A atemporalidade da luta feminina: uma análise da série Coisa Mais Linda

Lançada no fim de março, a mais nova série brasileira da Netflix, Coisa mais linda vem conquistando diversos elogios de crítica e público. A produção tem como pano de fundo a década de 1950, período de modernidade em que o Brasil vivia uma efervescência cultural e foi marcado, principalmente, pelo surgimento da Bossa Nova. Neste contexto, a trama conta a história de quatro mulheres que lutavam diariamente contra as dificuldades geradas pela sociedade sexistada época. Com classes sociais, histórias e anseios diferentes, Malu (Maria Casadevall), Adélia (Pathy Dejesus), Thereza (Mel Lisboa) e Lígia (Fernanda Vasconcellos) tiveram que encarar a desigualdade de gênero em diversos âmbitos de suas vidas, seja no trabalho, nas relações amorosas ou familiares. Uma das questões centrais e, que consequentemente, que colaborou para o sucesso de Coisa mais linda é a atemporalidade dos assuntos abordados. 

Ronsini e Silva (2011) afirmam que a televisão, especialmente o gênero de ficção, apresenta uma gama de personagens que se identificam com o espectador. E esse é um importante ingrediente que explica o destaque da série. Diversas situações denunciadas em Coisa Mais Linda (que, lembrando, se passa no fim da década de 50) ainda são recorrentes na sociedade brasileira contemporânea. 


A trama também se destaca na abordagem das figuras femininas. Para Sifuentes e Ronsini (2011), o papel das mulheres em telenovelas brasileiras está quase sempre relacionado ao matrimônio e ao cuidado com os filhos. E Coisa Mais Linda vai na contramão dessa representação. Apesar de duas das protagonistas serem mães, o traço principal de suas personalidades é a determinação para conseguir a independência financeira e profissional. Dessa maneira, o fato de possuírem filhos é, em diversas situações, deixado em segundo plano. Levando em consideração que a série se passa no final dos anos 1950, pode-se dizer que, à época, as personagens seriam consideradas mulheres a frente de seu tempo. 

A partir dessa abordagem não hegemônica, a série cumpre seu papel social de ampliar o leque de representações femininas, fugindo de papéis simplificados e que reduzem a mulher à vida privada. Em seus sete episódios, a narrativa também colabora para uma relação mais igualitária entre os gêneros (SIFUENTES E RONSINI, 2011). 

Como dito anteriormente, a beleza da série reside no companheirismo entre as quatro protagonistasque, em meio a seus dramas pessoais, encontram tempo para se apoiarem. 

Maria Luiza e a busca pela independência 


Malu é uma socialite paulistana que sonhava em abrir um restaurante no Rio de Janeiro ao lado de seu marido. Depois de chegar na capital carioca (que, na época, também era a capital do Brasil), a jovem se vê em uma situação diferente da que esperava: estava longe de seu filho e sua família, sozinha em uma cidade estranha e sem dinheiro. A partir desse momento (e depois de ter conhecido influentes pessoas da alta sociedade carioca), Malu decide conquistar sua independência e abrir um clube de música no qual diversos cantores da recém-nascida Bossa Nova se apresentariam. Depois de ser deserdada por seu pai e impedida de ver seu filho, a personagem seguiu rumo ao seu sonho. Durante a jornada, Malu passou por diversas situações constrangedoras. Uma cena marcante é quando ela tenta conseguir empréstimo para começar o negócio e tem seu pedido negado pelo banco, que alega ser obrigatória a assinatura de seu marido para a liberação da transação. Outro momento importante ocorre quando Malu procurou o dono de uma gravadora na busca de uma parceria, mas ouviu que ela deveria se preocupar em conhecer a cidade e “deixar que os homens fizessem os negócios”. 

Adélia e a luta contra o racismo 


Adélia é uma mulher negra e periférica que divide sua rotina entre um extenuante horário de trabalho e seus afazeres domésticos, que incluem o cuidado com sua filha Conceição. Logo no primeiro episódio, Adélia entra na vida de Malu quando a ajuda a combater um princípio de incêndio. Este momento marcou o nascimento de uma duradoura amizade e parceria entre as duas personagens. Além de lutar contra a desigualdade de gênero, principalmente por estar ao lado de Malu no empreendimento do clube, a personagem interpretada por Pathy Dejesus ainda enfrenta outro problema social: o racismo. Em diversas cenas, personagens da alta sociedade (inclusive a mãe de Malu) tratam Adélia como se fosse serviçal das outras protagonistas, mulheres brancas. Outros momentos exibem a forma como ela era tratada por sua chefe: impedida de usar o elevador dos residentes de um prédio, Adélia foi obrigada a subir alguns andares de escada e carregando um carrinho com compras. Além disso, no dia em que teve de levar sua filha para o trabalho, sua patroa a dispensou sob o discurso de que “não queria aquela menina mexendo e roubando seus pertences”. 

Lígia e a violência doméstica 


Interpretada por Fernanda Vasconcellos, Lígia é uma mulher da alta sociedade paulista que abre mão de seu sonho de ser cantora para manter seu casamento com Augusto (Gustavo Vaz), um político prestigiado e em ascensão. A personagem é constantemente vítima de violência sexual, o que faz com que algumas cenas de Lígia sejam as mais impactantes da série. Melhor amiga de infância de Malu, Lígia demora a perceber que seu relacionamento é abusivo, mas quando percebe que Augusto a vê como “posse”, decide seguir seu coração. 

Thereza e o desejo de visibilidade 


Thereza é uma personagem com vivências diferentes das outras protagonistas. Jornalista, morou anos na França e retornou ao Brasil com uma visão mais engajada sobre o papel social da mulher. Apesar de trabalhar para uma revista direcionada ao público feminino, ela é única redatora da revista Angélica. Sozinha em meio aos colunistas (que se passam por mulheres na hora de escrever os textos), a personagem encara situações sexistas diariamente, como na cena em que ouve do seu chefe que homens são mais focados e qualificados para realizar qualquer tipo de serviço. A união entre as protagonistas da série pode ser creditada em grande parte pela força de Thereza, que constantemente encoraja e apoia Malu, Adélia e Lígia a seguirem os caminhos que desejam (e não apenas agirem da forma como a sociedade espera). 

Apesar da renovação ainda não ter sido confirmada pela Netflix, o público aguarda ansioso por uma continuação da história, visto que o último episódio desta primeira temporada deixou várias dúvidas ao espectador. Além disso, ainda há muito espaço para o desenvolvimento das protagonistas. Portanto, cabe a nós aguardar e tentar desvendaro que poderá acontecer nos próximos capítulos. 


Referências: 

RONSINI, Veneza; SILVA, Renata. Mulheres e telenovela: a recepção pelaperspectiva das relações de gênero. E- Compós, v.14, n.1, p.1-16, 2011 Disponível em: < http://www.e-compos.org.br/e-compos/article/download/519/506/>. Acesso em: 18. mai. 2019 

SIFUENTES, Lírian; RONSINI, Veneza. O que a telenovela ensina sobre ser mulher? Reflexões acerca das representaçõesfemininas. Famecos, v. 18, n. 1, p. 131-146, 2011. Disponível em: < http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/view/8802>. Acesso em: 18 mai. 2019.


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