O legado de Lost para a ficção seriada televisiva



A série Lost (2004-2010, ABC) foi um marco na história da televisão. A produção conquistou as principais premiações da TV como, por exemplo, o Emmy e o Globo de Ouro. Além disso, a série foi um grande sucesso de público, atingindo uma média de audiência de 15 milhões de telespectadores só nos Estados Unidos. Apesar destas conquistas, grande parte do legado de Lost foi construído por elementos utilizados em sua trama, como determinados recursos inovadores e a exploração de outro modo de conduzir a narrativa. Lançada em setembro de 2004, a trama tem como ponto de partida a queda de um avião em uma ilha misteriosa, o vôo 815 da companhia Oceanic Airlines com destino a Los Angeles, Estados Unidos. Já sem esperanças de resgate, os passageiros passam a ter que lutar para sobreviver e, precisam aprender a lidar com os vários enigmas e mistérios que a ilha reserva.

Tamanho o sucesso de Lost, houveram várias tentativas de repetir a fórmula da série em outras produções. A própria ABC criou a série Flash Forward (2009-2010) que apresentava a flexibilidade temporal e lacunas da narrativa, recursos muito explorados em Lost. Neste caso, o enredo se passa depois de toda a população mundial sofrer um apagão e ter flashes de sua vida no futuro. Outra aposta de sucessor de Lost é a produção da HBO, The Leftovers (2014- 2017). Criada por um dos roteiristas de Lost, Damon Lindelof, a série tem como premissa básica o desaparecimento de 2% da população. Como explica, Seabra (2016, p. 141), “Vez por outra, aparece um sucesso que, involuntariamente torna-se o pioneiro que ditará notas para outras produções da época, mesmo em meios diferentes do original”. Parte das produções que carregavam a tarefa de ser a sucessora de Lost apostavam no uso dos recursos inovadores utilizados na produção.


As inovações da narrativa de Lost

Produzida por J. J. Abrams, Lost trouxe inovações para o gênero televisivo e que passaram a ser incorporadas em várias produções contemporâneas. Um dos principais recursos explorados na produção foram às múltiplas temporalidades, isto é, a trama central se passava no presente, porém em certos momentos a narrativa era levada para o passado dos personagens e, mais tarde, também no futuro. A série foi pioneira em apresentar o recurso de flash sideways, um tipo de narração que conta duas histórias paralelas utilizado para mostrar a vida dos personagens em uma realidade alternativa. Como, por exemplo, na sexta temporada em que a narrativa se passava no presente com os personagens na ilha em paralelo com uma trama que pertencia a um universo alternativo, fora da ilha. Além disso, Lost explorou recursos como o flashback com cenas e acontecimentos do passado de cada indivíduo antes da queda do avião, e a partir da terceira temporada passou a utilizar oflashforward. Neste caso, a sequência principal dos acontecimentos é interrompida por uma cena representando um evento esperado, projetado ou imaginado que ocorre no futuro.

Um dos motivos que contribuíram para o sucesso de Lost foi sua grande popularidade. Com sua trama repleta de mistérios, a série alimentava os telespectadores que elaboravam teorias a cada episódio fazendo com que a produção dominasse os tópicos de discussões nos fóruns pela internet. Este engajamento foi potencializado com as estratégias transmídia promovidas pela trama. O universo ficcional da atração era composto porlivros, jogo eletrônico (Lost: Via Domus), miniepisódios produzidos para transmissão via celular (Lost: Missing Pieces), jogos de realidade alternativa (The Lost Experience, Find 815, Dharma Initiative Recruiting Project), conteúdo extra para DVDs e sites especiais (site das companhias Oceanic Airlines e Ajira Airways). Como explicam Bianchini e Mielniczuk (2011, p. 129), ao fornecerem mais informações sobre a trama, estas plataformas auxiliaram os fãs colaborando para a compreensão dos enigmas.
Cada suporte midiático auxilia de forma distinta na expansão do entendimento do universo da série, como se o conteúdo de cada um deles correspondesse a uma peça de um imenso quebra-cabeça que inclui dezenas de personagens, referências culturais, históricas, religiosas, filosóficas e científicas e uma história que, em seis temporadas, abrange acontecimentos relacionados à ilha ao longo de cerca de dois mil anos – da época Romana Clássica até 2008.

Algumas das respostas dos vários enigmas de Lost só estavam disponíveis para os telespectadores que acessavam determinada extensão do universo da série. No jogo Lost Experience, por exemplo, foi mostrado que a sequência numérica: 4, 8, 15, 16, 23, 42, fazia parte da Equação de Valenzetti, uma fórmula que previa o fim da humanidade. Já o jogo de realidade alternativa Find 815 explica como os destroços do vôo 815 de que Naomi (Marsha Thomason) falava na história foram descobertos.Esses significados e respostas não foram mencionadosna atração televisiva, desta forma o público ávido que se aprofundava no universo da série e acessava as extensões transmídia era recompensado com informações extras.

Jogo Lost: Via Domus

O que há por trás da fórmula de sucesso?

A partir desta interação com o universo de Lost, o público passa a se sentir parte da trama com uma sensação de interferência na narrativa, como pontua Cannito (22010, p. 197),“O espectador deixa de ser comum para ser alguém que interage com a história à medida que desvenda mistérios que jamais ficariam claros no decorrer da trama. Ele tem a sensação de construir, de alguma maneira, o episódio que está assistindo”.

A série instigava o público, uma vez que apresentava umclima constante de conspiração. Parte das maiores questões presentes como, por exemplo, o que há por trás da ilha? Os sobreviventes foram parar na ilha por uma razão específica?Acabam levando os telespectadores a acreditar que tudo conspira para que os sobreviventes nunca saiam da ilha. “São situações complexas que tomam conta do enredo e das relações entre os personagens e que os levam a sentir que há algo de errado, mas não lhes permitem encontrar as respostas” (CANNITO, 2010, p.197)


Mais do que inovações na forma de narrar uma história, Lost soube jogar com as expectativas do público. Isso, porque muitos dos mistérios que julgávamos ter uma razão lógica e científica possuíam uma explicação bem mais subjetiva ou em alguns casos os acontecimentos não possuíam um propósito específico. Desafiando grande parte dos modelos de narrativa anteriores, a série não fazia questão de fornecer respostas fáceis e didáticas para o público.Como explica Machado (2010, Online), “Nunca roteiristas e produtores foram tão ousados ao jogar com temas de difícil compreensão, deixando de lado a forma didática e de cima para baixo com que certos programas tratam o telespectador”.

Lost transformou o modo com que o público assiste televisão. Assistir Lost significa muito mais do que consumir a série em si, mas sim todo o universo em torno da narrativa fazendo com que o telespectador se torne um jogador que está sempre em busca de pistas para completar o quebra-cabeça.

Referências

BIANCHINI, Maíra; Luciana, MIELNICZUK. O Universo Ficcional de Lost e a Narrativa Transmidiática. In Logos, v.34, n.1, p.126-138, 2011. Disponível em: < https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/logos/article/download/1270/1601>. Acesso em: 18 mar. 2019.

CANNITO, Newton. A televisão na era digital – interatividade, convergência e novos modelos de negócio. São Paulo: Plexus, 2010.

MACHADO, André. O Legado de Lost. Boletim da UFMG, Online, 2010. Disponível em: < https://www.ufmg.br/boletim/bol1698/2.shtml>. Acesso em: 18 mar. 2019.

SEABRA, Rodrigo. Renascença: A série de TV no século XXI. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.


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