Debates sobre a diversidade no âmbito da ficção seriada têm sido cada vez mais comuns. Temas referentes a gênero e sexualidade, relações LGBTs, família e etnia são abordadas por exemplo em entretenimento infanto-juvenil como Cartoon Network e Nickelodeon. Em 2005, Avatar: A Lenda de Aang revolucionou a televisão por trazer a tona questões de xenofobia e sua sequência, Avatar: A Lenda de Korra (2012) tem como protagonista uma personagem mulher negra e bissexual, com o seu desfecho na série animada se relacionando com outra mulher. Já em 2018, Hora de Aventura (2010) apresenta um beijo entre duas das personagens mais queridas do público, Princesa Jujuba e Marcelina, confirmando um dos shipps mais esperados no desenho. Trazendo para o âmbito nacional, a Rede Globo entendendo a demanda nessa área, trouxe em duas edições da novela juvenil Malhação: Viva a Diferença (2017) e Malhação: Vidas Brasileiras (2018) arcos de personagens LGBTs, que fogem do estereótipo já estabelecido em representações de novelas passadas da emissora.
Trabalhando dentro do aspecto de formação e informação sobre a diversidade social para crianças e jovens, Rebecca Sugar criou uma das animações que mais traz a tona de forma leve, sutil e educativa temas como, por exemplo, tipos de família, tipos de relacionamentos, identidade, gênero e sexualidade. Produzido pelo canal Cartoon Network, Steven Universe (2013- atual, Cartoon Network) foi criado em 2013 e conta a vida de Steven, um jovem híbrido, filho de uma poderosa guerreira alienígena que jurou proteger a Terra de seu planeta natal, Rose Quartz, e um jovem músico humano, Greg Universe. Órfão de sua mãe, Steven é criado por seu pai, e mais três guerreiras alienígenas companheiras da mesma, Garnet, Pérola e Ametista, as Crystal Gems (o nome se refere à matéria que foram criadas, sendo seres feitos a partir de pedras preciosas, que possuem corpos gerados através da luz).
As Crystal Gems, juntamente a Greg são a família de Steven, e este núcleo é explorado no episódio trinta e dois da primeira temporada, quando os pais de sua melhor amiga, Connie, querem conhecer mais sobre sua formação familiar. Temendo a não aceitação dos pais de Connie por sua família “não convencional”, Steven pede as Crystal Gems, para se fundirem (iremos ver adiante) a formarem Alexandrite, uma nova gem para se passa por sua mãe. Obviamente o plano não iria dar certo e no final, Steven assume que sua família não é convencional, com um pai e uma mãe. Segundo Petzold (1996, p. 39 apud Faco e Melchiori, 2009, p. 123) família pode ser conceituada por “um grupo social especial, caracterizado por intimidade e por relações intergeracionais”. Esta ideia proposta por Petzold, concretiza o fato de que as diferentes formações familiares podem e devem ser encaixadas dentro deste conceito, independente de como os integrantes são identificados dentro do mesmo.
Como qualquer animação infantil, a estética de Steven Universe é bem chamativa, com cores vibrantes, desenhos com traços arredondados e fofos, com muita alegria e diversão. Entretanto, à medida que a série se desenvolve, podemos perceber que os personagens possuem uma complexidade bem mais profunda em suas identidades, com traumas passados que aos poucos vão sendo mostrados com seu desenvolvimento e amadurecimento. Steven, por exemplo, começa a trama sendo apenas um garoto comum de 13 anos, com uma rotina vida quase que normal, apesar de possuir poderes mágicos e conviver com um grupo de guerreiras alienígenas.
Em primeiro momento, achamos que o personagem tem uma vida tranquila e feliz, sem muitas preocupações. Porém, com o decorrer da história, notamos que Steven carrega nos ombros o fardo de possuir a pedra de sua mãe, que deixou seu corpo para que ele pudesse nascer. É perceptível as aflições do menino de não poder ter conhecido a mãe que era amada por suas companheiras e odiada por ter começado uma rebelião contra seu planeta e supostamente ter matado uma das líderes de seu planeta, mas apesar de momentos de angústia evidenciados durante a série, o personagem tenta ajudar a todos os outros a seu redor e solucionar seus problemas ao mesmo tempo.
Gems: as fusões e as relações
Em Steven Universe somos apresentados ao conceito de fusão. Tendo como base o cânone da trama, podemos definir por fusão o momento que duas ou mais gems, por indefinidos motivos, resolvem se unir através de uma dança sincronizada, formando um novo ser com consciência, personalidade, aparência e poderes próprios, unindo-as tanto fisicamente, como mentalmente. Para uma fusão bem sucedida acontecer, as gems envolvidas precisam estar conectadas umas às outras para que haja um compartilhamento mútuo dentro desse novo ser.
No episódio nove da segunda temporada, em um flashback de Greg, Pérola fala para ele que “a fusão é a conexão máxima entre gems” e, portanto, ele não poderia se fundir com Rose. Durante o flashback, Garnet conversa com Greg que para se fundir com Rose, ele precisa se abrir e ser honesto e que os dois precisam se reinventar juntos para a fusão acontecer. Apesar dos esforços aparentemente falhos em fundir com Rose, Garnet, que observa toda a situação, fala para Pérola que a fusão entre os dois funcionou, pois além da união de dois corpos físicos, ela também é o entendimento mútuo, o diálogo, a conexão, o amor e carinho entre as partes.
Em Homeworld, planeta natal das gems, a fusão é vista apenas como uma forma de aumento de força e poder de combate, não possuindo nenhuma outra função e sendo permitida apenas para gems iguais, sendo a fusão de diferentes pedras um crime punido com morte. Antes de Steven, a fusão era apenas possível entre gems, mas por ser híbrido, o personagem consegue realizar essa conexão com sua amiga humana, Connie, formando Stevonnie.
Entretanto, é importante ressaltar que, conforme do cânone, é equivocado associar a fusão com relações sexuais, sendo que apesar de algumas danças demonstrar um cunho sexual, a fusão se mostra como um momento bem mais profundo que isso.
Steven Universe é um dos desenhos com um elenco formado principalmente por personagens com características femininas, apesar de inúmeras vezes a criadora da série afirmar que as gems não possuem gênero definido, e sua interpretação como feminino e masculino fica a cargo do público, sendo Steven o único gem confirmadamente masculino, por se tratar de um híbrido. A ideia de as personagens não possuírem um gênero definido é defendida por Sugar como a possibilidade de o público criar uma relação de identificação com as personagens, independente de rótulos pré-definidos.
Um exemplo disso é o famoso casamento de Safira e Rubi, duas gems que fundidas formam Garnet, se casam. Rubi sempre foi mostrada como uma figura mais masculinizada, sendo uma gem enérgica, brigona, cabeça quente, enquanto Safira sempre se mostrou mais feminina e sutil, sem expressar muito suas emoções. Durante o casamento, o papel de “noiva” foi tomado por Rubi que usou o vestido e o de “noivo” ficou para Safira, com um terno. Este episódio foi o primeiro a ter um casamento LGBT com direito a um beijo das personagens no Cartoon Network.
A representatividade de diferentes tipos de corpos, jeitos e formas ajuda na relação de identificação entre público-personagem. Mascarello (2006, p. 382) defende que “a representação social possibilita uma política identitária de confronto e marcação das diferenças que, num primeiro momento, enfatiza uma luta política e teórica contra a repetição de imagens negativas em favor da necessidade de imagens positivas”. Desta forma, esse tipo de história ajuda a naturalizar a diversidade existente e criar mais identificação com os espectadores, que conseguem se sentir representados a partir desses personagens.
Steven Universe também expõe o outro lado dos relacionamentos, como as relações abusivas e violentas. Em um momento da trama, a personagem Lápis Lázuli, uma gem que ficou aprisionada em um espelho durante anos é libertada por Steven se encontra obrigada a se manter em uma relação de abuso e violência com Jasper, um gem general de Homeworld, que possui a missão de capturar Rose Quartz. A relação das duas personagens é extremamente conturbada, sendo Malaquita, a fusão formada pelas mesmas, muito instável, por não ser formada por uma conexão mútua das partes, mas sim, pela vontade de Jasper derrotar as Crystal Gems e em uma armadilha, Lápis usa a fusão para aprisionar Jasper no fundo do mar e salvar Steven.
Em todo momento a relação das duas possui o tom de abuso, de uma violência não física, mas psicológica, onde Jasper usa de todos os artifícios para convencer Lapis de que as duas deveriam ficar juntas e acabar com suas inimigas, atribuindo a fusão, uma relação de abuso e extorsão de poder. Com seus poderes Steven consegue entrar na mente de Malaquita e vê que as duas estão aprisionadas com correntes dentro na mente da fusão, uma tentando superar a outra a todo momento para conseguir o controle da gem.
Relações de abuso de poder também pode ser vista entre duas das comandantes de Homeworld: Blue Diamond e Yellow Diamond. A primeira muito emotiva, vive em eterno luto pela suposta morte de Pink Diamond, por quem tinha uma relação especial e a segunda uma gem militarizada que desconta seu luto e sua angústia num ódio pela Terra e que busca sempre conquistar outros planetas. Podemos notar uma tensão amorosa entre as duas personagens, mas que é subjugada a todo o momento pelas tentativas de Yellow Diamond persuadir e reprimir os sentimentos e ações de Blue Diamond para que deixe seu luto de mais de cinco mil anos e passe a ser a comandante ideal de seu planeta. Desse modo, poderia manter a sua versão sobre a suposta morte de Pink Diamond como única e absoluta, o que em certo momento da trama, crie um questionamento a respeito sobre quem realmente matou Pink Diamond, Rose Quartz como conta a versão “oficial” ou Blue Diamond. Nesse sentido, Marques (2005) explica como as relações abusivas afetam a vida da vítima:
O abuso emocional é um processo em que o agressor sistematicamente diminui e destrói o self do outro. As percepções, e as características essenciais da personalidade da vítima são reduzidas. A violência psicológica ou agressão emocional é tão ou mais prejudicial que a física. (...) Trata-se de uma agressão que não deixa marcas corporais visíveis, mas emocionalmente causa cicatrizes para toda a vida. (MARQUES, 2005, p.86).
Essa influência fria e rígida que Yellow Diamond mantém sobre Blue Diamond é um reflexo de toda a sociedade gem, que seguindo as leis da comandante suprema, White Diamond, precisa seguir padrões racionais e sistemáticos, sem a possibilidade de envolvimentos afetivos entre as gems e desenvolverem sua própria identidade.
Identidade
A questão de identidade é muito abordada em Steven Universe. A narrativa traz alguns conflitos internos dos personagens que se questionam sobre a sua função e a sua necessidade de existência. Esse conflito pode ser observado em Ametista, uma das gems centrais da narrativa, produzida no planeta Terra enquanto colônia de Homeworld. Por ser uma gem que ficou muito tempo no seu buraco de criação, ela não cresceu tanto quanto outras ametistas e, por isso, é considerada defeituosa. Isso se torna um fardo para a mesma que tenta provar que apesar de pequena, é tão forte e prestativa quanto qualquer outra gem. Apesar de receber apoio de sua família, Ametista muitas vezes se sente inferior, chegando até a falar que não pediu pra ser como é e que não pediu para ser feita.
O conflito sobre identidade também é observado em Steven, que por possuir a pedra de sua mãe e escutar diversas histórias sobre a mesma, acaba se perguntando sobre quem ele realmente é, se era apenas um disfarce de Rose Quartz para não ser presa, como apontado por outras gems durante a trama ou um ser novo e único. ALERTA DE SPOILER No final da quinta temporada, Steven entra em contato com um de seus maiores desafios, White Diamond, e durante a batalha, possui sua pedra retirada de seu corpo, uma tentativa de White revelar a “verdadeira” forma de Steven, que até então, ela acreditava ser apenas um disfarce de sua mãe. Neste momento, um novo Steven aparece, ficando em um mesmo plano Steven humano e Steven gem, que agora entende que de fato não é a sua mãe, mas sim um ser único, com sua própria identidade.
No último episódio da quinta temporada, Change your Mind, podemos entender a necessidade de perfeição e controle constante por parte das outras comandantes. White Diamond, possui características de uma pessoa com leves transtornos mentais, obcecada pela perfeição e por manter tudo em ordem, sistematizando todo o desenvolvimento do planeta para que funcione na mais perfeita ordem, mas com extrema cobrança e pressão em cima de todos os seus subservientes. Para ela, tudo deve ser padronizado e conservado a sua imagem, o que ela imagina ser perfeita. Essa necessidade de um padrão social, com suas classes, modelos estéticos e outros é um reflexo que Sugar nos coloca para refletir sobre os moldes em que somos formados na nossa própria sociedade. O desejo por perfeição, seja nas relações internas, quanto externas, criado por todo um modelo cultural, nos influência a aceitarmos certos tipos de situações para sermos reconhecidos e aceitos, mas com preço de suprimir nossa própria individualidade.
Podemos entender assim que há uma demanda do público em se sentir representado nas séries e animações, onde padrões e estereótipos já estabelecidos precisam ser quebrados para que o público crie uma relação de identificação com os personagens. A constante “desconstrução” e empoderamento tem sido apresentadas para públicos infantis, fazendo assim, que haja uma naturalização da diversidade social a partir da infância. Os rumos estão mudando e esperamos que mais personagens negros, mulheres, LGBTs e com todos os tipos de corpos tenham mais representações nas futuras narrativas seriadas.
Referências
FACO, Vanessa M. G.; MELCHIORI, Lígia E. Conceito de família: adolescentes de zonas rural e urbana. VALLE, TGM (Org). Aprendizagem e desenvolvimento humano: avaliações e intervenções [online].São Paulo: Cultura Acadêmica, 2009.
JACQUES, Jackson; REHM Werner. “StrongerThanYou”: um estudo das relações interpessoais através das fusões em Steven Universo. Temática, v. 14, n. 4, 2018. Disponível em: <http://www.periodicos.ufpb.br/ojs2/index.php/tematica/article/view/41851/0>. Acesso em: 25 mai. 2019.
KÖRNER, Juliana. A Complexidade nas Séries de Animação Infanto-Juvenil. 2018, Online. Disponível em: <http://www.lentenerd.com.br/2019/01/a-complexidade-nas-series-de-animacao.htm>
MARQUES, T.M. Violência conjugal: estudo sobre a permanência da mulher em relacionamentos abusivos. Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia. UFU, Uberlândia, MG. 2005
MASCARELLO, Fernando. História do Cinema Mundial. Campinas: Papirus, 2006.
PETZOLD, M. The psychologicaldefinitionof “thefamily”. CUSINATO, M. (Org.), Research Family: Resources and needs across the world. Milão: LED- EdicioniUniversitarie, p.25-44, 1996.
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