A representatividade negra e LGBT na série The Get Down

Lançada pela Netflix em 2016 a série The Get Down, teve sua primeira temporada dividida em duas partes, contando com um total de 11 episódios. Devido às questões orçamentárias acerca da obra, em 2017, logo após a liberação da sua segunda parte foi anunciado o cancelamento da produção. Ambientada na Nova York de 1977 a trama conta a história de como, à beira das ruínas e da falência, a grande metrópole deu origem a um novo movimento musical no Bronx. O diretor Baz Luhrmann (dos longas Moulin Rouge e O Grande Gatsby), trouxe autenticidade a sua narrativa ao contar com a ajuda de pessoas que viveram naquela época ou tiveram/têm influência no movimento. Como, por exemplo, o DJ Grandmaster Flash e o rapper Nas, - desempenhando um papel fundamental na hora de trazer a representatividade proposta. 

Em meio a um cenário repleto de drogas, criminalidade e pobreza, o telespectador é apresentado aos protagonistas, majoritariamente negros e latinos, que em meio ao caos do South Bronx buscam atingir seus sonhos. O arco principal tem como objetivo contar a história de Ezekiel (Justice Smith), que após a morte trágica dos pais é criado pela tia. O jovem possui talento para a poesia e constantemente é elogiado e incentivado por sua professora, que sempre o motiva a ter coragem. Ele é apaixonado por Mylene Cruz (Herizen Guardiola), uma garota que busca ser uma cantora de sucesso, mas é obrigada a viver com um pai extremamente conservador que a impede de seguir seus sonhos. Somos arrastados então para o romance dos dois, que vivem em constante dilema a respeito de suas escolhas, mas que estão sempre em busca de se tornarem maiores. 

A narrativa passa então a acompanhar Ezekiel até a formação do grupo Get Down Brothers junto a Shaolin Fantastic e os irmãos Dizzee (Jaden Smith), Ra-Ra (Skylan Brooks) e Boo-Boo (T. J. Brown Jr.), além da jornada de Mylene para se tornar uma cantora profissional de sucesso. 


O ESTEREÓTIPO E A FALTA DE REPRESENTATIVIDADE 

A mídia, assim como todo meio ou veículo de comunicação também é uma arma poderosa para abater outros meios e veículos e outros grupos (MCLUHAN, 1964). Nesse sentido, ela por interferir e influenciar a maneira como o público pensa e responde tanto socialmente quanto politicamente. É um modo de construir sentidos que influencia e organiza nossas ações e a concepção que temos de nós mesmos (HALL, 1992). Entretanto as mídias também são ferramentas poderosas na criação e proliferação de valores e estereótipos, que acabam caindo sob a sociedade como um padrão a ser seguido. O movimento negro e o LGBT são totalmente distintos, mas ambos buscam uma representação na mídia que não os ridicularizem ou caiam sobre um estereótipo extremamente preconceituoso que não se importa com o sentimento do público que aquilo atinge. 

De acordo com Berry (1980, apud RALEY & LUCAS, 2014) ao longo da história da televisão, o papel do negro passou por três representações: 1) a estereotipada (são pobres, não vão muito as escolas, geralmente são empregados ou filho deles), 2) a consciente (estão no elenco de apoio e possuem características extremamente positivas) e 3) a estabilizada (quando buscam criar uma imagem do negro que condiz com a realidade). E mesmo que atualmente exista essa procura de “quebra de estereótipos”, é raro nos depararmos com um personagem negro e LGBT, e quando aparece, não é de forma significativa. Como explicam Raley e Lucas (2014, p.14), 

Desde a década de 1960 até o presente, homossexuais, lésbicas e bissexuais foram retratados estereotipicamente como palhaços engraçados, bichas flamejantes, rainhas, fadas (...) criminosos, vilões, pessoas com problemas mentais, molestadores e vampiros; ou vítimas de violência, HIV/AIDS e gênero/transtorno de identidade sexual. 

Em relação ao estereótipo da comunidade LGBT, Kylo-Patrick R. Hart (2000) pontua que depois de sair do estágio de não reconhecimento, termos depreciativos como "homo", "fag", "fairy" e "pansy" se tornaram comuns em programas de entrevistas e séries estadunidenses. Este processo contribuiu para a criação de uma visão inferiorizada dos gays que é utilizada como entretenimento, “legalizando” assim um preconceito que se estende até os dias de hoje. Mas, de acordo com Gohn (2005, p.76), 

[...] novos movimentos sociais demandaram atendimento às suas especificidades culturais, o respeito às suas identidades e às suas diferenças, e políticas que considerem o lado subjetivo das ações humanas – seus desejos, sentimentos, sonhos e emoções e não apenas carências materiais; políticas que resgatassem a auto-estima dos indivíduos e o sentido de pertencimento a uma dada comunidade. 

Portanto, a luta pelo reconhecimento e pela representatividade agora pode ser vista diariamente através de movimentos, que lutam pelo reconhecimento de direitos sociais, culturais e civis, buscando dar voz àqueles que são excluídos e não se sentem parte dessa sociedade. E é fundamental para que o negro e o LGBT conquiste o seu espaço e resgate a autoestima que lhes foi tirada com tamanha brutalidade. 

CONHECENDO MARCUS “DIZZEE” KIPLING 

Interpretado por Jaden Smith, Dizzee - apelido pelo qual é conhecido, é o mais velho de seus irmãos Ra-Ra, e Boo-Boo. Um jovem negro e morador do Bronx, que assim como seus amigos está em busca de construir a sua própria identidade. Além de fazer música junto do grupo Get Down Brothers, o garoto tem um enorme talento para a arte e é um dos mais conhecidos grafiteiros de seu bairro. 


No grafite, Dizzee adota o pseudônimo Rumi411. Funcionando como seu alterego, Rumi411 é um alienígena que usa uma cartola e tem um objetivo bem simples: chegar até a ópera. Só que devido ao seu medo, ele nunca chega realmente lá porque sabe que, mesmo estando bem vestido, ele ainda irá aterrorizar todos os que estão presentes, e a partir disso, começará a ser perseguido. 

Quando olhamos no dicionário a palavra alienígena, os resultados são os mesmos: uma criatura de outro planeta. Isso reflete na personalidade de Dizzee, que o tempo todo não se sente pertencente ao padrão da sociedade, tanto por ser negro, pobre e artista - e ser perseguido pela polícia por conta de seus grafites, quanto pela sua sexualidade, que ainda é encarada por ele com estranhamento. A questão reflete também em suas artes, que sempre acompanhada de frases de efeito, pregam a liberdade e a quebra de regras. 

O personagem de Jaden Smith carrega então o enorme fardo de não se reconhecer na sociedade que está inserido. O tempo todo ele se priva de sua liberdade de expressão com medo da reação de seus familiares e amigos. Entretanto, o conflito interno dele passa a ir muito além de não fazer parte do padrão imposto pela sociedade como um todo. A comunidade negra também exerce um preconceito que, mesmo velado, impõe uma masculinidade exagerada aos homens, que acabam omitindo e repreendendo sua sexualidade. 

Homens negros gays ainda não se sentem pertencentes a um povo. Eles carregam o fardo triplo de serem negros, homens e gays. Eles são rejeitados por muitos negros e mal são tolerados por muitos homens brancos gays. Eles se preocupam que o ódio de outros homens negros direcionados a eles não mudará enquanto eles (homens heterossexuais) continuarem a acreditar que a identidade do homem gay subverte a masculinidade negra. Por conta disso, homens negros gays se sentem alienados da comunidade negra, da comunidade de brancos gays e da sociedade mais ampla. Essa alienação é a razão pela qual muitos deles repreendem e negam sua sexualidade, a omitindo de membros da família, amigos, e da vida pública (HUTCHINSON, 1999, p. 304, tradução da autora). 

Apesar de em um primeiro momento sua sexualidade não ficar explícita, logo somos apresentados a Thor, outro grafiteiro - que Dizzee conhece enquanto está pintando nos túneis. A todo momento ele aparece como um incentivo ao personagem para ir em busca da sua tão sonhada liberdade. Seja através dos grafites ou das próprias conversas, Thor está sempre encorajando o garoto a deixar o medo de lado e se tornar quem ele realmente é, e após dizer a frase: “Que nosso estilo selvagem veja luz algum dia”, que ele muda totalmente a vida do protagonista. 


A partir daí, ele frequenta uma ballroom e tem a possibilidade de conhecer toda a cultura em volta do movimento de drag queens, das houses, e do tão famoso voguing. E é quando ele toma coragem de beijar Thor e de entrar nesse “novo mundo”, que ele se liberta e começa a construir sua real identidade. 


O personagem Dizzee, não corresponde a nenhum dos padrões de negro e gay impostos. Apesar de ter pouco destaque na narrativa e algumas das poucas partes serem ocultadas como, por exemplo, a cena do beijo, ele não exibe um lado feminino nem uma masculinidade exacerbada que geralmente se estende através de personagens gays. E aí já entramos com a questão de que jamais devemos limitar o público LGBT somente a isso, representatividade importa e é ela que nos molda como seres humanos. A finalidade de expor todos os pontos acerca dos estereótipos criados pela mídia durante décadas foi justamente para se fazer perceber a importância que isso faz para aqueles que não se adequam aos padrões impostos. A forma como “minorias” sociais são representadas implicam diretamente na autoestima das pessoas que fazem parte desse ciclo. Portanto, deve-se ter certo cuidado ao criar imagens que futuramente, serão utilizadas como espelho. 

A escolha de The Get Down se fez justamente pela série resgatar a cultura negra no hip-hop, no disco, no grafite e no meio LGBT, trazendo de volta a representatividade que fora tomada pelos brancos anteriormente e mostrando como foi realmente o movimento que deu vida a tanta gente que já não tinha mais esperança em meio a falência do Bronx. Como é dito por Dizzee, na série: “Onde há ruína, há esperança para um tesouro”. 

REFERÊNCIAS 

RALEY, Amber B.; LUCAS, Jennifer L. Stereotype or success? Prime-time television's portrayals of gay male, lesbian, and bisexual characters. Journal of Homosexuality, v. 51, n. 2, p. 19-38, 2006. 

HUTCHINSON, Earl Ofari. Chapter 18: My gay problem, your black problem. In: CARBADO, Devon (Org.) Black man on the race, gender and sexuality: a critical reader. Nova York: NYU Press, 1999, p. 303-305. 

HART, Kylo-Patrick R. Representing Gay Men on American Television. The Journal of Men’s Studies, v. 9, n.1, p. 59-79, 2000. 

BIBIANO, Matheus. “Escolha o seu rótulo”: pensando masculinidades e sexualidades em Dear White People. Congresso TeleVisões – Niterói, RJ – 27 de outubro de 2017.Anais... Congresso TeleVisões, 2017. 

GOHN, Maria da Glória. Protagonismo da Sociedade Civil: movimentos sociais ONGs e redes solidárias. São Paulo: Cortez,2005. 

ROCHA, Karoline Almeida. O movimento LGBT e a teoria do reconhecimento de Axel Honneth. VII Jornada Internacional Políticas Públicas - UFMA - 2015.Anais...VII Jornada Internacional Políticas Públicas 


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