O triunfo do anti-herói: uma análise de Andrew Cunanan

A segunda temporada de American Crime Story (The Assassination of Gianni Versace: American Crime Story) chegou para atender altas expectativas após o êxito da primeira. O Assassinato de Gianni Versace estreou no canal FX em 17 de janeiro de 2018 e exatamente um ano depois passou a integrar o catálogo da Netflix. Se na primeira temporada o título resumia com precisão a trama (“O povo contra O.J Simpson”) na seguinte ele pode causar alguns equívocos. O foco narrativo não tem como ponto central o designer de moda italiano Versace e seu império, como os primeiros teasers nos levaram a crer. O verdadeiro protagonista é Andrew Cunanan (DarrenCriss), o serial killer que baleou o renomado estilista em 15 de julho de 1997. O personagem é responsável pelos desdobramentos narrativos da atração.




Ryan Murphy, já conhecido por Glee (2009-2015, Fox) e American Horror Story (2011-atual, FX) ousa em contar a história do assassinato do ponto de vista de um anti-herói. Presente em grande parte das narrativas ficcionais seriadas produzidas a partir dos anos 2000, tais como Breaking Bad (2008-2013, AMC), Dexter (2006-2013, Showtime), House (2004-2012, Fox) e The Sopranos (1999-2007, HBO) o anti-herói é um personagem com o qual o espectador firma uma aliança moral ambígua, ao conhecer suas motivações, ações e comportamentos (CASTELLANO; MEIMARIDIS, 2018).

A trama de The Assassination of Gianni Versace: American Crime Story é sombria e complexa, abrindo espaço para diversas discussões sobre a preconceitos e sexualidade nos anos 90. Murphy e os diretores da série tiveram maior liberdade criativa na segunda temporada da atração antológica do FX. A exata trajetória e motivação de Cunanan permanece incerta. Sabe-se que ele matou pelo menos mais quatro homens antes de Versace em um curto espaço de tempo. Nesse contexto, existem muitas lacunas a serem preenchidas e os roteiristas as exploram de tal maneira que mesmo quem conhece a história se perde entre o que é ficção e o que é realidade. Vale pontuar que a família de Versace não teve qualquer envolvimento com a série ou autorizou a produção da mesma.


A trama é contada em nove episódios e em uma sequência cronológica inversa. Nos primeiros minutos do episódio inicial vemos a cena chocante do assassinato à queima-roupa do estilista italiano. Nos momentos seguintes somos levados ao verdadeiro arco narrativo da série: o enfoque à vida e às motivações do assassino, Andrew Cunanan.

O surgimento e o caminho do anti-herói


A escolha dos diretores em colocar na posição de protagonista o serial killer rendeu o Globo de Ouro à produção na categoria de Melhor série limitada para TV. Entretanto,a tendência de retratar anti-heróis como protagonistas das tramas é um dos pontos centrais das narrativas ficcionais seriadas contemporâneas. O marco inicial desta fase é datado do início dos anos 2000, com as produções do canal fechado HBO. Com o sucesso de tramas como Hill Street Blues (1981-1987,NBC) e St. Elsewhere (1982-1988, NBC) os telespectadores pareciam mais dispostos a aceitarem personagens ambíguos que fugiam da simpatia e aclamada perfeição dos heróis (CASTELLANO; MEIMARIDIS, 2018). A HBO captou essa mudança no mercado e começou a apostar em dramas com a temática dos anti-heróis; ou como Martin (2014) os define: homens difíceis. Não demorou para que fosse lançada a primeira produção original HBO sob o arquétipo dos anti-heróis: Oz (1997-2003). A trama era baseada na vida de detentos de uma prisão. Porém,o título que representa o marco inicial da fase áurea dos anti-heróis é The Sopranos (HBO, 1999-2006), que trazia como personagem central o icônico Tony Soprano (James Gandolfini) um mafioso de moralidade no mínimo, duvidosa.

Chris Albrecht,presidente de conteúdo original HBO entre 1995-1999, afirmou sobre o assunto: “eu não me importo se os personagens são simpáticos ou não, contanto que sejam interessantes” (BISH, 2017, Online). Por ser um canal fechado, a HBO tinha mais liberdade de criação, e acabou popularizado os anti-heróis na TV estadunidense. Uma proliferação de séries nesse mesmo modelo pode ser notada no mercado, em tramas como, por exemplo, Breaking Bad (2007-2013, AMC), MadMen (2007-2015, AMC), House Of Cards (2013-2018, Netflix), Mindhunter (2017-atual, Netflix), The Fall (2013-2016, BBC Two), Dexter (2006-2013, Showtime), Hannibal (2013-2015, NBC) e Bates Motel (2013-2017, A&E). E no mesmo âmbito, encaixamos The Assassination of Gianni Versace: American Crime Story.

Como um personagem, que definitivamente não é um herói ou mocinho, conquista tantos telespectadores? Como se deu essa popularidade entre o público, que semanalmente esperam ansiosos para saber o desfecho de sua história, e chegam a se solidarizar com ela? García (2016) aponta três principais razões para essa difusão.. Na primeira delas, chamada de ideológica, o autor aponta a transgressão de valores morais que ocorreu na pós-modernidade; o colapso de conformidade moral e política conduziu a um relativismo que acabou influenciando também as narrativas ficcionais. A segunda, industrial, diz respeito a distinção do mercado das TVs abertas e fechadas: a maioria dos dramas de anti-heróis foram produzidos por canais de televisão a cabo ou de streaming. Funciona como um mecanismo de diferenciação e conteúdo diversificado.A última diz respeito à narrativa,com o prolongamento e continuidade de ficções televisivas tornou-se possível a exploração e aprofundamento de diferentes aspectos. As tramas possibilitam que “ [...] os conflitos e dilemas se multipliquem, enriquecendo a diversidade moral, emocional e política da história” (GARCÍA, 2016, p. 55).

A complexidade do anti-herói em American Crime Story


Em American Crime Story assuntos polêmicos e preconceitos cercam a trama desde a primeira temporada. Se em “O Povo contra O.J Simpson” a discussão foi em cima do racismo e machismo, em The Assassination of Gianni Versace sobra espaço para falar de homossexualidade e saúde mental dos gays nos anos 90. Pelo decorrer da história somos levados a crer que Cunanan invejava Versace por ter atingido um patamar de sucesso tão alto que não precisava se importar em ser abertamente homossexual sem sofrer com isso.

De acordo com Mittell (2015), alguns pontos podem ser apontados para caracterizar um personagem como anti-heróis: protagonista carismático, moralidade relativa, aliança ambígua e inteligência maquiavélica. Segundo o autor o carisma pode ser fruto da performance do ator ou por deixas narrativas, ou seja, a maneira como o personagem é tratado por outros na série vai denunciar como ele deve ser encarado. Em The Assassination of Gianni Versace não há duvidas que o mérito é todo da primeira opção. Se em MadMen Jon Hamm e em The Sopranos James Gandoffini foram reconhecidos e premiados pelo seu trabalho, o anti-herói aqui em questão também não foi deixado de fora. Darren Criss na pele de Cunanan foi aclamado pela crítica e levou os principais prêmios do circuito 2018/2019, entre eles o Emmy e o Globo de Ouro. O carisma e competência do ator são facilmente identificáveis: seu olhar hipnótico nos seduz e nos leva cada vez mais para dentro de sua história de mentiras e ambições.


A moralidade relativa é construída através da aproximação do anti-herói com personagens de moral inferior (SMITH, 1999). Para Mittell (2015), isso contribui para ressaltar as qualidades mais redimíveis do personagem. Em American Crime Story,por conta da cronologia inversa da série,esse ponto não fica tão claro até os dois últimos episódios,. Neles, somos apresentados a juventude e infância do assassino., com o conhecimento da história, seu pai pode ser apontado como o personagem de moral inferior que nos leva a compreender algumas das ações de Cunanan.

A aliança ambígua se refere ao conceito de Smith (1995), dentro de sua Estrutura da Simpatia. A simpatia do público com o personagem ocorre em três níveis: primeiro o reconhecemos, depois nos alinhamos com sua história e só então formamos uma aliança com o mesmo. No caso dos anti-heróis essa aliança formada é moralmente ambígua e conflituosa (SMITH, 1995).O público tem consciência das atitudes imorais de Cunanan como um assassino, mas ao mesmo tempo têm acesso a informações íntimas de sua vida pessoal.Nesse contexto, em alguma medida isso relativiza suas ações e em certo ponto até mesmo uma solidariedade é exercida. Segundo Mittell (2015) (2015), os relacionamentos amorosos e as ligações familiares dos anti-heróis são permanentemente adotados para justificar suas ações imorais. Além da relação conflituosa do serial killer com seu pai e família, aqui também podemos citar a questão da sexualidade e preconceito. Em diversos momentos da série nos é apresentado sinais de que a saúde mental de Cunanan foi afetada por uma sociedade que ainda não estava preparada para a inclusão de homossexuais de maneira normativa. Um fato histórico retratado na ficção é a política estadunidense Don’t Ask, Don’tTell, uma lei que entrou em vigor em 1993 e restringia homossexuais e bissexuais do serviço militar; além de esforços para descobrir e expulsar àqueles que já estavam alistados.

O último ponto caracterizador dos anti-heróis é a inteligência maquiavélica. Trazido das ciências cognitivas, ele é utilizado para relacionar o sucesso de um indivíduo complexo com sua capacidade de entender e manipular as pessoas (VERMEULE, 2010). Os telespectadores da ficção televisiva se interessam por ler a mente desses personagens para então desenvolver suas habilidades sociais: o controle de pessoas à sua volta e uma hábil inteligência. No caso analisado acompanhamos um personagem megalomaníaco, extremamente ambicioso e manipulador se desdobrar para conseguir o que deseja através de mentiras e personagens criados no interior de sua mente. São raras as vezes em que os planos de Cunanan não se solidificam por meio de suas armadilhas.

Ryan Murphy e sua narrativa polêmica (e sempre surpreendente) não para pela segunda temporada. A continuação de American Crime Story já está definida, apesar de não ter uma data de estreia ainda. Desta vez tomando um rumo um pouco diferente, terá como ponto central um desastre natural, o furacão Katrina, que devastou o sul dos Estados Unidos em 2005. Após uma discussão sobre sexismo e racismo em cima de um dos crimes mais notórios dos Estados Unidos e a tentativa de compreender um assassino tão cruel e ainda cheio de questões, só podemos nos preparar para o que vem a seguir.

Referências:

BISH,J. 20 anos de 'OZ': a série que mudou a TV para sempre. Vice, 2017, Online. Disponível em: <https://www.vice.com/pt_br/article/pay3vg/20-anos-de-oz-a-serie-que-mudou-a-tv-para-sempre>. Acesso em: 10 mar. 2018.

CASTELLANO, M; MEIMARIDIS, M. “Mulheres Difíceis”: A anti-heroína na ficção seriada televisiva americana. Famecos, v. 25, n. 1,p.1-23,2018. Disponível em: <http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistafamecos/article/view/27007>.

GARCÍA, A. N. Moral Emotions, Antiheroes and the Limits of Allegiance. GARCÍA, A. N.(Org.). Emotions in Contemporary TV Series. Reino Unido: Palgrave Macmillan, 2016, p. 52-70.

MARTIN, t. Homens Difíceis – Os Bastidores do processo criativo de Breaking Bad, Família Soprano, Mad Men e outras séries revolucionárias. São Paulo: Aleph, 2014.

MITTELL, J. J. Lengthy Interactions with Hideous Men: Walter White and the Serial Poeticsof Television Anti-Heroes. In Storytelling in the Media Convergence Age. Palgrave Macmillan UK, p. 74-92,2015.

SMITH, M. Engaging characters: Fiction, emotion, and the cinema. Oxford: Clarendon Press, 1995

VERMEULE, B. Why do we care about literary characters? Baltimore: JHU Press, 2010.

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