Além da atuação: o protagonismo feminino no processo de criação das ficções televisivas contemporâneas

As narrativas ficcionais televisivas apresentam um diálogo direto com mudanças sociais e culturais. A ficção é uma representação a partir de um recorte, geralmente, do criador da história. Ao se pensar em mulheres, o recorte foi, por muito tempo, feito a partir da visão de homens - e ancorado neles. A submissão feminina é uma temática delicada que só durante a segunda metade do século XX foi colocada em questão. Nas décadas de 60 e 70 as mulheres conquistaram espaços e um controle sobre seu próprio corpo jamais visto anteriormente. Movimentos feministas surgiram e se expandiram, dando voz a ideais antes invisíveis e iniciando uma contínua desconstrução da figura feminina na sociedade. Entretanto, no âmbito das narrativas ficcionais seriadas estadunidenses o processo foi um pouco ainda mais lento. 

A Indústria Cultural construiu uma grade de programação em que as produções televisivas devem ser atrativas para uma massa de espectadores. A grade deve ser atrativa para os anunciantes, que utilizam os canais de televisão como forma de publicidade para seu serviço ou produto; e também para os espectadores, que utilizam daquele meio para se informar e se entreter. Na televisão, isso se dá de maneira mais visual e atrativa.

[...] a televisão, com meio século de presença entre nós, compartilha com a escola e a família o processo educacional, tendo-se tornado um importante agente de formação. Ela até mesmo leva vantagem em relação aos demais agentes: sua linguagem é mais ágil e está muito mais integrada ao cotidiano: o tempo de exposição das pessoas à televisão costuma ser maior do que o destinado à escola ou à convivência com os pais (BACCEGA, 2000, p. 95). 

Esse modelo é perpetuado desde o surgimento dos meios de comunicação. Se nos dias de hoje, a televisão é alvo de estudos e teorias a respeito da sua influência na sociedade civil, quando ela surgiu, isso era ainda mais presente. Sem os canais de streaming ou televisão à cabo, a programação segmentada, pensada para nichos específicos, ainda não era uma realidade. Numa época em que ainda nem se pensava em Netflix, o objetivo era atingir o máximo de audiência possível de maneira efetiva. Mas de que maneira? 

De modo geral, a história da televisão é frequentemente atribuída a homens, brancos, heterossexuais. As chefias e diretorias de canais de televisão aberta eram tomadas por homens. A programação, portanto, era decidida por eles. Literalmente, e por muito tempo, eles. Os produtores executivos não acreditavam que histórias com personagens femininas complexas e mulheres protagonistas dariam atingiriam a cota de audiência necessária para os canais. Os homens, como um reflexo da sociedade de grande parte do século XX, triunfavam na televisão. Esse domínio masculino abrangia não só a criação mas a representação dos personagens. 

Foi da necessidade do mercado televisivo de produzir conteúdos segmentados e voltados para nichos específicos que surgiu uma oportunidade de expandir a programação. Em meio a essa crise da TV aberta, até então o único modelo conhecido, foram surgindo personagens femininas que conquistariam o público.

Muitos aspectos da vida das mulheres nunca haviam sido retratados com profundidade na televisão porque os executivos dos canais acreditavam que esses tópicos eram entediantes ou desagradáveis (PRESS, 2018. p. 3). 

Mulheres na frente e por trás das câmeras 

A representação da mulher na ficção seriada já passou por diversas fases e vem se alterando cada vez mais. Atualmente, vemos experiências do universo feminino minuciosamente representadas, exploradas e destacadas em grandes produções, como fruto de um intenso trabalho de diretoras, produtoras, autoras, executivas e atrizes. Mesmo com a ainda gigantesca desigualdade de gênero que cerca a indústria (as mulheres ainda ganham muito menos e ainda ocupam apenas ¼ da posição em cargos como diretoras de produções) estamos inseridos em um ciclo de expansão de histórias sobre mulheres contadas por mulheres, construindo imagens e narrativas culturais que incentivam a próxima geração a continuar essa representação feminina e contínua resistência. Os locais de atuação em que as mulheres se colocaram presentes – com muita luta e resistência – de alguns anos para cá são incontáveis, e a televisão é somente um deles, “quando você está passando pelo que pode ser chamado de Era de Ouro, é importante lembrar que nem sempre foi assim” (PRESS, 2018, p. 3). 

Um marco nas produções televisivas femininas foi I Love Lucy (CBS, 1951-1957), a série tinha como narrativa central um casal e foi revolucionária em diversos aspectos. Um deles foi o fato de ter uma mulher na equipe de roteiristas, ação que transparecia na personagem principal, Lucy, que frequentemente contestava as ordens de seu marido. As narrativas disponíveis com essa visibilidade feminina eram ínfimas, os executivos de mídia, em sua maioria homens, acreditavam que os telespectadores não iriam se sentir atraídos por personagens mulheres complexas (PRESS, 2018). Com o lançamento e sucesso do livro A Mística Feminina de Betty Friedan, em 1963, que levou para a sociedade estadunidense discussões feministas, o mercado teve uma breve abertura para histórias sobre mulheres. A sitcom That Girl (ABC, 1966-1971) foi um exemplo, produzida pela também protagonista da série, Marlo Thomas. Apesar de ter conseguido, com muita luta, produzir a ficção inspirada na sua própria rotina como uma atriz vivendo em Manhattan (ela abriu sua própria produtora e buscou por mulheres roteiristas) Thomas nunca foi creditada como produtora da série. O mercado era tão restrito que ela tentava diminuir sua autoridade, para não intimidar os grandes nomes masculinos da época. 

Outra série estrelada e produzida por uma mulher foi The Mary Tyler Moore Show (CBS, 1970-1977), produção que causou impacto na época pela quantidade de mulheres na equipe. Não somente a produtora Mary Tyler Moore estava no comando, e fazia questão de se posicionar dessa forma, como pelo menos ⅓ das roteiristas eram mulheres. Enquanto para os profissionais do meio televisivo essas representações parecessem revolucionárias, elas na realidade eram um retrato fiel das mulheres que viviam na sociedade contemporânea e consumiam esta programação. 

O avanço era notável, porém ainda mínimo. Em 1974, apenas 6% das produções do prime time tinham pelo menos uma mulher na roteirização. Foi somente a partir da década de 1980 que as mulheres realmente avançaram e começaram a posicionar-se como roteiristas, produtoras e diretoras de conteúdos ficcionais televisivos. O pequeno, porém indispensável espaço conquistado teve suas especificidades. Era muito comum a criação de uma sociedade com homens, por vezes seus maridos, para maior respeitabilidade na área. Barbara Cordey, roteirista de Cagney&Lacey (CBS, 1981-1988), já afirmou que era corriqueiro essas mulheres se posicionarem no campo da criação, por não serem vistas como mulheres que poderiam administrar e produzir de fato uma série. 

Uma das primeiras roteiristas a entrar no mercado por conta própria foi Anne Beatts, criando Square Pegs (CBS, 1982-1983). A criadora da sitcom tinha o desejo de reunir uma equipe de somente roteiristas mulheres, porém o restrito mercado não tornou isso possível, obrigando-a, com um significado simbólico, a contratar pelo menos um homem para o grupo.

Mulheres roteiristas de televisão foram acostumadas a pensar em outras figuras femininas como competição para o reduzido campo - porque elas realmente eram (PRESS, 2018, p. 8). 

O gênero no qual muitas mulheres se destacaram e se fizeram presentes na década de 70 e 80 foi a comédia, através das sitcons. Apesar do gênero narrativo ter se popularizado nos anos 1980 e 1990, o posicionamento das mulheres e homens dentro do gênero era divergente. O sexo feminino sempre foi colocado em julgamento em comparação ao sexo masculino. Se os homens apresentassem comportamento irresponsável, cabia as mulheres se tornarem a figura de maior responsabilidade e conscientização. Nesse contexto, os homens se inseriram no setor da comédia para espelhar seus dramas e colocar nos personagens sua personalidade anti-heroica. Os escândalos e até mesmo prejuízos gerados por diretores e produtores eram minimizados pelo sucesso de suas produções. Por vezes, as situações polêmicas da vida fora da ficção de um homem era vista como benéfica para a produção televisiva: a experiência do mau comportamento escoava bem para as comédias. 

O campo da comédia era visto pelas mulheres como um espaço mais socialmente aceitável para se quebrar e desconstruir regras impostas socialmente, como Tina Fey já pontuou. Para elas, as regras da profissão sempre foram mais restritas. Se você era uma mulher por trás de uma série de sucesso, não havia espaço para o comportamento hostil que frequentemente cercava o arquétipo de homens da televisão: “se você é uma mulher, deve ser confiável” (Eileen Heisler, criadora de The Middle [ABC, 2009-2018]). 

As mulheres poderiam encarnar personagens com personalidades anti-heróicas (ainda que a princípio, esse tipo de representação fosse tabu e, por isso, raro e problemático), mas jamais portarem-se dessa maneira fora das câmeras.

Um dos pontos que levantamos é o da complexificação das personagens femininas aparecer ora através da adoção de um ethos masculinizado, ora na reiteração de antigos estereótipos. Se reconhecemos que é um avanço a existência de mulheres que não precisem desempenhar papéis sociais típicos [...] também entendemos que sua liberação dos estereótipos de gênero não pode se dar a partir da aproximação pura e simples com a esfera da masculinidade, como se residisse apenas nesse lócus toda possibilidade de emergência de mulheres fortes (CASTELLANO; MEIMARIDIS, 2018, p. 23). 

Esse posicionamento sofreu drásticas mudanças ao decorrer dos anos. O modo como as mulheres são representadas na televisão alterou-se devido a inserção das mesmas atrás das câmeras. Hoje, as narrativas femininas tomam conta de canais de TV aberta e fechada e as mulheres se tornaram verdadeiras orquestradoras de grandes histórias e universos ficcionais. 

Unbreakable Kimmy Schimdt (Netflix, 2015-2019), UnReal (Lifetime, 2015-atual), Queen Sugar (Oprah Winfrey Network, 2016-atual), Difficult People (Hulu, 2015-2017), Grace and Frankie (Netflix, 2015-atual), I Love Dick (Amazon Video, 2016-2017), Divorce (HBO, 2016-atual) e Fleabag (Amazon Video, 2016-2019), desde 2015 são muitos os exemplos de séries com representações fiéis do cotidiano e da vida feminina. Justamente pelo fato das mulheres terem conquistado o espaço não só estarem presente nas histórias, mas contá-las e criá-las. 

Universos ficcionais feministas da contemporaneidade

É impossível pensar em mulheres responsáveis por séries ficcionais e o nome de Shonda Rhimes não vir à cabeça. A roteirista e produtora de televisão estadunidense é criadora da Shondaland, uma produtora fundada para sua primeira série, Grey’s Anatomy (ABC, 2005-atual). A trama médica estadunidense de sucesso incontestável é somente uma das produções em que Shonda trouxe uma escala de representatividade revolucionária para a indústria cinematográfica da época.

Rhimes construiu na ficção televisiva um reino utópico onde mulheres reinam em hospitais, tribunais e na política, onde o poder feminino é algo cotidiano, de todo dia [...] é um local onde raça não é somente irrelevante, mas também invisível; onde mulheres vão atrás de suas ambições sem terem que sacrificar sua felicidade, enquanto também são livres para realizarem abortos, casar com seu trabalho em vez de homens, experimentar a sua sexualidade, e cometer erros (PRESS, 2018, p. 105) 

Grey’s Anatomy conta a história de Meredith Grey (Ellen Pompeo), uma jovem iniciando sua carreira na medicina no hospital Seattle Grace e retrata não só os embates profissionais que ela vive, mas também suas relações pessoais. Foi e, ainda é, um marco na televisão em termos de complexidade narrativa e, principalmente, representação feminina. A amizade da protagonista com Cristina Yang (Sandra Oh), sua colega de profissão, é um espelho de relações femininas que são facilmente encontradas no dia-a-dia. Apesar de ser algo cotidiano, no momento do surgimento de Grey’s, poucas séries traziam com tantos detalhes especificidades da realidade feminina. Temáticas como aborto, traição, relacionamentos homossexuais, rivalidade entre mulheres, sororidade e divórcio se mostram presentes na trama desde o seu surgimento. 


Se Grey’s Anatomy era uma trama médica e já introduziu discussões do universo feminino de maneira jamais vista antes, o boom de séries sobre mulheres fez com que essas discussões (e representações) se tornassem ainda mais presentes. Fleabag (Amazon Video, 2016-2019) é um exemplo mais presente do local de fala que roteiristas, produtoras, diretoras e protagonistas conquistaram. A série foi escrita por Phoebe Waller-Brigde, que também é criadora de Crashing (Channel 4, 2016) e roteirizou a primeira temporada Killing Eve (BBC America, 2018-atual) que conta com um elenco em sua maioria formado por mulheres e aposta na complexidade de personagens femininas. A história gira em torno da relação entre Eve (Sandra Oh), uma agente do serviço secreto britânico e Villanelle (Jodie Comer), uma habilidosa assassina, que é investigada pela agente. As nuances da relação entre as duas perpassa por certa obsessão, admiração, raiva, loucura, inveja, e o que talvez amarre todos esses sentimentos: amor. O arco narrativo e, principalmente, essa ligação entre elas, hipnotizam e prendem o telespectador; este, se estiver atento, consegue observar que certas cenas, talvez, não teriam sido de tamanho impacto se não fossem escritas por uma mulher. A sequência final da primeira temporada tem sensibilidade, tensão, surpresa, além de envolver o público numa cena íntima entre as duas protagonistas; que só teria o significado e simbolismo que teve, sendo escrita por alguém que vivencia sentimentos e situações da vida de uma mulher na pele. Em Killing Eve, não há espaço para estereótipos e representações femininas rasas – há quem diga que a trama é a saga 007 das mulheres, mas comparar a série indicada ao Globo de Ouro e campeã do BAFTA (British Academy of Film and Television Arts) a um arquétipo masculino de sucesso (e com polêmicas misóginas) não rende a trama o reconhecimento necessário. Phoebe Waller-Bridge chamou a atenção inclusive do atual 007, Daniel Craig, que a convidou para revisar o roteiro do próximo filme da franquia ultra masculinizada - talvez não mais tanto depois do olhar empoderado e humorístico da inglesa. 

Em Fleabag, Waller-Bridge, além de ser criadora da trama, também é a protagonista, que dá nome à série. Uma jovem inglesa com emoções conturbadas que a levam a engatar em relações amorosas e sexuais vazias (e por vezes tóxicas), não superar o luto pela morte de sua mãe e da sua melhor amiga, cultivar culpa por situações fora de seu controle, administrar mal sua cafeteria, se relacionar de maneira fria com seu pai e madrasta e alimentar certa competitividade com sua irmã. Com essa descrição, a personagem pode gerar identificação, e é justamente essa identificação que nos motiva a devorar a série de 12 episódios tão rapidamente. O drama, disfarçado de comédia, retrata a sexualidade feminina sem tabus e com total liberdade, dramas familiares, traições, amizade e competitividade feminina, relacionamentos instáveis e até mesmo religião. 


O charme da protagonista se estende para além da interpretação, já que Fleabag quebra a quarta parede e está em constante contato com o telespectador. E isso não ocorre de maneira aleatória. O público funciona como o inconsciente da personagem, o local para onde ela foge sempre que as coisas começam a sair do seu controle (se é que ela tem esse controle). A representação, os dramas, as dores e os embates trazem o que somente Waller-Bridge conseguiria colocar na tela: a aproximação com o real. Fleabag pode não ser culpada pela maioria das coisas que a acometem, mas só depende dela fazer algo para sair do ciclo de soluções fáceis (porém, nada eficazes) que ela se contentou em tomar diante de tais situações. A trama é curta mas não deixa a desejar em termos de profundidade narrativa, é brilhante no ponto em que nos diverte com as ironias e confusões da protagonista e também permite uma autorreflexão. Como se não bastasse a personagem principal, o curto espaço para homens na tela coloca a série numa categoria feminista. Fleabag é o tipo de série feita por uma mulher, sobre mulheres mas não somente para mulheres. É um importante exemplo de ficção em que o mundo feminino é tratado da maneira complexa em que ele é vivido. 

As mulheres têm conquistado seus locais de fala de maneira discreta e eficiente, elas ganharam voz e reinam em locais nunca antes imaginados. O campo da televisão, que já foi tão restrito a figura masculina, é apenas um desses locais. Shonda Rhimes e Phoebe Waller-Bridge são somente dois nomes de um amplo grupo de mulheres que têm revolucionado a indústria de ficções seriadas. No Globo de Ouro de 2015, quatro das cinco séries indicadas a Melhor Comédia do ano foram criadas por mulheres: Orange Is the New Black (Netflix, 2013-atual), Girls (HBO, 2012-2017), Jane the Virgin (The CW, 2014-atual) e Transparent (Amazon Video, 2014-atual). Se a televisão é um espelho da sociedade então pode-se esperar cada vez mais narrativas voltadas para as mulheres e suas questões pessoais. A brecha que mais de cem anos de televisão deixou no retrato raso e falho de mulheres vem sido preenchida por criadoras de séries como Fleabag e Grey’s Anatomy

REFERÊNCIAS

CASTELLANO, M; MEIMARIDIS, M. “Mulheres Difíceis”: A anti-heroína na ficção seriada televisiva americana. Famecos, v. 25, n. 1,p.1-23,2018. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/view/27007>. 

KELLNER, Douglas. A cultura da mídia. Bauru: Edusc, 2001. 

PRESS, Joy. Stealing the show: How women are revolutionizing television. Nova York: Atria Books, 2018. 

ROVIROSA, Anna. O tratamento da mulher nas séries televisivas norte-americanas. Contemporânea, v. 12, n.1, p. 234-260, 2014. Disponível em: <https://portalseer.ufba.br/index.php/contemporaneaposcom/article/view/8963>


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