As prisões visuais de The Handmaid’s Tale


Baseada no livro homônimo de Margaret Atwood, a série The Handmaid’s Tale (2017-atual, Hulu) é uma distopia centrada em um golpe teocrático e autoritário que transforma parte dos Estados Unidos na República de Gilead. Motivado pela queda exponencial da taxa de natalidade, o golpe tenta resgatar uma conduta moral conservadora, estabelecendo um sistema rígido de estratificação social. Esse sistema tira direitos básicos de vários grupos vulneráveis, principalmente das mulheres, que são vistas como as principais culpadas pela redução da natalidade.

A série é apenas um dos exemplos de produções televisivas ou para serviços de streaming que assumem uma natureza mais complexa visualmente, se preocupando com detalhes e acompanhando as mudanças na forma que os espectadores as consomem. Como pontua Jost (2017, p. 30-31),

Assistir a uma obra televisual ou cinematográfica é hoje uma empreitada centrípeta bastante próxima daquela do herói de Blow up, que tenta saber mais através da ampliação de uma fotografia.
Para além dos mecanismos de repressão estabelecidos por Gilead – como as roupas específicas designadas para cada grupo social – The Handmaid’s Tale usa artifícios visuais para aprisionar as personagens e reforçar a opressão desse novo regime. Essa questão pode ser observada na composição da trama.

Para Donis A. Dondis (1997), a composição é de extrema importância no processo criativo, sendo a etapa que oferece maior oportunidade para que um artista estabeleça o que o resultado final deseja transmitir. A autora define o conceito de “eixo sentido”, como uma relação vertical-horizontal que é a base na referência visual humana para determinar o equilíbrio de uma imagem. A disposição dos elementos em relação a esse eixo aumenta ou diminui a tensão visual de um plano.

É possível perceber que, através de toda a série, as personagens femininas recebem um enquadramento específico: centralizadas, de maneira que estejam aprisionadas pelo cenário, seja com móveis, cortinas ou até mesmo as próprias estruturas da casa. Esse padrão composicional se manifesta em momentos de tensão narrativa, como quando Offred (Elisabeth Moss) é apresentada ao seu novo Comandante ou durante os estupros ritualísticos aos quais as Aias são submetidas. No entanto, ao escolher uma simetria bilateral - isto é, organizando os elementos em quadro de maneira que se equilibrem - The Handmaid's Tale contradiz visualmente o clima tenso do enredo.
[...] uma definição mais precisa seria emocionalmente menos provocativa, mais simples e menos complicada, qualidades essas que descrevem o estado a que se chegou visualmente através da simetria bilateral. (DONDIS, 1997, p. 42-43)
É possível entender essa contradição através dos momentos em que esse padrão composicional se manifesta para os personagens masculinos. Durante a primeira temporada, o padrão está associado quase exclusivamente às mulheres, com destaque para June (Elisabeth Moss) e Serena Joy (Yvonne Strahovsky). Patriarcal por excelência, essa nova sociedade as reduz a uma condição de completa submissão – o que justificaria a composição ser mais recorrente entre as personagens femininas. Os Comandantes, ao contrário, são retratados como figuras que, aparentemente, estão acima de qualquer punição. Ainda assim, nos momentos em que sua soberania é posta em dúvida perante as estritas regras de Gilead, eles são retratados da mesma forma que as mulheres.


A manifestação desse padrão composicional para os homens atinge seu auge no último episódio da primeira temporada, intitulado Night, durante um julgamento. O escândalo sexual envolvendo um Comandante e uma Aia mostra que os homens podem sofrer represálias sociais tão severas quanto às demais classes dessa nova sociedade.

Desta forma, de acordo com a sintaxe visual, o padrão da composição tão recorrente na série se apresenta visualmente harmonioso. Contudo, essa harmonia pouco tem a ver com o estado psicológico das personagens ou simplesmente à tensão da trama. O que The Handmaid’s Tale busca expressar é o regime teocrático funcionando em sua plenitude. Impossibilitadas de criar surpresas narrativas devido aos mecanismos de repressão da República de Gilead, as personagens também estão subjugadas a uma organização composicional que não possibilita surpresas visuais em tela.

Referências:

ATWOOD, Margaret. O Conto da Aia. Rio de Janeiro: Rocco, 2017.

DONDIS, Donis A.. Composição: Fundamentos Sintáticos do Alfabetismo Visual. In: _____. A Sintaxe da Linguagem Visual. 1. ed. São Paulo, SP: Livraria Martins Fontes, 1991.

JOST, François. Amor aos detalhes: assistindo a Breaking Bad. MATRIZes , v. 11, n. 1, p. 25-37, 2017. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/matrizes/article/view/131623/127910>. Acesso em: 09 jul. 2018.

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