Antônia: a voz que não se permite calar



Retomando a discussão sobre a representação do negro na teledramaturgia brasileira temos a série Antônia, baseada no filme homônimo, produzido por Tata Amaral. A produção de conteúdo audiovisual com a temática voltada para contextos de pobreza e violência urbana, ganhou força a partir do longa-metragem Cidade de Deus (2002), que ao tratar a favela como um espaço de produção de subjetividade, ganhou o reconhecimento do público e da crítica. Ao lado de outros seriados como Cidade dos Homens (2002-2005, Globo) e Carandiru - Outras Histórias (2005, Globo), Antônia faz parte de um conjunto de conteúdos audiovisuais produzidos pela TV Globo que tinham como objetivo tratar da temática das periferias urbanas brasileiras, sendo protagonizados majoritariamente por pessoas negras (SANTOS et al.,2016). A série produzida pela O2 Filmes e exibida pela Rede Globo entre 17 de novembro de 2006 a 19 de outubro de 2007, conta a história de quatro amigas Preta (Negra Li), Barbarah (Leilah Moreno), Mayah (Quelynah) e Lena (Cindy Mendes), moradoras do bairro Brasilândia, em São Paulo.A trama gira em torno do grupo de rap chamado “Antônia”, formado dois anos antes pelas amigas, e da batalha dessas mulheres para trazer o grupo de volta para o cenário musical da região.

A abertura da série mostra as protagonistas no estúdio, cantando músicas de seu repertório, como “Flow” e “Antônia Brilha”, ou releituras famosas como “Eu sou favela”, de Bezerra da Silva:
A favela, nunca foi reduto de marginal
Só tem gente humilde marginalizada
e essa verdade não sai no jornal
A favela é, um problema social
A favela é, um problema social

Assim como na música de Bezerra da Silva, Antônia tenta mostrar uma outra realidade do que são as favelas e as pessoas que moram ali.

A busca pela representação da realidade

Ao analisarmos Antônia, devemos lembrar que, como aponta Passolini, “uma escolha estética é sempre uma escolha social.” (1990, p. 148), o que torna a visualidade da série fator imprescindível na hora de trazer a verossimilhança buscada pela emissora. Dois aspectos ressaltam a grande busca por uma representação fiel a realidade na série: a gravação, em sua grande parte, acontecer em locações, e o uso de uma linguagem fotográfica documental, evidenciada pelo constante uso de câmera na mão, que traz a percepção daquele espaço cênico como real.

Tentando fugir dos principais estereótipos das mulheres negras na teledramaturgia brasileira (escravas, empregadas domésticas, mulheres em situação de assédio moral e sexual, etc), Antônia apresenta um discurso que prioriza a relação dessas mulheres com suas próprias imagens, em um processo de formação de suas identidades (SANTOS et al.,2016). Ao representar a mulher negra de forma não – tão – estereotipada, abre-se então a possibilidade de discussão de um conjunto de problemáticas que é esquecida e não representada pela mídia.
A mulher negra

“Muitas mulheres negras sentem que em suas vidas existe pouco ou nenhum amor. Essa é uma de nossas verdades privadas que raramente é discutida em público. Essa realidade é tão dolorosa que as mulheres negras raramente falam abertamente sobre isso.” (HOOKS, 2014, online)
A voz narrativa que guia os episódios é a de Preta (Negra Li), única mãe do grupo, que vive em uma espécie de família matriarcal, junto com sua mãe e filha. No episódio “De volta para casa”, primeiro episódio da série, o grande protagonismo das mulheres negras já é nítido. E evidencia uma grande questão que é perceptível ao longo de suas duas temporadas, a solidão da mulher negra.

Mesmo que de maneira não intencional, a série acaba que por mostrar essa questão de maneira muito clara, logo em seu primeiro episódio, quando apenas uma das quatro mulheres está em um relacionamento sério. Lena (Cindy Mendes), mora junto com seu namorado há alguns anos, mas o grande agravante dessa situação é o relacionamento ser completamente abusivo. Além de não trabalhar e exigir que Lena mantenha financeiramente a casa, ele a proíbe de participar dos ensaios do grupo, e de manter contato com suas amigas. A saída de Barbarah (Leilah Moreno) da cadeia agrava a situação, ela é a única que nunca desistiu do sonho, e que mesmo em seu período no presídio continuou a escrever músicas para o grupo. Sua insistência e esperança, faz com que o grupo tente retornar ao cenário musical.

Após gravarem um cd, as protagonistas da trama contam com a “ajuda” do empresário Diamante (Thaíde), para voltarem shows, o que aumenta o ciúme do namorado de Lena. Depois uma séria crise após um show, onde fortes agressões verbais acontecem, e um episódio onde Lena é severamente cobrada por não manter a organização da casa em dia, mesmo sendo a única do casal a trabalhar, ela decide então se separar.

Uma das situações mais graves nesse sentido na série é quando Barbarah, em sua primeira saída após dois anos na prisão, vai para a casa de um homem que conheceu naquela noite. Após transarem, o homem fala que o encontro está tão bom que esqueceu de perguntar qual o preço ela cobrava pelo programa. Desnorteada, Barbarah o indaga sobre o que o fez pensar que ela era uma garota de programa, se era o fato de estar acompanhada por mais três belas mulheres negras em um bar. A situação não é resolvida no momento. Porém, no decorrer da série esse homem volta a aparecer e, de alguma forma, se redime – de maneira muito questionável - , fazendo com que o CD do grupo toque em uma importante balada.

Questão que anda de mão dada com a solidão da mulher negra, é a hipersexualização da mulher negra:

“Não é coincidência que a bunda e a sensualidade sejam, até hoje, as principais formas de representação das mulheres negras ao redor do mundo. A violência sexual contra as mulheres negras, praticada desde a escravidão, reforçada e justificada pela ciência no século XIX e que permanece naturalizada na sociedade brasileira, as priva do direito de afetividade e do desenvolvimento de uma sexualidade plena e autônoma, ou seja, do direito de existirem como indivíduo e não como objetos a serem controlados e utilizados para o prazer do outro.” (SENA, 2015, online)

Maya (Quelyna) é hipersexualizada em diferentes momentos da série. Desde o primeiro episódio, sua beleza e sensualidade são as características mais marcantes da personagem e servem como moeda de troca em diversas situações, principalmente com o agente do grupo, Diamante, com quem mantém um relacionamento amoroso, chegando até a morarem juntos.

Os três últimos episódios ("O valor do diamante", "Ligação a cobrar" e "Sábado, às 4") são marcantes para Maya. Em "O valor do diamante", o grupo é chamado para a gravação de um comercial, e cada mulher decide o que fazer com o cachê que recebe.

Neste momento, o grupo já está com uma carreira mais consolidada, e a vida financeira das integrantes já está mais tranquila. Maya gasta toda a sua parte do cachê com questões de beleza, silicone, unhas e cabelo. Enquanto as outras integrantes ajudam a família, investem em educação, etc.

Já em "Ligação a cobrar", Maya é alvo de uma espécie de sequestro. Há uma confusão na entrada de um dos shows do grupo, onde um homem tenta entrar sem pagar na casa noturna, e acusa as mulheres de não viverem o que cantam em suas músicas. Após o show, o agente do grupo e cônjuge de Maya, Diamante, conversa de maneira muito íntima com uma suposta fã do grupo, o que faz com que Maya e Diamante briguem. Para causar ciúme, Maya aceita carona do “fã número 01” de Antônia, que acaba a levando para tomar um vinho em seu apartamento. Pela manhã, Maya acorda e percebe que está trancada no apartamento, e que o misterioso fã, levou seu celular com ele. Simultaneamente, Preta passa a receber ligações de um homem, do celular de Maya, de um suposto sequestro, e um valor de resgate de 10 mil reais. Há uma grande mobilização durante todo o episódio para ajudar Maya, que presa no apartamento, descobre várias fotos suas coladas pelo local. No fim, tudo não passava de um mal-entendido, o sequestro era falso, o homem que iniciou um tumulto na noite anterior havia pego o celular de Maya, e teve a ideia para conseguir dinheiro. Após alguns momentos de tensão entre Maya e o fã, onde o mesmo não queria que Maya saísse do apartamento, por acreditar que ela nunca mais o procuraria, acaba a levando ao encontro do resto do grupo.

"Sábado, as 4", o último episódio, quebra totalmente a expectativa que temos em relação a série. Há uma passagem cronológica de um ano, o grupo já não existe mais, e cada mulher seguiu seu próprio caminho. Preta (Negra Li), se muda para o Rio de Janeiro, com sua filha Emília; Lena (Cindy Mendes), é uma importante líder da Brasilândia, e tenta ser tornar vereadora na cidade; Barbarah (Leilah Moreno), é atriz, e faz um importante papel em uma novela na Rede Globo. Já Maya, volta como uma dependente química, com uma grande dívida, e ameaças de morte. Agora, abandonando de maneira significativa a busca pela realidade, em uma recuperação quase milagrosa, Maya e as meninas encerram a série com um pequeno show, durante um evento para a campanha de Lena.

“A solidão da mulher negra é, portanto, parte indissociável da formação da nossa identidade que o racismo nos impõe. Durante a juventude e vida adulta esta solidão é alimentada pelo desprezo daqueles com quem almejamos estabelecer um relacionamento amoroso, já que passamos a ser vistas somente pelo nosso sexo expropriado e hipersexualizado, principalmente através da mídia.” (ALVES, 2015, online)

Além da recuperação quase milagrosa da dependência química de Maya, o último episódio, revela outro ponto da série que não buscou minimamente representar a realidade, a relação de Preta com o amor. Única mãe do grupo, Preta não tem nenhum tipo de relacionamento durante toda a série, nenhum encontro, sexo casual ou paixões. O que faz com que a personagem permeie por dois extremos: a hipersexualização da mulher negra, e a assexualização das mães na teledramaturgia mundial. Durante toda a série, mesmo com muitas indagações da filha Emília, Preta não chega nem perto de manter algum tipo de relacionamento. Alguns desabafos sobre sua solidão são feitos durante as duas temporadas, porém seu lado mulher é completamente apagado, colocando seu lado mãe como único. Não conseguindo representar toda a complexidade que a personagem poderia ter.

A falta de complexidade dos personagens negros

“A arte tem como dever do presente inserir temáticas caras à nossa sociabilidade negra e pensar que nossa saúde emocional é tão importante quanto todas as outras inserções.” (FREITAS, 2014, online)

Antônia, consegue trabalhar de maneira positiva quando coloca em protagonismo mulheres negras, e quando busca retratá-las de maneira não estereotipada. Porém, ao representar essas mulheres de maneira mais real, questões complexas de raça, gênero e classe, vêm à tona, e a série não consegue desenvolver tais questões, explorando de forma superficial todas elas.

Ao representarmos mulheres e negros, ainda temos um grande déficit na hora de criar a complexidade humana nesses personagens, tendo como base diversos estereótipos que foram perpetuados durante a história da teledramaturgia brasileira. Neste contexto, é necessário que os arcos narrativos se desdobrem de maneira mais densa, porém, isso se torna impossível quando essa temática não é abordada na nossa TV. É importante ressaltarmos que a última temporada da série foi em 2007, e que pouquíssimos outros trabalhos audiovisuais com essa temática e com essa busca por representar a realidade, foram feitos.

Referências:

ANJOS, Anna Beatriz; ARRAES, Jarid. A solidão tem cor. Revista Fórum, Online, 2015. Disponível em <https://www.revistaforum.com.br/semanal/a-solidao-tem-cor/> Acesso em 01 nov. 2017.

ARAÚJO, Joel Zito Almeida de. A negação do Brasil: o negro na telenovela brasileira. São Paulo: SENAC, 2000 

HOOKS, Bell. Vivendo de amor. Geledés - Instituto da Mulher Negra, Online, 2010. Disponível em <https://www.geledes.org.br/vivendo-de-amor/>Acesso em 01 nov. 2017.

LIMA, Solange. A personagem negra na telenovela brasileira: alguns apontamentos. In Revista USP, São Paulo, n.48, p. 88-99, 2001.

SANTOS, Luiza Gama Drable et al. A direção de arte como ferramenta de desconstrução de estereótipos: a representação das mulheres negras no seriado Antônia. In Congresso Brasileiro de Pesquisa e Desenvolvimento em Design, 2016. Anais...p. 3464-3475

PASOLINI, Pier Paolo. Os jovens infelizes: antologia de ensaios corsários. São Paulo:Editora Brasiliense S.A., 1990.


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