American Crime Story: O.J. Simpson vs Marcia Clark e o sexismo nos tribunais

Apesar do surgimento de séries com temáticas das mais diversas – que vão desde comédias políticas a mundos utópicos com invasões zumbi, as tramas policiais ainda são uma receita para o sucesso e, desde que apresentem histórias envolventes, conseguem mobilizar grandes audiências. De acordo com pesquisa realizada pela revista EntertainmentWeekly, das 15 séries mais assistidas nos Estados Unidos entre setembro e dezembro de 2017, três delas – NCIS (CBS, 2003-presente), Blue Bloods (CBS, 2010-presente) e NCIS: New Orleans (CBS, 2014-presente)- são do gênero policial.

Segundo Morin (1969), nossa vida cotidiana está sempre submetida à lei, portanto temos constantemente instintos reprimidos e desejos censurados. Desta maneira, o sucesso dos conteúdos policiais pode ser explicado pela projeção dos espectadores, que veem nessas produções algo que não têm ‘a liberdade’ de realizarem.

Bofetadas, golpes, tumultos, batalhas, guerras, assaltam sem cessar os homens pacíficos de nossas cidades, como se o excesso de violência consumido pelo espírito compensasse uma insuficiência de violência vivida (MORIN, 1969, p.114)


Recentemente, o sucesso de produções como Making a Murderer (Netflix, 2015-presente) e Mindhunter (Netflix, 2017-presente) vem consolidando um subgênero dos seriados policiais, o chamado true crime. Para Boorsma (2017), o true crime consiste em produções que reconstroem a história de crimes reais acontecidos no passado. Boorsma também afirma que o true crime já é uma realidade no mundo da literatura há anos, e o crescimento da popularidade das séries culminou na transferência destas obras literárias para conteúdos televisivos.

Essa interconexão entre a TV e a literatura pode ser observada em American Crime Story (FX, 2016-presente), uma antologia que, em cada temporada, recria a história de um crime real que obteve grande apelo público e atenção midiática. Sua primeira narrativa, baseada no livro The Runof His Life: The People V. OJ Simpson de Jeffrey Toobin e intitulada The People V. O.J. Simpson foi um sucesso estrondoso de crítica e público, conquistando nove prêmios Emmy, dois Globos de Ouro e um BAFTA.

Nos 10 episódios que compõem a primeira temporada, o seriado recria o julgamento do astro de futebol americano Orenthal James (OJ) Simpson, caso conhecido como “Julgamento do século”. Em 1994, o ídolo do esporte foi acusado de assassinar brutalmente sua ex-esposa, Nicole Brown, e um amigo, Ronald Goldman. Em uma narrativa fiel aos acontecimentos reais, American Crime Story além de relembrar o longo debate judicial entre o “time dos sonhos” de O.J e a promotoria de Los Angeles, evidencia o primordial papel exercido pela mídia durante todo o julgamento. Outro ponto que chama a atenção é um debate que a trama trouxe à tona. Após mais de 20 anos, a série apresentou novas perspectivas sobre uma das personagens mais desmoralizadas durante o caso.

Marcia Clark, Mídia e Sexismo

Como ressaltado anteriormente, os meios de comunicação foram peças fundamentais para o veredicto final. Os jornais televisivos apresentavam o caso como se fosse uma novela sendo exibida ao vivo para todo o país, e, assim, a imprensa conseguiu moldar a opinião pública em favor de um determinado posicionamento. Em vista desta exibição sensacionalista da história, a vida pessoal de alguns indivíduos relacionados ao julgamento se tornou um conteúdo bastante valioso para os jornais e revistas, que faziam de qualquer coisa uma grande notícia. E é exatamente neste contexto que se insere a promotora Marcia Clark, humilhada pelos meios de comunicação das mais diversas formas.

Designada à promotoria do caso de O.J. e decidida a provar ao júri a culpa de Simpson - uma vez que acreditava “ter provas suficientes para condená-lo 15 vezes” -, Marcia Clark era constantemente ridicularizada e desacreditada por todos ao seu redor. Fruto de uma sociedade predominantemente machista, era rejeitada por ser mulher, por ocupar uma posição de poder e ainda por acusar um grande ídolo do futebol americano da autoria de dois crimes muito cruéis. Neste contexto, a vida pessoal de Clark foi alvo dos mais insensíveis comentários em programas de rádio e jornais. Suas roupas, seu visual e até sua personalidade eram constantes alvos de críticas e especulações por parte de uma mídia aficionada pelo caso de O.J Simpson.

A imprensa, além de expor sua vida pessoal, foi extremamente sexista em relação à Marcia. Imagens e informações sobre seus pais foram exibidos em programas de televisão e emissoras gravaram uma matéria com seu ex-marido alegando que ela não passava tempo suficiente com seus filhos. O caso mais humilhante ocorreu quando o tabloide NationalEnquirer publicou uma foto de em que ela faz topless em uma viagem com seu primeiro marido. 
Capa do tabloide National Enquirer do dia 14 de fevereiro de 1995. No canto superior direito, é anunciada a manchete “Marcia Clark como você nunca a viu”
Frente a tantos julgamentos e com a pressão da própria promotoria em relação a sua imagem, a promotora decide mudar seu visual para “algo mais suave”. Porém, a mudança desagrada o público e, além de ter que ouvir comentários sexistas de companheiros de tribunal, seu novo corte cabelo se torna o assunto da capa de diversos jornais, que diziam coisas como, por exemplo, “Cachos do horror” e “O veredito de Marcia Clark: culpada”.
O sexto episódio de American Crime Story se dedica amostrar a conturbada relação de Marcia com a mídia.

Série Como Redenção

Interpretada pela (maravilhosa!!!) Sarah Paulson, que conquistou importantes prêmios como o Globo de Ouro e o Emmy por sua atuação na trama, Marcia Clark foi a grande ‘inimiga’ da imprensa durante os mais de 370 dias que envolveram o julgamento. Apesar de toda a exposição a qual foi sujeita, ela sempre seguiu com seu objetivo de condenar O.J Simpson -o que, como sabemos, não foi alcançado. Após a derrota nos tribunais e a humilhação pública, Clark deixou os tribunais e passou a se dedicar a carreira de escritora.
A esquerda, Sarah Paulson interpretando Clark. A direita, a verdadeira Marcia Clark durante julgamento. Após o julgamento, Clark pede demissão da promotoria e assina o maior contrato para a escrita de um livro de todos os tempos.
Diversas produções já haviam recontado a história deste caso tão relevante para a história norte-americana, e a ‘verdadeira’ Marcia Clark, ao saber de American Crime Story disse, em entrevista recente, ter tido ataques de pânico ao saber que teria de relembrar, mais uma vez, um momento tão delicado de sua vida. Porém, após saber que Sarah Paulson a interpretaria da maneira mais realista possível e expondo todo o sexismo ao qual foi exposta, a ex-promotora afirmou que soube que essa produção seria diferente.

Depois de mais de 20 anos, Marcia Clark diz sentir que finalmente encontrou sua redenção com American Crime Story e o documentário “O.J: Made in America” – que, inclusive, ganhou um Oscar. Ela conta que essas produções puderam mostrar como o juiz desmerecia todas as evidências que apresentava, o que influenciou diretamente na forma como o júri via o caso.
Clark (de preto) e Sarah Paulson(de verde) se abraçando em premiação do Emmy. Clark afirma ter se sentido redimida após exibição de American Crime Story.
A partir destas produções, Marcia Clark passou a ser considera uma referência feminista por conta de tudo o que sofreu durante o julgamento e por, em um ambiente que veio a destruir sua carreira, ter permanecido com seu objetivo de mostrar que O.J havia assassinado Nicole e Ronald. Atualmente, Clark é apresentadora da série documental The First 48: Marcia Clark Investigates(2018), na qual re-investiga crimes notórios que permanecem sem solução.

Referências:

BOORSMA, Megan. The WholeTruth: The ImplicationsOfAmerica’sTrue Crime Obsession.

FURUZAWA, Camila P. Seriam as séries policiais sintomas da sociedade contemporânea? In Sessões do Imaginário, v.18, n. 29, p. 76-84, 2013. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/famecos/article/view/11955/9520. Acesso em: 20 abr. 2018.

MORIN, Edgar. Cultura de Massas no Século XX - Vol. 1 - Neurose. São Paulo: Forense Universitária, 1969


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