TUDO BEM SER COMPLEXO


Lançada em junho de 2020, o k-drama It’s okay not to be okay conta a história de Moon Gang Tae, um cuidador da área de saúde mental e Ko Mun Yeong, uma escritora famosa de livros infantis. Após o encontro de ambos, as feridas emocionais são curadas ao decorrer da trama, assim como o passado de personagens são aprofundados . Parece mais um romance clichê né?! Porém, apesar de ter aquela pitada de romance e muita fantasia, o drama aborda diversas questões que envolvendo transtornos psicológicos e traumas de infância. Além do impacto que estes problemas têm na vida adulta, temáticas pouco aprofundadas em boa parte dos dramas de TV e tão sensíveis ao público jovem. 

Esquenazi (2011) categoriza as séries a partir de dois conceitos, são eles: as tramas imóveis e as evolutivas. As séries imóveis se caracterizam pela narrativa fixa composta por personagens que seguem um modelo determinado do início ao fim. Já as séries evolutivas passam por evoluções ao decorrer do enredo, abrangendo tanto os arcos narrativos quanto os personagens. 

Os pontos destacados por Esquenazi (2011) na discussão das tramas evolutivas podem ser observados através da protagonista Ko Mun Yeong. Não só pelo empoderamento feminino que quebra diversos preconceitos da mulher na sociedade, mas como osatos da personagem vão mudando ao decorrer da história. Inicialmente Yeong é construída a partir de uma personalidade antissocial e explosiva, posteriormente passar a ser mais calma e sociável, criando diversos laços afetivos que não consistia no início da atração. Essa mudança não ocorre apenas na personalidade da Mu Yeong, mas também em seu figurino A figurinista Jo Sang Gyeong afirma que os figurinos extravagantes da protagonista têm a “intenção de contradizer sua extrema vulnerabilidade por dentro” e a mudança em seu visual começar a ficar nítida quando ela se aproxima do Gang Tae.


Figura 1: Look da Mu Yeong no primeiro e último episódio do drama

Mittell (2012) aponta que a complexidade narrativa apresenta um equilíbrio entre narrativas episódicas, histórias que começam e finalizam no mesmo episódio; e seriadas, com enredo que se estende entre os episódios e/ou temporadas. Conforme pontua o autor, essas narrativas não se separam, mas se complementam:

Numa mesma temporada, quase todos os episódios fazem avançar o arco da história ao mesmo tempo em que oferecem coerência ao episódio e também pequenas resoluções de conflito. Mesmo os episódios mais experimentais ou mais instantâneos equilibram-se nas demandas episódicas e seriadas(MITTEL, 2012, p. 39)

Outra característica deste modelo narratológico são as múltiplas camadas interpretativas que pode ser observadas, por exemplo, na composição imagética, estimulando a reassistência. Nesse sentido, as tramas precisam ser assistidas diversas vezes para que o público compreenda a história em sua totalidade. As camadas interpretativas também podem ser exploradas por meio da ausência das setas chamativas. Segundo Johnson (2012), o recurso serve como uma guia narrativa para mostrar ao público o que acontece na sequência de uma determinada cena. Entretanto, o que se observa na contemporaneidade é que as tramas têm usado cada vez menos setas chamativas, estimulando a leitura atenta do público e a criação de comunidades em rede, que analisam sistematicamente cada camada interpretativa. 

Neste contexto, os fãs adotam as redes sociais para discutirem sobre os “[...] dramas complexos para guiar, manipular, iludir e desviar a atenção dos espectadores dando a entender que a principal fruição é desvendar como operam os procedimentos narrativos” (MITTEL, 2012, p. 42). Como, por exemplo, as discussões envolvendo sobre a suposta morte da mãe da protagonista de It’s okay not to be okay? É a enfermeira Park Haeng Ja? Ou a paciente Kang Eun Ja que chamou a Mu Yeong de filha? Será Park Ok Ran toda misteriosa indo ao encontro da protagonista em seu aniversário? Alguns detalhes são expostos ao decorrer dos episódios, outras partes através de fragmentos de referências ao longo da trama que são captadas por quem assiste.

Figura 2: Discussões no grupo “Uma dose de dorama” no Facebook

[SPOILER ALERT]

Cada episódio do drama contém uma referência que está presente no próprio título como, por exemplo, “A mulher dos sapatos vermelhos”, “Criança zumbi”, “O segredo do Barba Azul”, entre outros. A referência do conto do escritor francês Charles Perrault, é narrada pela própria Mu Yeong quando o Sang Tae estava a caminho do quarto no porão ao notar uma estranha movimentação sendo advertida pela personagem. Ela narra a história do Barba Azul, um conde rico que vivia sozinho em seu castelo, mas a sua estranha barba azul fazia com que todos o temessem. Um dia, uma mulher humilde apareceu em seu castelo se oferecendo para ser a sua noiva, e o homem sempre solitário, trouxe todas as joias de todos os cômodos como forma de presenciar a sua mais nova companheira, o único aviso que lhe foi dado, era que ficasse longe do quarto no porão. Tamanha era a curiosidade que fez a mulher ignorar a advertência feita pelo marido, descobrindo assim um quarto repleto de cadáveres das ex-esposas que não respeitaram a advertência. Enquanto a protagonista narrava a história do Barba Azul, as cenas passadas eram referências do passado da Mu Yeong, desde a chegada de seus pais na mansão onde moravam até o momento traumático da sua infância, quando ela encontra o corpo da sua mãe morta no chão, naquele quarto do porão. As intertextualidades não partem apenas de obras canônicas, o título de alguns episódios partem também de obras literárias criadas para o k-drama que posteriormente foram lançadas.


Um outro elemento constante no k-drama são cenas que perpassam entre o que é real e o que não é como, por exemplo, o aparecimento do paciente Kwon Gi Do que narra o momento anterior da sua história que causou a sua internação no Hospital Psiquiátrico OK, quando Gi Do foi a uma boate chamada Morning Sun, ele se encontrava tão extasiado e animado que resolveu pagar a conta de todos que estavam presente, porém ao efetuar o pagamento, o cartão foi dado como desaparecido, ocasionando na sua fuga pelas ruas que correu tanto que sentiu calor e começou a se despir até ser pego e levado ao hospital. No primeiro momento, a descrição e a composição imagética remete ao passado do paciente, com alguns elementos de efeitos especiais são explicitamente exagerados, compondo uma estrutura cômica da situação, porém, ao final do episódio, mostra toda a situação descrita como parte da imaginação do Gi Do.


Figura 3: A história narrada pelo personagem em 2 perspectivas diferentes

Um outro exemplo são trechos que envolvem a protagonista Mu Yeong, a mistura de tempos entre o presente e o passado, seja elas em forma de flashbacks ou imaginação como, por exemplo, no episódio que a protagonista volta ao quarto no porão e encontra não só um quadro com a imagem da sua mãe, mas uma penteadeira, a mesma encontra uma escova de cabelo e o reflexo que se tem no espelho é a ilusão da sua mãe penteando seu cabelo, e aos poucos a cena presente se torna uma parte da rememoração feita pela protagonista. Isto é, uma “composição dos tempos que se entrechocam e se confrontam [...], um verdadeiro cruzamento dos modos temporais” (ESQUENAZI, 2011, p. 112) constrói de modos distintos e percepções diferentes de quem o assiste. Sendo preciso mais atenção ou até mesmo reassistir ao episódio.


Figura 4: Entrelaçamento da narrativa em modos temporais diferentes


Nesse sentido, It’s okay not to be okay é estruturada pela complexidade narrativa, um drama de TV que é composta por narrativas episódicas e seriada, uma entrelaçada a outra, além de tratar questões pouco discutidos na sociedade, enriquecendo ainda mais sua narrativa.


Referências

ESQUENAZI, J. As séries televisivas. Lisboa: Edições Texto e Grafia, 2011.

JOHNSON, S. Tudo que é ruim é bom para você: como os games e a TV nos tornam mais inteligentes. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

MITTELL, J. Complexidade narrativa na televisão americana contemporânea. 2012. São Paulo. In Matrizes, vol. 5, Ano 5 – nº 2 jan/jun. Disponível em: <https://www.revistas.usp.br/matrizes/article/view/38326/41181>. Acesso em: 7 ago 2020.

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