Crime e Família: A reivindicação do noir em Sharp Objects

Uma jornalista retorna à sua cidade natal no interior do Missouri para investigar um suposto assassino em série que teria matado duas garotas adolescentes. Além do crime, traumas de seu passado e de sua família pairam sobre ela, criando uma atmosfera pesada, claustrofóbica e sufocante. Essa é a premissa de Sharp Objects (HBO, 2018), série de temporada única inspirada no livro homônimo, de Gillian Flynn, lançado em 2006. A protagonista é Camille Preaker (Amy Adams), que apesar de buscar a verdade e a justiça no caso, está longe de ser uma heroína simpática. Lidando com problemas de alcoolismo, automutilação, os fantasmas da morte de sua irmã e vivendo uma vida degradante, a série é motivada a partir da perspectiva de uma anti-heroína, com vícios e virtudes. Figura esta que têm se tornado mais popular e recorrente nas produções audiovisuais contemporâneas.


A onda das narrativas centradas em anti-heróis, já rebatida em inúmeros suportes e variações, apresenta hoje reverberações específicas de nosso contexto social e histórico. Surgido justamente do intuito de tornar a trama mais complexa e sedutora ao público, que já se saturava de histórias maniqueístas e previsíveis, esse tipo de personagem se beneficiou com o avanço do tempo, uma vez que a popularização do acesso à tecnologia e o crescente consumo de produtos audiovisuais permitiram que a audiência aprimorasse sua capacidade de absorver enredos com informações mais intrincadas. De fato, as últimas décadas trouxeram à tona um novo paradigma do relato televisivo “[...] com a revisão conceitual dos formatos episódicos e seriados, um elevado nível de autoconsciência nos mecanismos de relatar e demandas por um espectador intenso em seu envolvimento e concentrado tanto na fruição diegética como no conhecimento forma” (MITTEL, 2012, p. 50). 

Como personagem complexo, o anti-herói, em sua essência, anseia por uma trama também complexa. Ao familiarizar-se com arcos seriados, intercalados a arcos episódicos ou não, o público permite às grandes produtoras lançarem séries que dão mais camadas a seus protagonistas, uma vez que sua história se desenvolve ao longo de toda uma temporada e suas ações se projetam nas tramas de outros personagens. Além da questão narrativa, mais dois fatores contribuíram para a popularização da figura do anti-herói na atualidade (GARCIA, 2016; CASTELLANO; MEIMARIDIS, 2018). A primeira sendo um reflexo do próprio contexto sociocultural da pós-modernidade, em que os indivíduos passaram a lidar com transgressões de valores morais de maneira recorrente; e a segunda sendo uma questão de mercado, em que canais fechados, na intenção de se distanciarem dos procedurais da televisão aberta a sua programação, investem em narrativas menos tradicionais e mais ousadas. 

Apesar de termos protagonistas de moral dúbia fazendo sucesso na TV desde The Sopranos (HBO, 1999), a aparição de personagens femininos em tais papéis foi tardia. De fato, a evolução da representação feminina em séries americanas se deu de maneira lenta (SEGGAR, 1975; ATKIN, 1991; LOTZ, 2001; 2006; CASTELLANO, MEIMARIDIS, 2018). Inicialmente, nas décadas de 1950 e 1960, de modo geral eram relegadas ao ambiente familiar - ou à procura de um marido - e às atividades domésticas. Na década de 1970 surgem novos modelos, como no programa The Mary Tyler Moore Show (CBS, 1970-1977), que trazem a “New Woman”: solteira, sem filhos, heterossexual, sexualmente ativa e que vai em busca de seu lugar no mercado de trabalho. Já nas décadas de 1990 e 2000, mais que apenas realização profissional, as personagens femininas tornam-se heroínas que buscam uma realização plena de suas vidas. 

Embora sejam perceptíveis alguns avanços, nota-se que as mulheres de destaque na ficção seriada acabavam sendo resumidas a uma espécie de padrão ou modelo, que não contemplava toda a extensão da audiência. E que, na década de 1990, quando enfim tornavam-se heroínas que iam em busca de seus próprios sonhos, os personagens masculinos abdicavam de suas posições de heróis e buscavam uma realização à sua própria maneira, seja ela moral ou não. 

Essa defasagem foi diminuindo a partir dos anos 2000, com personagens mais tridimensionais surgindo em contextos como, por exemplo, o de Weeds (Showtime, 2005-2012) em que a protagonista, Nancy Botwin, perde o marido e passa a vender maconha para sustentar sua família. Embora ela ainda seja uma mãe cuidando de seus filhos, papel tipicamente associado à mulher, ela buscou seus próprios meios, ainda que não convencionais, para fazê-lo. Tais situações tornaram-se cada vez mais frequentes, com séries trazendo mulheres não só mais complexas, mas também diversas. Isso em resposta a ampliação do debate sobre representatividade não só de mulheres, mas também negros, personagens LGBTTQ+, imigrantes, dentre outros, que ganhou muita força nos últimos anos com as redes sociais. 

Grupos que antes não possuíam espaço para determinarem suas demandas emergiram reivindicando mudanças e, diante dos números, as empresas passaram a incluir tais pautas ao planejarem suas criações. Essa segmentação possibilitou o sucesso comercial de produtos que, embora não sejam direcionados ao público em geral, se sustentam a partir de uma audiência específica (CASTELLANO, MEIMARIDIS, 2016). Se torna evidente, com isso, que a evolução da representatividade feminina - e por que não de toda a representatividade? - não acompanha exatamente a evolução da sociedade, mas do mercado. 

CAMILLE PREAKER À SOMBRA DO NOIR 


Originalmente datado das décadas de 1940 e 1950, o filme noir foi um gênero do cinema clássico posteriormente catalogado, tendo acontecimento de maneira “natural” no meio cinematográfico da época, com temas e recursos estilísticos que, ao serem analisados, foram percebidos em diversos filmes, gerando então a nomenclatura. 

De acordo com Mascarello (2006), o filme noir tem no crime seu elemento central, sendo uma problematização simbólica do mal-estar americano no pós-guerra, que trouxe desestabilização econômica e social ao passo que as mulheres começavam a desempenhar funções que, antes, apenas eram destinadas aos homens. Essa “[...] caracterização eticamente ambivalente da quase totalidade dos personagens noir, o tom pessimista e fatalista, e a atmosfera cruel, paranoica e claustrofóbica dos filmes” (MASCARELLO, 2006, p.181), seriam metáforas para a mentalidade desajustada e a reorganização social neste momento histórico. 

A reordenação social e a perspectiva fatalista são trabalhadas sob a perspectiva do homem, que ao ter que ceder espaço para as mulheres em postos de trabalho ou assumir suas posições em administrar a casa, terminou numa crise identitária. O “revigoramento noir do masculino é implementado também pela transgressão da construção clássica do próprio herói” (MASCARELLO, 2006, p. 183). Se antes, no Western, o protagonista era um homem capaz, invulnerável e onipotente; no noir o anti-herói, sintetizado na figura do detetive solitário, se apresenta quase que como o oposto, com traços de ambiguidade, derrotismo, isolamento e egocentrismo (KRUTNIK, 1991). 

Por outro lado, ao adotar uma perspectiva masculina, a femme fatale, figura feminina característica do noir, é percebida como independente e sedutora, mas passível de punição e desconfiança, esses dois últimos fatores trazendo de volta o equilíbrio perdido com a entrada das mulheres no mercado de trabalho. Em contrapartida, a mulher redentora, típica dos westerns, também está presente nestes filmes, aparecendo, entretanto, como evidência de um perigo da domesticação. 

Nesse contexto, podemos observar que Camille Preaker não se encaixa em nenhum dos dois perfis. Na verdade, a configuração da estética noir se aplicada à trama resulta em uma série de desconstruções. Angustiada, isolada, traumatizada, paranoica e desconfiada. Ao retornar à sua cidade natal, o papel que Camille assume é o do detetive. Embora não tenha uma moral clara e coerente, como jornalista, ela investiga o caso dos assassinatos e, ao entrar em contato com a atmosfera da cidade e com pessoas de seu passado, se vê em um ambiente claustrofóbico e cheio de tensão. Ela volta à casa de sua mãe, Adora (Patricia Clarkson) onde também conhece sua irmã mais nova Amma (Eliza Scanlen), com a qual nunca teve contato. Sua relação com ambas é tensa e desconfortável. Mesmo envolta por sua família e em sua cidade natal, a protagonista está sozinha e a série nos convida a esse clima de desconfiança que permeia todos os personagens apresentados em Wind Gap. A cidade, num contraste com a personalidade de Camille, é conservadora e moralista. Todos têm suas próprias opiniões sobre as mortes e sobre a vida alheia. 

Do ponto de vista estético, como coloca Mascarello (2006), o filme noir é bastante influenciado pelo cinema expressionista alemão e pela literatura policial. Narrativamente, é caracterizado por tramas complexas, com recorrentes usos de flashback, que funcionam para desorientar o espectador. Embora o corpus fílmico do qual surgiu o termo filme noir seja referente àquelas produções feitas nas décadas de 1940 e 1950, uma série de outros filmes posteriores a esta fase mantinham essa atmosfera, porém introduzindo novos temas, invertendo posições ou experimentando novas estéticas, como é o caso de Blue Velvet (David Lynch, 1986), que trata da investigação de um crime, porém num cenário colorido e aparentemente pacato do subúrbio americano. 


Sharp Objects faz uso dos flashbacks com maestria, intercalando cenas do passado e presente com rapidez, com muitas dessas cenas em detalhe - sem apresentar o contexto completo - e em cortes rápidos. A montagem transmite o clima de tensão da personagem ao se deparar com determinados gatilhos que fazem a protagonista relembrar o passado, quando se dá o uso dos flashbacks. Um ponto que torna o recurso ainda mais interessante é o fato de as memórias traumáticas de Camille serem da época de sua adolescência, mesma idade que sua irmã falecida tinha quando morreu e mesma idade que sua irmã caçula possui agora, de modo que até as atrizes se assemelham, tornando a linha de eventos mais desorientadora e sugerindo que algo do passado viria a se repetir. 

De maneira mais ou menos sutil, a série questiona a dominância presumida do homem sobre esse tipo de narrativa, seja por ações de Camille, por suas relações amorosas ou pelo próprio diálogo. Em uma cena com o xerife local Camille de fato verbaliza o questionamento de porque o assassino era presumido pela polícia como um homem, e não uma mulher. Por outro lado, mesmo sendo uma mulher independente com uma carreira consolidada, o crime que Camille investiga têm repercussões diretas em sua família e na relação com sua mãe e sua irmã. Aliás, a questão da maternidade é central na narrativa, que embora a utilize de maneira inteligente e mesmo questionadora, novamente associa a protagonista feminina à essa esfera da vida, que não necessariamente precisaria se fazer presente, principalmente quando estamos tratando de representatividade. 

Mesmo tendo avançado como sociedade em algumas questões feministas, grande parte da população ainda se sente ameaçada por tais ideias. As sete décadas que nos separam da época em que o noir atingia seu auge não foram suficientes para que a população, em toda sua extensão, tenha compreendido as pautas do movimento feminista, de forma que a desconfiança entre o masculino e feminino coexiste com essa busca por avanços. Podemos perceber isso na própria série, quando Camille, uma mulher emancipada e bem esclarecida, volta à sua cidade do interior e tem que lidar com moradores que não partilham das mesmas opiniões. 

Com tudo isso, podemos sugerir que a narrativa da atração faz uma reivindicação do universo noir para uma perspectiva feminina, trazendo uma representatividade de mulheres mais diversas e complexas nesse tipo de trama que, historicamente, tanto no caso das séries ou filmes policiais quanto no caso de enredos focados em anti-heróis, é pensada sob uma ótica masculina. 

Ainda assim, é interessante perceber como a série utiliza de elementos tradicionalmente masculinos, como o vício em álcool de Camille ou sua desatenção à vaidade. Existem críticas a construções como essas, onde para parecerem multifacetadas e profundas, as anti-heroínas adquirem características tipicamente masculinas. Mas Sharp Objects traz esses aspectos à personagem não apenas para torná-la mais densa. Tanto seu alcoolismo quanto seu modo de vestir com menos vaidade, ambos não associados geralmente ao comportamento feminino, têm uma razão de ser na série e são elementos fundamentais da narrativa que ajudarão a encaixar as demais peças fornecidas pela trama. 


Suas relações amorosas, seu modo de vida e mesmo o caminho que a série percorre com seu personagem, o de sua mãe e o de sua irmã trabalham na direção de representar não uma, mas várias mulheres, em posições harmônicas ou antagônicas, e que movem a trama a partir de suas vontades, suas ideias e suas ações. De fato, o chefe de Camille, seu padrasto, o detetive que investiga o caso e o xerife da cidade, principais personagens masculinos da série, assumem papéis completamente secundários diante de Camille, Adora e Amma, que, conforme descobrimos ao final, são as verdadeiras forças geradoras da trama. 

Podemos dizer que o crescente número de anti-heroínas no audiovisual seriado americano se deu por demandas sociais de representatividade e complexidade, porém apenas a partir do momento em que esta foi percebida como um mercado em potencial. Sendo assim, é importante que exista uma constante análise do que tem sido oferecido ao público a fim de verificar quais desconstruções vêm sendo feitas e se elas estão acontecendo de uma maneira adequada, evitando uma violência com grupos da sociedade ao criarem representações distorcidas e perpetuá-las na programação. Numa época em que publicidade e conteúdo tornam-se imiscíveis, temos que ser conscientes e críticos em nosso consumo, uma vez que é ele que determina muitas das direções a serem seguidas pela indústria cultural. 

REFERÊNCIAS 

ATKIN, D. The evolution of television series addressing single women, 1966–1990. Journal of Broadcasting & Electronic Media, v. 35, n. 4, 1991. DOI: https://doi.org/10.1080/08838159109364144. 

CASTELLANO, M; MEIMARIDIS, M. Mulheres Difíceis: A anti-heroína na ficção seriada televisiva americana. Revista Famecos, v.25, n. 1, 2018. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/view/27007>. Acesso em: 31 ago. 2019. 

______. Netflix, discursos de distinção e os novos modelos de produção televisiva. Contemporânea, v. 14, n.2, p. 193-209, 2016. Disponível em: <https://portalseer.ufba.br/index.php/contemporaneaposcom/article/view/16398>. Acesso em: 20 jun. 2019. 

GARCÍA, A. N. Moral Emotions, Antiheroes and the Limits of Allegiance. Emotions in Contemporary TV Series, Reino Unido, Palgrave Macmillan, 2016. DOI: https://doi.org/10.1007/978-1-137-56885-4_4. 

KRUTNIK, F. In a lonely street: Film noir, genre, masculinity. Londres: Routledge, 1991. 

LOTZ, A. D. Postfeminist television criticism: Rehabilitating critical terms and identifying postfeminist attributes. Feminist Media Studies, v. 1, n. 1, 2001. Disponível em: <https://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1080/14680770120042891>. Acesso em: 31 ago. 2019. 

______. Redesigning women: Television after the network era. University of Illinois Press, 2006. 

MASCARELLO, Fernando. FILM NOIR. In: MASCARELLO, Fernando (Org.). História do cinema mundial. Campinas: Papirus, 2006, p.177-188. 

MITTELL, Jason. Complexidade narrativa na televisão americana contemporânea. Matrizes, v. 5, n.2, 2012. Disponível em:  <www.journals.usp.br/matrizes/article/viewFile/38326/41181>.


SEGGAR, J. F. Imagery of women in television drama: 1974. Journal of Broadcasting, v.19, n.3, 1975. DOI: https://doi.org/10.1080/08838157509363787.


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