Male Gaze: o que fazer a partir do seu conceito

Bell Hooks, autora e teórica feminista, discute em seu texto The oppositional gaze (Black Looks: Race and Representation, de 1992) sobre a importância do olhar como uma arma política. A autora tece uma analogia com a relação entre pais e filhos. Segundo Hooks, os seres humanos aprendem desde muito cedo que existem formas certas e erradas de olhar. 

Com a finalidade de elucidar tal fato, a autora cita duas ocorrências cotidianas: os responsáveis pela educação de qualquer criança ao redor do mundo dizem “não olha assim pra mim”, quando o olhar infantil é de desdém durante uma bronca e, também, falam“olha pra mim quando estou falando com você” quando a criança não dá importância a um diálogo. Além dessa perspectiva, a autora investiga a importância social do olhar, através da exemplificação das punições que os negros escravizados que recebiam apenas por olharem “errado” para seus proprietários. 

Já em 1972, o escritor e crítico de arte, John Berger discorreu em sua obra WAYS OF SEEING sobre a relevância das imagens. Berger considera que uma imagem fotográfica não é o produto puro da atividade de uma máquina, mas sim um recorte selecionado pelo fotógrafo, isto é, essa escolha é feita dentre uma infinidade de cenários possíveis. Assim, a fotografia revela a visão do fotógrafo sobre os mais diversos aspectos existentes no mundo. Seguindo essa lógica, as imagens estáticas ou em movimento representam formas de ver, seja pela escolha do que será representado ou pela escolha do modo como aquilo será representado (enquadramento, iluminação, foco, planos, e etc.). 

Berger (1972) examina as formas de ver dentro das artes visuais e chega à conclusão que os homens observam enquanto as mulheres são observadas, ou seja, a figura feminina acaba sendo transformada em um objeto e como tal em um sonho de consumo. Dentro da sua obra, o autor cita que nas pinturas europeias feitas a óleo, na categoriadefinida como“nu”, a mulher é o objeto mais representado. O cerne da questão para entender esse fato, de acordo com o intelectual, é que os artistas homens gostam de observar e apreciar mulheres sem roupa. No entanto, para atenuar a culpa desse prazer,tanto do artista quando do espectador, nas pinturas clássicas era comum que as mulheres nuas fossem retratadas com espelhos, obviamente a finalidade era de conferir vaidade para figura pintada. 

Sob essa ótica, a mulher se encontra disponível para ser olhada e admirada, ela atua como atriz conivente com o processo da sua objetificação, que visa em primeira instância o prazer masculino. Com os passar dos séculos, oespectador consolida a bagagem que carrega consigo sobre tal questão e, por conseguinte considera que a mulher é culpada por todo o prazer sentido por ele, uma vez que a mesma é bela, vaidosa e pecadora. A vaidade do objeto apreciado exime o espectador de toda e qualquer culpa. Berger (1972) ainda define que o espectador ideal deste cenário é sempre um homem. 

Em 1974, Laura Mulvey, crítica cinematográfica e feminista britânica, denomina essa forma de representação da mulher na mídia, feita para agradar o espectador ideal, de “Male Gaze”. Laura estuda esse olhar masculino partindo de uma perspectiva freudiana, cujo desejo está envolvido diretamente com o processo de olhar. De acordo com ela, Hollywood conseguiu codificar o erótico visualmente dentro da ordem patriarcal na qual estamos inseridos, a indústria do cinema descobriu como manipular de forma engenhosao prazer visual. 

O olhar sobre a mulher é tanto bisbilhoteiro quanto controladore como existe um desiquilíbrio de poder entre os gêneros na sociedade, o olhar dominante é o masculino, essa observação erótica projeta suas fantasias sensuais no corpo feminino, esse por sua vez deve ser moldado para agradar a estética desse desejo.Dessarte, no papel tradicional para mulheres na mídia, o exibicionista, a aparência feminina é trabalhada para criar um forte impacto erótico, Mulvey (1974) nomeia tal processo de “to-be-looked-at-ness” (que pode ser entendido como uma espécie de licença para que o espectador possa objetificar e desejar sexualmente a mulher). 

A obsessão da arte pelo nu feminino é tão notável que o grupo Guerrilla Girls, formado de maneira anônima por artistas feministas em Nova York em 1985, com o objetivo de combater o machismo no mundo da arte na linha de frente, levantaram em 1989 a questão: “As mulheres precisam estar nuas para entrar no Met. Museum?”. Essa intervenção foi motivada pelos seguintes dados: no Metropolitan Museum of Art, um dos maiores e mais visitados do mundo, menos de 5% de artistas da seção de arte moderna eram de mulheres, mas 85% dos nus retratam figuras femininas. Esse olhar patriarcal contaminou a construção social e perdura de forma insistente nas produções artísticas, dentro dessa realidade inclui-se o audiovisual consumido por todos nós. 

Subversão 

Exemplos de Male Gaze pipocam a todo instante nos produtos midiáticos que temos contato, a ideia é justamente mostrar algo que subverteu esse olhar e alcançou sucesso entre o público, além de elogios dos críticos mais ácidos e exigentes da Academia. O nome deste clássico é: The Silence of the Lambs (1991). O filme arrematou 5 das 7 estatuetas as quais concorreu, dentre elas a de melhor filme. 


Em The Silence of the Lambs, Jodie Foster interpreta uma protagonista, que apesar da inexperiência e da pouca idade, consegue trabalhar na investigação de assassinatos cometidos por um serial killer. Vale a pena lembrar que para isso ela recebe pistas e orientações do sanguinário e aterrorizante Hannibal Lecter. O roteiro do filme não é construído a partir da beleza ou da sensualidade da policial, o que mais importa para a construção do arco narrativo são a coragem, a persistência e a inteligência da Clarice–a jovem agente do FBI. 

No entanto, o diretor Jonathan Demme escolheu usar nos momentos de maior tensão da trama a câmera subjetiva, com a finalidade de mostrar como Clarice se sente observada e, muitas vezes, incomodada dentro das atividades que desempenha como agente policial, uma vez que a presença feminina é reduzida dentro do FBI. Isso a deixa vulnerável dentro daquele universo machista e, exatamente, por isso ela precisa mostrar toda sua coragem, força e determinação. 

Como consumidores e também produtores de audiovisual nosso papel passa por interrogar, revisar e reinventar. Em pleno século XXI seria ingênuo interpretar um produto, seja ele puramente artístico ou para entretenimento, apenas pelo viés de seus idealizadores. O processo de antropofagia consiste em ter contato com a produção, absorver o que reflete nosso desejo para a sociedade e “vomitar”, ou seja, jogar fora tudo aquilo que não nos acrescenta ou não nos toca como um todo. A partir dessa postura, poderemos, quem sabe, construir uma sociedade em que a mulher não seja apenas um objeto para mera apreciação. 

Referências: 

BERGER, J. WaysOfSeeing.Penguin: United Kingdom, 1972. Disponível em: <http://waysofseeingwaysofseeing.com/ways-of-seeing-john-berger-5.7.pdf>. Acesso em: 30 jun 2019. 

GUERRILLA, G. GUERRILLA GIRLS: gráfica, 1985-2017. In MASP, 2012. Disponível em: <https://masp.org.br/exposicoes/guerrilla-girls-grafica-1985-2017>. Acesso em: 30 jun 2019. 

HARRIS, T; TALLY, T. The SilenceoftheLambs. InIMDb, 1991. Disponível em: <https://www.imdb.com/title/tt0102926/>. Acesso em: 30 jun 2019. 

HOOKS, B. The Oppositional Gaze Black FemaleSpectators. In Black Looks: RaceandRepresentation. p. 115-131, 1992. Disponível em: <http://criticaltheoryindex.org/assets/hooks%2C-bell_the-oppositional-gaze-black-female-spectators.pdf>. Acesso em: 30 jun 2019. 

MULVEY, L. Visual PleasureandNarrative Cinema. InScreen, v. 16, n. 3 p. 6-18, 1975. Disponível em: <http://theslideprojector.com/pdffiles/art6/visualpleasureandnarrativecinema.pdf>. Acesso em: 30 jun 2019.


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