A comédia dramática de BoJack Horseman

As séries de comédia na televisão estadunidense seguem, na maioria dos casos, o formato sitcom. O nome do formato tem origem no termo situation comedy (traduzido para português como comédia de situações). A sitcom é originária do rádio e tem como objetivo “[...] retratar com humor situações que poderiam ser vividas no cotidiano doméstico ou profissional de qualquer pessoa [...]” (SEABRA, 2016, s/p). Sua duração média é de 22 a 24 minutos e, normalmente, possui personagens fixos com personalidades bem definidas (SEABRA, 2016). 

De acordo com Seabra (2016, s/p), os tipos presentes nas sitcoms “[...] reagem com humor uns aos outros e às situações do dia a dia, em episódios, na maior parte, fechados em si mesmo, mas com características, situações e piadas que se tornam recorrentes e características daquela série com o passar do tempo”. Ou seja, nesse tipo de gênero, as narrativas são, majoritariamente, episódicas. O autor ainda pontua que as comédias se passam em um dos seguintes ambientes, podendo ocorrer, também, combinações entre eles: “[...] a casa da família (e família estendida), o local de trabalho ou o grupo de amigos”. O primeiro aborda, com humor mais leve, o dia-a-dia de núcleos familiares; o segundo trata da rotina de trabalho, com a frequente presença de “[...] colegas loucos e os mal-entendidos profissionais [...]”; já o último, também chamado de hangoutcomedy, os amigos passam por variadas situações, sempre se encontrando em um local significativo. Seabra (2016, s/p) observa que 

Enquanto as comédias familiares muitas vezes (mas não necessariamente) tendem a reforçar convenções sociais e/ou aquelas próprias da sitcoms, as comédias hangout têm um caráter muitas vezes oposto a isso, buscando justamente a subversão e o ridículo dessas convenções – uma maneira óbvia de se identificar com públicos mais jovens e, em teoria, mais rebeldes. A intenção é quase sempre a de distorcer valores disseminados pela tradição do pais, pela publicidade e por toda a cultura que veio antes. Além disso, a comédia hangout representou uma ruptura de estilo formal com os dois modelos anteriores ao possibilitar uma quantidade maior de situações em um mesmo grupo, quando faz convergir os ambientes de amigos, família e, ocasionalmente, também, trabalho [...]. 

Existem também outros tipos de sitcoms, entre elas a animada, nascida nos anos 1960 com The Flintstones e The Jetsons. Esses tipos de animações, normalmente, são voltados para o público adulto e exibidos no horário nobre da televisão (SEABRA, 2016). 

O drama na TV, segundo Seabra (2016), é tudo aquilo que não é comédia, independentemente do (sub)gênero em que está inserido. Esse gênero se caracteriza por “[...] retratar um desenrolar de conflitos humanos com um tom mais próximo da seriedade, seja com evidente realismo ou não” (SEABRA, 2016, s/p). Assim como as comédias, são exibidas semanalmente, mas possuem duração superior a quarenta minutos, podendo, em alguns casos, principalmente na TV paga, chegar ou superar a duração de uma hora. 

Diferente das comédias, que são mais acessíveis a todos os públicos, os dramas são direcionados a públicos específicos. Desse modo, por mais que o telespectador se interesse pela premissa principal da narrativa, ao assistir ao conteúdo ele pode não gostar do modo como ela se desdobra. De acordo com Seabra (2016, s/p), isso acontece porque ou a série é realmente ruim ou “[...] aquele programa talvez tenha sido concebido tendo em mente outro público e uma abordagem completamente diferente da que você esperava”. Em resumo, de acordo com Seabra (2016, s/p): 

Um drama será a combinação de suas linhas gerais de formato com a sua subespécie pretendida (médica, policial, familiar ou algum dos tipos vistos antes) e depois com o seu apelo bem específico dado pelos personagens, pela ambientação no tempo e espaço, recursos de estilo, escolha da narração e outros aspectos bem particulares que vão pela inspiração de cada criador. 

Os dramas são sempre considerados o carro-chefe da programação de uma emissora (SEABRA, 2016). Assim, 

Sempre que se vai discutir academicamente o status de arte na televisão, ou um tópico como a evolução da narrativa ou as diferenças e semelhanças entre a TV e o cinema, por exemplo, as pessoas tomam como exemplos as séries dramáticas, imediatamente desconsiderando as sitcoms. É também por elas que o público avalia o “peso” dos canais em comparação com seus pares e o grau de investimento que cada um faz em dramaturgia dita “séria” (SEABRA, 2016, s/p). 

Desse modo, por mais que uma comédia faça sucesso maior do que uma série de drama, a última será considerada mais importante, devido à “seriedade” com que trata seus assuntos. Entretanto, apesar de todas essas distinções, o que se vê hoje é uma imbricação de gêneros e formatos, “[...] que produzem estruturas híbridas que deslizam entre as tipologias genéricas tradicionais [...]” (VIEIRA, 2014, p. 4). 

A vida de um cavalo 

BoJack Horseman (Netflix, 2014- atual) é uma série de animação para adultos criada por Raphael Bob-Waksberg e estrelada pelo ator Will Arnett. A trama é exibida mundialmente pelo serviço de streaming Netflix e cada episódio tem duração média de 25 minutos. 

Na trama, BoJack Horseman era o protagonista da famosa sitcom dos anos 1990 chamada Horsin’ Around. Passadas décadas da série, o cavalo vive em Hollywoo (localidade baseada no distrito de Hollywood, em Los Angeles nos EUA), “[...] não faz mais sucesso, [...] reclamada de tudo e veste suéteres coloridos” (IMDB, 2019, on-line). O protagonista, agora, busca recuperar sua relevância de diversas formas. 

A série se passa em um mundo onde animais antropomórficos e humanos vivem em harmonia. São personagens do núcleo principal, além de Horseman (Figura 1): o humano Todd Chavez (Aaron Paul), que divide a casa com BoJack; o cão-ator Sr. Peanutbutter (Paul F. Tompkins), protagonista de uma série semelhante a Horsin’ Around, na mesma época; a humana Diane Nguyen (Alison Brie), escritora-fantasma da biografia do protagonista; e a gata Princesa Carolyn (Amy Seradis), agente de Horseman. 


Acompanhando a história de BoJack Horseman, é possível perceber diversos aspectos de sua personalidade: o cavalo é egoísta, sofre com a decadência de sua carreira e relacionamentos amorosos e familiares, é alcóolatra, usuário de drogas e, claramente, padece de um quadro depressivo. A autodepreciação também é um hábito recorrente do personagem. 

Tomando como base o episódio proposto para análise (S05E06: Churros Grátis), é possível perceber alguns aspectos que demonstram o sofrimento do personagem. Logo na primeira sequência, temos um vislumbre da infância do cavalo. Na cena, o pai de BoJack, de carro, busca o protagonista no futebol. No caminho, o progenitor reclama da esposa e do próprio BoJack de forma bastante ríspida, o tratando como “fábrica de barulho e meleca” e dizendo que seu cérebro é “frouxo e burro”. É possível perceber na sequência que o protagonista fica triste e incomodado com as falas do pai, que tem medo e se sente intimidado de estar próximo dele, já que está sempre desviando o olhar e chega a se encolher em determinado momento (Fig. 2) 

BoJack e seu pai. 

O restante do episódio se passa em um funeral, supostamente da mãe do protagonista – no final descobre-se que ele entrou na sala errada –, onde este faz um discurso (Fig.3). BoJack inicia sua fala dizendo que uma atendente de uma lanchonete o havia perguntado se seu dia estava sensacional e ele havia dito que não, afirmando que sua mãe havia morrido. A atendente começa a chorar e ele é recriminado pelas pessoas que estão atrás dele na fila. A funcionária o oferece churros grátis pelo mal-estar causado e Horseman reflete que ninguém diz que quando sua mãe morre, você ganha churros grátis. Ele também reclama que, em outras ocasiões, é obrigado a dizer que está bem só para não parecer negativo – quando, na verdade, gostaria de dizer que estava uma merda (sic). 

BoJack faz discurso em velório. 

Quando efetivamente começa a falar sobre sua mãe, BoJackHorseman tenta fazer gracejos, pedindo para ser acompanhado por um músico e fazendo trocadilhos com a morte da mãe, com o fato de ela ser uma égua e fingindo conversar com ela pedindo conselhos sobre o que dizer. Logo em seguida, diz frases que demonstram que sua relação com sua mãe não era boa. Pede para que ela bata duas vezes no caixão, caso se orgulhe dele ou queira que fique quieto e afirma que é ótimo estar numa sala com a mãe e poder ficar falando sem ela mandar que ele cale a boca ou mande fazer um drinque. Também pede desculpas ironicamente pelo caixão estar fechado e afirma que este era um desejo, mas como ela estava morta, ninguém ligava; e reclama que ela nunca entendeu suas piadas. 

O cavalo segue sua fala, contando histórias e fazendo observações sobre como a mãe o tratava. Enfim, chega à conclusão de que a mulher que a atendente da lanchonete, ao oferecer os churros grátis, teve mais compaixão por ele do que sua mãe em toda a sua vida, e que é bom a mãe estar morta porque pode ter a certeza de que é o único com quem pode contar. Horseman utiliza-se do discurso como um desabafo sobre o relacionamento com seus pais e como sofreu na vida por conta dele. 

As piadas, as cores vivas e o próprio recurso da animação, constantemente ligado a produções lúdicas e leves, bem como o tempo de duração dos episódios e o enredo da série em si, fazem com que BoJack Horseman seja classificada como uma comédia. Entretanto, são inúmeros os momentos em que elementos dramáticos são inseridos na animação. Isso se dá, principalmente, por meio da figura do protagonista, através de diálogos e monólogos densos e filosóficos. Temas normalmente não vistos em comédias também são retratados na série, tais como doenças psicológicas, suicídio, vício em drogas, assédio sexual, separação e aborto. 

Essa mistura entre elementos de dois gêneros é reflexo da popularização das narrativas complexas. Os elementos de comédia e drama presentes na série fazem com que seja atingido um público específico, que busca produções que abarquem aspectos de ambas as categorias. Seabra (2016) propõe chamar esse tipo de série como dramédias ou sadcoms. Segundo o pesquisador essas séries representam uma ruptura com o gênero e estão na “[...] linha de frente das séries de meia hora [...]”, focando menos na piada momentânea e investindo nas situações a longo prazo (SEABRA, 2016, s/p). 

Assim, BoJack Horseman, ao se estabelecer como uma dramédia, apresenta-se como uma alternativa às comédias sitcoms comuns – e, até mesmo, aos dramas propriamente ditos – a espectadores exigentes que buscam por esse tipo de conteúdo híbrido. 

REFERÊNCIAS 

IMDB. BoJackHorseman. IMDb, 2019. Disponível em: <https://imdb.to/2RwHSOy>. Acesso em: 25 jun. 2019. 

SEABRA, Rodrigo. Renascença: A série de TV no século XXI. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. 

VIEIRA, Marcel. Dramaturgia seriada contemporânea: aspectos da escrita para tevê. In: Lumina, v.8 n.1, jun. 2014. Disponível em: <http://bit.ly/2LuQKEb>. Acesso em: 19 jul. 2019.


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