Anti-heroína: o desenvolvimento da personagem Mazikeen em Lucifer

Com o tempo, as séries que vinham sempre no mesmo modelo, protagonista bonzinho, antagonista mal, cansaram o público e os canais tiveram que abrir espaço para um novo tipo de protagonista. Com isso surgiram os anti-heróis, os escritores perceberam que o mundo é muito mais complicado que a divisão entre bem e mal. No início do século XXI foi possível perceber a lenta chegada das mulheres nesse mundo. Começaram a surgir personagens femininas mais complexas e que dividiam a opinião do público. Mas a recepção não foi a mesma, mesmo seguindo a mesma linha de criação do anti-herói a aceitação desse personagem, quando é interpretado por uma mulher costuma ser menor. Alguns homens, vendo mulheres ocuparem lugares que antes eram apenas deles, ou até mesmo, anti-heroínas agindo do jeito que um homem agiria, se sentem incomodados e costumam definir essas mulheres como arrogantes. 

A série Lucifer (Fox, 2016 - presente) se desenvolve em torno do seu personagem principal que dá nome a trama. A atração conta a história de como o filho de Deus que havia sido expulso do paraíso e mandado para governar o inferno, decide “tirar férias” dessa função e passar um tempo na Terra. Porém, Lucifer (Tom Ellis) não vem sozinho e traz Mazikeen (Lesley-Ann Brandt), um demônio acostumado a torturar almas no inferno e que agora tem a função de proteger o diabo durante suas aventuras na Terra, enquanto tenta se adaptar a esse novo mundo. 


Uma das funções do episódio piloto é apresentar o universo ficcional da série, isto é, os principais arcos e os personagens (SEABRA, 2016). No primeiro episódio de Lucifer, Mazikeen, também conhecida como Maze, aparece apenas três vezes em cenas muito curtas. A sua primeira aparição acontece no minuto 3:31 da trama, onde a mesma aparece servindo bebidas para o protagonista e conversando com ele, mas é rapidamente interrompida por um outro acontecimento, sua segunda aparição se estende por apenas uma fala e na terceira Maze aparece novamente atrás de um balcão de bar, servindo bebidas para Lucifer. O modo como a personagem feminina é apresentada no episódio piloto da série, ressalta a forma como as mulheres são colocadas na posição de inferior ao homem. Isso pode se explicar quando se percebe que ao longo dos anos, mesmo quando as séries eram escritas para serem protagonizadas por mulheres, suas vidas giravam em torno de homens. São poucos os casos que fogem a essa regra. 

Os episódios seguintes da atração focam em construir uma relação entre a detetive Decker (Lauren German) e Lucifer. Como consequência disso, Maze acaba existindo apenas como um enfeite sem sua própria história, sendo usada apenas para ajudar o público a conhecer cada vez mais o personagem principal, ou seja, todas as vezes que ela aparece são em diálogos com Lucifer ou ajudando ele em alguma situação. 

Entretanto, é importante lembrar que Maze veio de uma situação onde estava acostumada a servir ao seu chefe. Vivendo toda a sua vida no inferno castigando os seres ruins e obedecendo apenas uma pessoa, não é uma situação fácil se adaptar ao mundo normal. Quando Lucifer decidiu ir para a Terra, a personagem atravessou as portas do inferno junto com ele com o intuito de protegê-lo, mas diferentemente do resto do mundo, ela é um demônio sem alma, ou seja, sem capacidade de distinguir o certo do errado. 


Com isso, Maze começa a estranhar as mudanças de Lucifer, o fato de ele ter ficado segundo ela “mais fraco”, essa preocupação se desenrola por alguns episódios, onde as aparições dela começam agora a serem relacionadas com a necessidade de convencer Lucifer a voltar para o inferno. Nesse contexto o mesmo a personagem tendo um arco narrativo mais denso na trama, a sua existência ainda está relacionada com um protagonista masculino e a sua personalidade continua sem ser desenvolvida de maneira independente. 

Nota-se outro detalhe interessante sobre essa personagem, o fato de todas as suas sequências durante alguns episódios da trama se passarem dentro da boate do Lucifer ou na cobertura dele, o que reforça a questão da existência de Maze na história estar sempre ligada a um homem. De acordo com Castellano e Meimaridi (2018),

Este aspecto está relacionado com a falta de confiança que as emissoras estadunidenses possuíam no protagonismo das mulheres, por isso, mesmo quando elas ganharam o seu espaço, continuaram tendo suas vidas ligadas a um homem. 

A personalidade da anti-heroína de Maze começa a se desenvolver no quinto episódio da primeira temporada de Lucifer . Na cena quando o poder da personagem é demonstrado. No plot, sem nenhuma arma, ela consegue lutar com mais de dez pessoas armadas e vencer. Mesmo assim, essa evolução da personagem em direção a uma complexidade maior acontece lentamente, com suas características sendo exploradas aos poucos. 

Com o passar dos episódios, o público vai descobrindo outras perspectivas de Maze como, por exemplo, a sua liberdade sexual, ela se relaciona com diversas pessoas de ambos os sexos. Outro aspecto de Maze, que reforça a tridimensionalidade da personagem é a violência. Este ponto pode ser observado nos dez episódios iniciais da primeira temporada, podemos acompanhar sequência em que a anti heroína tortura um homem, coloca dois homens um contra o outro na intenção de se matarem e tenta convencer o Lucifer a fazer coisas ruins “voltando às suas origens”, entre outras atitudes duvidosas 

No décimo episódio, intitulado “Pops”, é possível perceber um desenvolvimento maior na vida pessoal da personagem, quando ela decide ir em uma terapeuta, Linda Martin, já conhecida na série por também atender Lucifer. Maze vai até ela para pedir ajuda com os seus problemas, nesse momento ela desabava sobre estar presa em um lugar que não queria estar, e sobre não poder sair dali. 

Ainda nesse episódio ela conhece Trixie, filha da detetive Decker, essa é a primeira relação de amizade que Maze constrói com um humano. Esse relacionamento pode ter sido um dos responsáveis pelo amor que o público desenvolveu por ela, ver como se dava bem com Trixie mesmo sem entender como lidar com crianças e sendo uma pessoa teoricamente “ruim” gerou uma boa aceitação nos telespectadores da série. 

De acordo com Smith (1995) essa identificação do público com o anti-herói não se desenvolve imediatamente, muito pelo contrário, é preciso primeiramente desenvolver o personagem, conhece-lo aos poucos. Nesses casos existe uma “aliança moral ambígua”, que é quando o telespectador conhece suas motivações, ações e comportamentos, responsáveis por levá-lo a essa aliança, ou seja, para que essa identificação aconteça, ele precisa primeiro conhecer o personagem, para entender suas características e até conseguir se ver em algumas de suas ações. 

Nos últimos episódios da primeira temporada da série é possível ver mais algumas ações duvidosas sendo tomadas por Maze como, por exemplo, quando ela começa a se relacionar com Amenadiel apenas com o intuito de descobrir se ele estava recebendo ordens de Deus para destruir a vida do irmão. Com o desenvolvimento desse relacionamento é possível perceber que ela começa a ter sentimentos por ele, mas mesmo assim a personagem, não esquece qual é o seu objetivo de vida e acaba se virando contra ele no intuito de proteger Lucifer. 


Na season finale da primeira temporada, Maze aparece pela primeira vez visivelmente perturbada com todos os seus atos. Apesar disso, quando ela precisou largar tudo que estava fazendo para mais uma vez tentar resolver os problemas do seu chefe não pensa duas vezes. Nesse episódio, ela se une a detetive Decker, com quem nunca se deu bem, para tentar achar Lucifer . Mais uma vez ela se vê sendo impedida pelos seus sentimentos quando Amenadiel, irmão de Lucifer (que ela tentou matar), se encontra em uma situação de vida ou morte. Nesse momento Maze abre mão de uma das únicas coisas que poderia levá-la de volta para o inferno, pois era o único jeito de salvar Amenadiel. 

Maze é uma personagem tridimensional, alguém que tentou aprender aos poucos como viver em sociedade e como entender os seus próprios sentimentos. Ao longo dos episódios é nítido o seu desenvolvimento e a sua reação aos acontecimentos, como a sua relação com Trixie. Uma personagem complexa, acostumada com a violência e responsável por diversas ações capazes de dividir a opinião do público, apesar disso, Maze conquistou o amor do público. 


Já quando se observa o modo como a personagem feminina é representada na na série, um ponto muito visível é a relação de Maze com Lucifer. Todas as suas ações durante a trama estão diretamente ligadas a ele. Até quando a personagem se desenvolve um pouco, a sua lealdade é sempre relembrada. Ela é perturbada por seus medos como, por exemplo, o de não se encaixar no mundo, nunca poder voltar para o inferno e o de perder Lucifer, esse último pode ser demonstrado quando eles brigam e ela não consegue pensar em outra coisa. Apesar de Lucifer tentar se mostrar fora dos modelos convencionais da TV aberta estadunidense a trama, acaba se encaixando em diversos padrões já vistos anteriormente em diversos programas. 

Referências 

CASTELLANO, M; MEIMARIDIS, M. “Mulheres Difíceis”: A anti-heroína na ficção seriada televisiva americana. Famecos, v. 25, n. 1,p.1-23,2018. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/view/27007>. Acesso em: 28 set. 2019. 

SMITH, M. Engaging characters: Fiction, emotion, and the cinema. Oxford: Clarendon Press, 1995.


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