Retrato de uma Jovem em Chamas e a subversão do olhar masculino


Em 2001, os seios de Angelina Jolie ocupam as telas de Tomb Raider. O ano é 2007, a câmera também percorre pelo corpo da Megan Fox em Tranformers. Já em 2015, o filme do momento é Esquadrão Suicida. E adivinha? Planos e mais planos da bunda de Arlerquina. Não precisa fazer um grande esforço para lembrar de personagens sexualizadas em filmes, séries e games. O nome dessa prática banalizada, do cult ao pop, tem nome e sobrenome: male gaze

Como já dá pistas, o termo cunhado pela crítica de cinema Laura Mulvey em 1975, male gaze ou olhar masculino explica a objetificação da figura da mulher na mídia. Laura argumenta no ensaio “Prazer Visual e Cinema Narrativo” que as mulheres nas narrativas clássicas são alvos, pois ao invés de serem donas de seu próprio olhar, são observadas através de uma perspectiva fetichista. Pense no filme Halloween (1978). Ao acompanharmos o psicopata Michael Myers, temos acesso a sua visão voyeurista de Laurie Strode, sua vítima. Ou lembre também do clássico Psicose (1960) em que o protagonista Norman Bates observa sua vítima se despir minutos antes de assassiná-la. Ops, spoiler. 

“Mulher” então, para uma cultura patriarcal, é classificado como um significante do outro masculino, presa a uma ordem simbólica que homens podem usar para fantasiar e para satisfazer suas obsessões por meio de um comando linguístico, ao impor a elas a imagem de mulher silenciosa ainda agarrada ao seu lugar de possuidora de significado, e não de criadora de significado (MULVEY, 1975, p.11). 

A problemática do câmeraman 

Um exercício rápido e prático: você consegue citar 5 diretoras de fotografia? Ficou difícil? Bom, até 2018, nenhuma mulher tinha sido indicada ao Oscar na categoria de fotografia. Em 2017, as mulheres representavam apenas 4% dos diretores de fotografia dos maiores filmes do ano. No Brasil, a situação também não anda muito favorável: de acordo com a Ancine, 7,7% dos longas-metragens lançados em 2016 foram fotografados por mulheres. Mas, afinal o que esses dados têm a ver com o male gaze

Quando Laura Mulvey escreveu seu artigo Hollywood era comandada pelo clube das bolinhas: de executivos a realizadores, de diretores à roteiristas. Os filmes de destaque majoritariamente eram sobre homens, fotografados por homens e voltados para o público masculino. Como revelam os dados já citados, até hoje a posição de direção de fotografia ainda é ocupada em sua maior parte por homens. Existem fatores estruturais que dificultam não apenas o acesso das mulheres a profissão, mas também a sua permanência. 

Nos primórdios do cinema, poucas mulheres eram contratadas devido ao peso dos equipamentos, entretanto mesmo com o avanço da tecnologia para ferramentas mais portáteis o preconceito velado se perpetua através da desconfiança e da invisibilização. Como explica a diretora de fotografia e pesquisadora Nina Tedesco para uma reportagem da revista TRIP, 

Rapidamente, as mulheres que se interessam pela profissão percebem que os diretores confiam menos nelas, que a equipe contesta mais o trabalho delas e que elas vão precisar brigar a vida inteira em desigualdade de oportunidades e sujeitas a assédio. Isso vai minando a profissionalização dessas mulheres na área (TRIP, 2018, Online)

O female gaze em Retrato de uma Jovem em Chamas 


O olhar exclusivamente masculino no roteiro, direção e fotografia pode resultar em visões limitadas da figura feminina, mas há mulheres na indústria para mudar esse cenário. Pode-se chamar de female gaze a arte que subverte esta predominância da perspectiva masculina no audiovisual. Partindo desse contexto, há uma obra que se destaca pela metalinguagem contida em seu enredo: Heloise é contratada para pintar um retrato de Marianne sem que ela saiba. Assim, a artista tem que memorizar as feições de Marianne pela manhã e finalizar o quadro pela noite. Retrato de uma jovem em chamas, lançado em 2019, é construído através do olhar feminino e feminista da diretora e roteirista Céline Sciamma, da diretora de fotografia Claire Mathon e de muitas outras mulheres que formam a equipe técnica do filme. 

Ao decorrer do filme, Heloise e Marianne compartilham olhares, se tornam próximas e desenvolvem uma admiração mútua. O quadro acaba sendo uma ação conjunta, reforçando a troca intelectual entre as duas. “Não há dominação de gênero, não há dominação intelectual e nem hierarquia social. Todo o filme é sobre igualdade. Todo o processo de reinventar a figura da musa, mostra que não há uma musa, mas sim a colaboração de mulheres se inspirando de forma recíproca” disse Sciamma para o canal TIFF. 

Com essa história em mãos, a cinegrafista Claire Mathon traz um ponto de vista sensível a narrativa: um olhar de contemplação e admiração, de igual para igual. Claire constrói planos sugestivos, sensuais e elegantes ao retratar as cenas de amor entre Héloise e Marianne, se afastando assim da visão fetichista encontrada em filmes como Azul é a cor mais quente, que possui uma longa cena de sexo frontal com ênfase no corpo das personagens femininas. 

O olhar 'masculino' procura devorar e controlar, e o olhar 'feminino' é mais um estado de espírito, onde a abordagem ao assunto e ao material é mais emocional e respeitosa ... eu tento abordar fotografar com uma sensibilidade particular, uma abertura à experimentação e uma propensão ao fracasso. Quero que a imagem ganhe vida e acho que a perfeição é chata. (Ashley Connor, The Miseducation of Cameron Post

A realidade é que não há apenas uma definição para retratar o que é o olhar feminino, visto que cada diretora vai ter a sua própria técnica, estilo e abordagem. Além disso, a história do cinema é saturada de imagens construídas e imaginadas por homens, enquanto o olhar feminino ainda é relativamente novo, está em construção e formação. Através de obras como Retrato de uma jovem em chamas podemos analisar, estudar e entender mais da experiência feminina no cinema e perceber que definitivamente não é o contrário do male gaze, ou seja, corpos masculinos sem camisa (eu sei que você pensou em Magic Mike). O female gaze tem sido usado para trazer perspectivas diversas e Retrato de uma Jovem em Chamas nos mostra como a vivência feminina por trás das câmeras, pode carregar complexidade e veracidade nas telas. 

Referências: 

MULVEY, L. Visual Pleasure and Narrative Cinema. InScreen, v. 16, n. 3 p. 6-18, 1975. Disponível em: <http://theslideprojector.com/pdffiles/art6/visualpleasureandnarrativecinema.pdf>. Acesso em: 24 abr. 2020. 


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