manu Gavassi e Felipe Prior em que essa caraterística possa ser mais facilmente notada e discutida. Embora Mari Gonzalez também estivesse sujeita a eliminação, a influencer teve um número inexpressivo de votos, corroborando que a disputa localizava-se entre dois eixos, mesmo em um paredão triplo. 

Cada um dos dois personagens cativou a parte da audiência que lhes cabia. Por um lado, Prior foi enxergado como a persona mais autêntica da edição, tópico recorrente para determinar os vencedores, conforme discutido anteriormente. Além disso, sua permanência era vista como essencial para que a narrativa não se tornasse monótona à medida que grande parte dos conflitos, caraterística inerente a qualquer narrativa, estavam em sua órbita. O mago, como ficou conhecido por seus fãs, foi considerado um dos melhores jogadores por seu foco insistente na vitória. O arquiteto contou com o fandom de diversos jogadores de futebol como, por exemplo, Neymar e Gabigol. Richarlisson chegou a propor um sorteio de camisas de time em favor da permanência de Prior. A associação do participante ao universo do esporte foi tão grande que um meme, provavelmente, criado a partir do jogador português Cristiano Ronaldo, foi ressignificado na base de fãs do arquiteto. Mesmo o uso das palavras aponta nessa direção semântica: el mago joga y joga, se tornou o bordão da torcida. O deputado federal Eduardo Bolsonaro (PSL), figura da direita brasileira e filho do então presidente da República, Jair Bolsonaro, também expressou apoio direto, através de seu perfil no Twitter, no dia da eliminação. 

Meme do fandom de Felipe Prior com associação ao futebol  
Fonte: Twitter (2020). 

Manu, por sua vez, integrava o time das fadas sensatas que tinham por pressuposto a preocupação com causas sociais e, mais especificamente, o feminismo. Junto a outras integrantes, participou do arco de embate simbólico com Hadson Néry. Nesse sentido, ela conquistou uma outra parcela da audiência que se preocupava com a autenticidade sob um viés social. Para esses espectadores, a narrativa mais importante era garantir que o espaço da representação era utilizado em prol do bem comum e das lutas das minorias. Nesse lado, a sensatez era uma caraterística demarcada pelos fandoms. Em especial, sua amiga pessoal Bruna Marquezine, organizou mutirões de votos e chegou, até, a mobilizar o fandom brasileiro da cantora Taylor Swift com a mesma lógica de sorteios. Larissa Manoela, figura teen, e a YouTuber Kéfera também declararam apoio a Manu Gavassi no paredão em questão. A personagem reuniu o apoio dos mais jovens, millenials e da Geração Z, mas também representava o completo oposto do outro concorrente, assim como seu grupo, captando também outras parcelas do público e da sociedade. Fernando Haddad (PT), candidato de maior força da esquerda nas eleições gerais no ano anterior, apesar de não ter demarcado apoio a Manu e dizer sequer assistir ao programa, comemorou no Twitter a eliminação de Prior. 

Meme do fandom de Manu Gavassi indicando a rivalidade 

Todas essas divergências foram ostensivamente exploradas pelos dois fandoms, aumentando ainda mais essa perspectiva maniqueísta do paredão. Um tweet antigo de Manu Gavassi em que ela citava não gostar de futebol foi recuperado. A cantora adotou uma inovadora estratégia de marketing apresentando uma websérie cujos episódios em formato de pílula, disponibilizados nas redes sociais, de alguma forma, relacionavam-se com a narrativa do BBB. Utilizando esse recurso, a equipe da cantora postou dois vídeos em que ela cantava o hino do Corinthians e, depois, do Flamengo. Uma suposta rivalidade entre Marquezine e Neymar, que teria por base o relacionamento amoroso entre os dois, foi extremamente explorada no Twitter, ressaltando esse aspecto. 

Meme indicando rivalidade entre Marquezine e Prior que representa a dualidade entre as próprias torcidas 
Fonte: Twitter (2020) 

A polarização, nesse caso, pode ser observada sob todos os aspectos citados, mas a relação com a política partidária é notória. Além das demarcações ideológicas claras, corroboradas pelas postagens de políticos dos dois espectros, as manifestações desse cenário se expandiram para além das telas. Gritos expressando indignação com o Governo Federal foram ouvidos e documentados (tantos nas redes sociais quanto pela mídia) na noite de eliminação. No Twitter, o paredão suscitou discussões de diversas ordens. 

Interagente relaciona votação no Big Brother com Eleições Gerais 
Fonte: Twitter (2020) 

O tweet acima reflete sobre cenário distintos de votação, no Big Brother, a votação não é limitada, a torcida pode votar quantas vezes quiser conseguindo, desse modo, expressar sua capacidade de mobilização. Na política institucionalidade Brasileira, o voto é obrigatório e controlado a partir do Cadastro de Pessoa Física (CPF). Além disso, no âmbito partidário diversos dispositivos de controle precisam ser acionados para garantir que as eleições sejam legítimas e de acordo com a legislação como, por exemplo, a recente adoção de verificação biométrica. Em um espaço, vence a ideologia dominante, a que convença mais pessoas únicas, enquanto no outro sai vitorioso o lado que conseguir captar mais pessoas dedicadas a votar múltiplas vezes. 

Interagente relaciona poder de mobilização das torcidas com o poder de mobilização política 
Fonte: Twitter (2020) 

Neste segundo caso, a discussão se move justamente para o poder de mobilização. As questões aqui são múltiplas: se o apoio de uma ala política a um participante reflete a perda de sua força simbólica; se o âmbito da representação (da TV e do BBB) está relacionado a mudança na concepção ideológica da sociedade brasileira; e se é a televisão que influencia a realidade ou o oposto. Todos esses questionamentos – sem uma resposta óbvia ou simplória - surgem a partir das relações que são antepostas entre a performance no Big Brother e a realidade e são expressadas através do Twitter. 

Meme relaciona eliminação do BBB com processo de Impeachment 
Fonte: Twitter (2020) 

A imagem acima foi constantemente ressignifica e atualizada durante o BBB20. Nela estão Petrix Barbosa, Hadson Néry, Lucas Gallina, Guilherme Napolitano e Felipe Prior, o grupo que participou do embate em relação a estratégia de eliminação de mulheres a partir da suposta sedução. Conforme os participantes saíam do jogo, surgiam novas versões do meme que descoloriam o eliminado da semana. Na madrugada da eliminação de Prior, com um ciclo que se fechava para a parcela da audiência que torcia pela continuidade do outro aspecto narrativo, o meme é ressignificado apresentando o presidente da República, Jair Bolsonaro, como o próximo “alvo” dos fandoms. A associação direta das consequências de atitudes irresponsáveis dentro do programa (como as denúncias de assédio de Petrix e a renúncia em colaborar com as compras semanais de Lucas) com crimes de responsabilidade que podem ser cometidos pelo representante do mais alto cargo do Executivo e acarretar em uma espécie paredão institucional, o processo de impeachment. 

Interagente relaciona sensações advindas do entretenimento com a política partidária 
Fonte: Twitter (2020) 

Com as associações feitas e legitimadas pelas figuras políticas partidárias, o resultado do paredão foi considerado como a vitória do grupo oposto em relação às eleições gerais de 2019. No tweet acima, o interagente reage a permanência de Manu Gavassi comparando a sensação com a da conquista política institucional que almejava. A televisão é, também, um espaço multissensorial, assim como as expressões políticas. A partir da narrativa, as ansiedades, angústias e prazeres também são temas recorrentes das expressões dos interagentes. Nesse caso, há a suposição de que o sentimento de vitória (ou derrota) possa ser semelhante entre os dois âmbitos tão aparentemente distintos. 

Considerações finais 

Interagente relaciona resultado da eliminação do Big Brother com a realidade externa 
Fonte: Captura de Tela. Twitter. 

Discussões como a do tweet acima motivaram a reflexão teórica deste texto. Conforme discutido, a televisão tem um imenso poder que perpassa diversos aspectos da vida cotidiana e da sociedade. Na TV há possibilidade iminente de constituir um laço social, ao passo que reúne diversas concepções ideológicas no visionamento de um único programa; de reafirmar ou colaborar na reconstrução de dogmas, de aspectos identitários e morais; de suscitar discussões que vão ser levadas pro intervalo dos colégios, trabalho e, também, pras redes sociais. Em grande medida, a TV faz parte de uma estrutura, de um sistema, que vai ao – e, às vezes de – encontro de ideias enraizadas nas diversas formas de organização social. As sociedades tanto influenciam na programação – já que, de fato, por via de regra as ideologias dominantes estão mais presentes – quanto são influenciadas por ela a partir do impacto no público. A televisão, e todo o âmbito da representação, são parte de tecido social e da cultura. 

Nesse sentido, esta análise discorre sobre um recorte de percepções que refletem sob o papel da televisão e as relações do mundo das imagens, como dito por hooks (2019), com a realidade material e histórica. É claro, de todo modo, que nenhuma ação isolada é efetiva no todo. Nenhuma organela, sozinha, consegue penetrar todos os males de um tecido, nem mesmo do tecido social. No entanto, a TV está inserida nesse contexto e tem efeitos mais sensíveis do que – à primeira vista – é possível imaginar. 

Notas 

[1] In reality shows, the anonymous persons collaborate with television, they agree to give themselves in spectacle, either by replaying their lives, or by exposing themselves in the studio in front of the public. 

[2] If the relationship between a signifier and its signified is the result of a system of social conventions specific to each society and to specific historical moments – the all meanings are produced within history and culture. 

Referências 

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