Com a palavra, Mrs Maisel: o lugar da mulher na comédia televisiva

As mulheres podem ser engraçadas. Tá, isso pode parecer meio óbvio, mas quando se trata dos palcos cômicos nos anos 50, um espaço majoritariamente masculino, a presença feminina era (e ainda é) bastante subestimada. É dentro desse contexto desafiador que a premiada série de comédia The Marvelous Mrs Maisel (Amazon Video, 2017-atual) é ambientada. Em meio a uma Nova York nostálgica, a trama nos conta a história de "Midge" Maisel (Rachel Brosnahan), uma dona de casa (quase) perfeita, (mal) casada e com dois filhos pequenos nas costas. Tudo vai bem, obrigada, até que Mrs Maisel é abandonada pelo marido Joel (Michael Zegen) e tem que reinventar sua vida. Protagonista feminina, personagem forte, adaptações repentinas, isso te lembra algo? Sim, a mente brilhante por trás dessa história é a criadora de Gilmore Girls (The WB, 2000-2007), Amy Sherman-Palladino (Te desafio a acompanhar a legenda). 


Depois de algumas decepções, brigas com os pais e uns bons drinques, Midge sobe em um palco de stand-up e mostra a que veio: rir da própria desgraça. Mrs Maisel abala as estruturas do clube de comédia apenas desabafando sobre sua vida e, assim, chama atenção de Susie Myerson (Alex Borstein), a bartender do local. As duas mulheres unem suas forças e decidem trabalhar juntas: Mrs Maisel nos microfones e Susie como sua agente. É sempre bom lembrar que, embora o cenário esteja mudando nos últimos anos, não é tão fácil encontrar uma série protagonizada por uma mulher que tenha uma relação aprofundada com outra. Geralmente, personagens mulheres são recheadas de clichês e a rivalidade feminina é um desses. 

Todas essas relações entre mulheres, pensei, recordando rapidamente a esplêndida galeria de personagens femininas, são simples demais. Muita coisa foi deixada de fora, sem ser experimentada. E tentei recordar-me de algum caso, no curso de minha leitura, em que duas mulheres fossem representadas como amigas. [...] Vez por outra, são mães e filhas. Mas, quase sem exceção, elas são mostradas em suas relações com os homens.” (WOOLF, Virgínia. Um Teto Todo Seu. 1929) 


Meiga, (des)afiada e rindo da sua própria desgraça 

Apesar da vida privilegiada que leva, a carreira de Midge como comediante não é nada fácil. A personagem tem que se equilibrar em diversas tarefas e ainda lidar com o machismo estrutural de cada dia. Qualquer semelhança com os dias de hoje não é mera coincidência. Em diversos momentos da série, Mrs Maisel é subestimada pelo público e assediada por outros comediantes, como no episódio “A meio caminho do centro” (S02x02) em que a personagem vai se apresentar pela primeira vez em um clube e é recebida no palco por um homem da seguinte forma: "Temos uma comediante mulher hoje. Não fiquem muito excitados amigos, ela não tira a roupa. Preparem-se para rir de algo que o cara ao seu lado diga, porque não vou garantir Madge". Humor baixo e raso que daria inveja a qualquer Danilo Gentili. 

Segundo Kotthoff (2006), ser engraçada e deliberadamente boba foram consideradas formas inapropriadas de comportamento para as mulheres porque os códigos de conduta patriarcais associavam o feminino a modéstia e a beleza. Por isso, o uso do humor pelas mulheres tendeu a ser confinado na esfera privada, permanecendo invisível. Na série, muitos homens se sentem inseguros diante da autonomia e espontaneidade conquistada por Midge nos palcos, cujo objetivo maior deixou de ser brilhar apenas no ambiente privado de sua casa. 

“Homens em geral, acham que eles são os únicos que podem usar a comédia para fechar os vazios de suas almas. Eles correm por aí dizendo a todos que mulheres não são engraçadas. Só homens são engraçados. É meia noite de terça e o auge da noite deles é a chance de ver uma garota falhar". (Mrs Maisel) 

Mesmo que Midge seja vanguardista em diversos temas, ela não é anacrônica a sua década: reproduz as normas patriarcais. Isso fica evidente nos seus comentários gordofóbicos, na busca incessante pelo corpo "ideal” e na tentativa de se adequar às expectativas alheias. A autora Naomi Wolf, explica em seu livro O Mito da Beleza (1991), que dentro da sociedade patriarcal a identidade feminina deve ter como base a “beleza”, de tal forma que as mulheres permaneçam vulneráveis a aprovação externa. Nesse sentido, é importante ressaltar que no final dos anos 50, ainda não há um pensamento feminista consolidado, portanto, esse tipo de comportamento deve-se muito ao contexto social da época em que a série é ambientada. Ainda assim, a protagonista é uma personagem progressista, uma mulher independente e questionadora. Pronta para subverter qualquer piada amadora. 

Do drama a comédia: a representação feminina na ficção seriada contemporânea 

Diferentes tendências delineiam o retrato da mulher nas séries televisivas contemporâneas (ROVIROSA, 2014). Como herança das mudanças sociopolíticas das últimas décadas, observamos a incorporação televisiva da mulher no âmbito profissional (The Closer, The Fall, Grey’s Anatomy), bem como a representação de diversas formas de sexualidade (The L Word, Queer as Folk), e de novos modelos de família (Gilmore Girls, Parenthood, Mad Love). Na comédia, podemos citar séries que apostam em formatos inovadores e protagonistas fortes como, por exemplo, Fleabag (Amazon Video, 2016-2019) e Russian Doll (Netflix, 2019-atual) - ambas produções foram criadas por mulheres. 

Em contrapartida, há também representações rasas de personagens femininas, construídas a partir de estereótipos como a sexualização da mulher, muito comum em sitcom, (How I Met Your Mother, The Big Bang Theory), a mulher preocupada unicamente com seu aspecto físico, com objetivo de encontrar um “bom partido” (Privileged, Hellcats), e as mulheres que se odeiam (Gossip Girl). Ocorrem também casos de personagens femininas relegadas a papéis de submissão, como nas séries de anti-heróis em que o único propósito da mulher é ser a sombra de seu companheiro (Prison Break, Sons of Anarchy). 


Junto com The Wire, The Sopranos define um modelo para TV de qualidade que igualava profundidade e substância a características masculinos problemáticas, energia masculina agitada, lutas de poder e demonstrações regulares de violência altamente realistas: pense em Dexter, Breaking Bad, Sons of Anarchy. Não é coincidência que esse tipo de exibição fosse invariavelmente dirigido por um homem, para quem o turbulento anti-herói na tela frequentemente parecia ficção como um substituto da imagem espelhada. A mulher permaneceu como figura secundária nesses psicodramas masculinos, e as executivas de programas de TV que ansiavam por criar dramas com um tom menos masculino se viram frustradas. (PRESS, 2018, p. 76) 

Sim, de uns tempos para cá, temos acompanhado a ascensão de protagonistas femininas, bem como o aumento considerável de mulheres em funções executivas, ou seja, mulheres narrando histórias de outras mulheres. Isso deve-se muito aos movimentos de denúncias sexuais como o #MeToo, além do engajamento da luta feminista por uma representação justa das mulheres em todas as áreas da sociedade. Entretanto, vez outra, observamos produtoras e canais de streaming se apropriando desse movimento como narrativa comercial. Por isso é fundamental refletir: até que ponto esses produtos são genuínos? 

Por exemplo, a série brasileira Coisa Mais Linda (Netflix, 2019-atual), que possui a mesma atmosfera cinquentista de Mrs Maisel, faz um forte apelo “Girl Power”. Entretanto, a trama perpétua os mesmos clichês que diz tanto combater: rivalidade feminina, arcos dramáticos atrelados a personagens masculinos, cenas de nudez despropositadas e personagem negra pouco construída. Em contrapartida, The Marvelous Mrs Maisel ri na cara dos clichês com deboche e sofisticação. Ao comparar a ficha técnica das duas produções podemos analisar que na série estadunidense boa parte da equipe é formada por mulheres, já em Coisa Mais Linda apenas um episódio é dirigido por uma mulher. Dentro desse contexto, é de extrema importância que as mulheres assumam o protagonismo além das telas, uma vez que a vivência feminina tem sido contada e dirigida - de maneira rasa - por homens em boa parte das produções. 

Não basta apenas colocar uma mulher em cena. Queremos protagonismo, relações aprofundadas, diálogos criativos, personagens independentes e tramas diversas. Queremos representação por trás das câmeras. E isso, The Marvelous Mrs Maisel nos dá. Uma série que é difícil dizer não. 


Agora, pensem nisto. Comédia é abastecida por opressão. Pela falta de poder. Por tristeza e decepção. Por abandono e humilhação. A quem diabos isso descreve melhor do que as mulheres? Julgando por esses padrões só mulheres deveriam ser engraçadas! 

Com a palavra, Mrs Maisel. 


Referências 

BORE, Lise. (Un)funny women: TV comedy audiences and the gendering of humour. Birmingham City University. 2015. 

PRESS, Joy. Stealing the show: How women are revolutionizing television. Nova York: Atria Books, 2018. 

ROVIROSA, Anna. O tratamento da mulher nas séries televisivas norte-americanas. Contemporânea, v. 12, n.1, p. 234-260, 2014. Disponível em: <https://portalseer.ufba.br/index.php/contemporaneaposcom/article/view/8963

WOLF, Naomi. O Mito da Beleza. Rio de Janeiro: Editora Rosa Dos Tempos, 2018. 

WOOLF, Virgínia. Um Teto Todo Seu. Tordesilhas, 2014. 


0 Comentários